22-12-2007

 

 

Paulino António Cabral

(1719 - 1789)

 

Muito poucos conhecem Paulino António Cabral. Alguns mais conhecem o Abade de Jazente, por lhe ser atribuída a paternidade duvidosa, que partilha com Bocage, de dois sonetos pornográficos muito divulgados. E, no entanto, trata-se de um poeta de muito mérito, com muitas poesias com interesse, embora o seu valor literário seja algo discutido.

Jacinto do Prado Coelho não lhe regateou esta apreciação: “Os versos de Paulino António Cabral, conhecido por Abade de Jazente, não valem muito pela qualidade poética (apesar de mostrarem, por vezes, bom aprendizado da lição camoniana, comum a tantos poetas do século XVIII, como Xavier de Matos e Bocage), mas não deixam de ser literatura cativante, injustamente obliterada”.

Temos para nós que é um erro continuar a chamá-lo pelo seu ofício, Abade de Jazente, pois isso acentua injustamente o contraste entre a função sacerdotal e a ligeireza de alguns dos seus poemas. Já o seu primeiro editor em 1786, o livreiro do Porto, Bernardo António Farropo havia utilizado o nome de Paulino Cabral de Vasconcellos, nisso seguindo o Pároco que lavrou o termo de óbito e lhe acrescentou por engano o sobrenome. Penso que seria altura de o passar a chamar simplesmente Paulino António Cabral, esquecendo um pouco que ele foi Padre.

Paulino António Cabral nasceu em 6 de Maio de 1719, na Quinta do Reguengo, freguesia de São Pedro da Lomba, próximo de Amarante. Foram seus pais, João Cabral Moreira e Ana Cerqueira Pereira. O pai era médico que, quando enviuvou, tomou ordens sacras e foi nomeado Notário do Santo Ofício, no Porto por provisão de 1 de Julho de 1735.

Em 27 de Abril de 1931, ainda menino, requereu Ordens Menores. Mais tarde, por volta de 1735 foi para Coimbra frequentar o curso de Cânones. Saiu formado nemine discrepante em 17 de Junho de 1741.

Em 1748 foi nomeado Adjunto do Pároco de Jazente, Caetano de Azevedo Pereira, que estava doente. A abadia ficou vaga por morte deste e foi posta a concurso em 10 de Outubro de 1752. Foi Paulino o escolhido por despacho de 26 do mesmo mês, de D. José da Maria da Fonseca e Évora, então Bispo do Porto (foi-o até 1752).

Temos assim o poeta, Abade da Igreja paroquial de Santa-Maria-de-Jazente, da comarca de Sobre-Tâmega, a uma légua de Amarante e muito perto da sua terra natal. Em Jazente era lavrador, no Porto, frequentava o Paço Episcopal, gozando dos favores e da amizade do Bispo.

A renda da Abadia era de 300$000 rs. anuais, uma boa quantia, na época. Certamente, tinha ainda rendimentos da lavoura paterna, da Quinta do Reguengo, pertencente à família.

Passou 30 anos nesta vida. Escreveu muitos poemas, cultivou amizades, recebeu visitas. De vez em quando, ia ao Porto, para fugir ao ambiente aldeão:

 

Aqui onde me trouxe o duro fado

A passar o melhor da minha idade,

Não tenho mais que a bruta sociedade

De algum tosco vilão que tange o gado.

 

A paróquia era pequena: as chamadas Memórias Paroquiais de 1758 apontam 52 fogos e 159 habitantes. Além disso, tinha um Coadjutor para o auxiliar.

Com o passar dos anos, vieram os primeiros achaques:

 

O jogo, o amor, a mesa, as musas belas

Roubaram-me o melhor da mocidade;

Esta se vai passando e a séria idade

Principia a tratar-me com cautelas.

 

Em 21 de Janeiro de 1784, já bastante doente, passou a Abade reservatário e foi viver para Amarante, na então chamada Rua da Portela (hoje, Rua Dr. Miguel Pinto Martins).  A sua renda desceu então para 195$000 rs. anuais, que lhe eram pagos pelo seu substituto em Jazente, o Abade José Luis de Queirós.

Há indícios que esta mudança não a fez de bom grado, tanto lhe custou. Escreveu ele:

 

Depois que o Autor renunciou o seu Benefício

 

Eu, que junto à Cabana, em que vivia,

Tive uma rica Ermida: e afortunado

Ovelhas tantas tive, que o montado

Com elas branquejar alegre via:

 

Eu, que tive prazer, tive alegria,

Tive nome entre os mais; eu desgraçado,

De quanto tive agora despojado,

Não tenho nada mais, que a noite, e dia:

 

Eu mesmo deixei tudo: e unicamente,

A saudade nos cofres da memória

Com disvelo guardei, mas imprudente;

 

Pois lendo nela a minha triste história,

Me fazem ser mais duro o mal presente

Doces lembranças da passada glória.

 

I, 216

   

Na altura, apenas tinha publicado em 1760, "Romance hendecassylabo sobre o Terramoto fatal da cidade de Lisboa sucedido no primeiro de Novembro de 1755".  Não se preocupava muito em ver publicados os seus poemas; como diz Júlio de Castilho: "Escreve e não arquiva, não revê, não lima, não pule, os seus manuscritos; deixa-os correr de mão em mão, em cópias erradíssimas. Improvisa, e admira-se de que os seus aplaudidores tomem nota desses partos extemporâneos do seu talento.". Foi um livreiro do Porto, o já referido Bernardo António Farropo, que andou à procura dos seus manuscritos e lhe pediu depois para retocar a sua poesia para uma edição. O 1.º volume saiu em 1786, na oficina de António Álvares Ribeiro, com 245 pags. No ano seguinte, saiu o segundo volume com 330 pags. e mais 6 de índice final (não figura em todas as edições). O título era "Poesias de Paulino Cabral de Vasconcellos, abbade de Jazente". Os livros contêm não apenas as poesias de Paulino António Cabral, mas também muitas de seu amigo Teodoro de Sá Coutinho (que vivia no Porto) e mesmo de autores anónimos, embora referenciadas.

Outro grande amigo de Paulino era o Abade da Polvoreira, José Moreira da Silva,  que ele trata por “douto Moreira” ou “Moreira douto”.

O livro foi um sucesso. Do 1.º volume, venderam-se 2 000 exemplares em seis meses, o que é enorme para a época.

Diz Inocêncio Francisco da Silva que o editor Farropo tinha ainda inéditas poesias que dariam para um terceiro volume. Acrescenta ele: “Porém este (3.º volume) nunca se publicou; e das poesias que tenho visto inéditas, a maior parte são totalmente impróprias para o prelo”.

Paulino António Cabral faleceu em Amarante em 20 de Novembro de 1789, sendo sepultado na Igreja de S. Pedro, por ser irmão da Confraria da invocação deste santo.

Desde o sec. XIX que, em relação ao nosso poeta, se desenrola uma polémica, a que hoje pouco se liga, mas que na altura era de grande importância social: os méritos literários do Abade de Jazente resultam directamente dos poemas que nos deixou; mas era ele um bom ou um mau padre? Tal polémica ganha ainda mais relevo pelo facto de ele ser conhecido pelo cargo que tinha de “Abade de Jazente”. Também por isso, parece-me mais acertado passar a tratá-lo apenas por Paulino António Cabral.

Havia muitos que o consideraram um pároco ausente, desbragado, mulherengo, de vida escandalosa. No extremo oposto, outros diziam que os arrobos de paixão carnal dos seus versos não passavam de frutos da sua fantasia e que ele apenas tivera amores platónicos.  Entre os dois polos, houve outros que disseram que, se ele teve aventuras amorosas, foi antes de ir paroquiar Santa Maria de Jazente, pois a partir dali, portou-se sempre à altura das suas funções e que, se se tivesse portado mal, nunca ficaria ali trinta anos.

O assunto não merece a importância que lhe querem dar. Na minha opinião, os versos amorosos que nos deixou revelam uma prática que não tem nada de platónico. E que ele não deve ter sido grande exemplo de castidade. Mas que também não terá dado escândalo público e que terá sabido conduzir as suas relações com discrição. De facto, só assim se compreende que tenha estado trinta anos em Jazente, bem remunerado e num local adjacente ao local do seu nascimento.

Quase todos os poemas de amor falam de Nize. Mas certamente, são diferentes algumas das “Nize” de poema para poema. Mas que ele gostou de e amou mulheres, ninguém tem dúvidas.

Valerá a pena transcrever o juízo crítico de Júlio de Castilho:

“Olhando em globo para o conjunto da vida e das obras do célebre e memorando Abade, uma das glórias da Literatura portuguesa no século XVIII, temos a impressão geral de que era um bom homem, e um bom poeta. Um grande poeta, não direi; faltava-lhe o calor, a faísca. Bocage foi um só.

Não é um clássico peregrino da nossa língua, não, mas tem uma dicção clara, corrente, exacta, e quase sempre puríssima.

Como técnico metrificador, falta-lhe a mestria de Tolentino, aquele polido e arredondado de forma, que é o desespero dos imitadores; e contudo, ostenta-se o nosso Abade (não raras vezes) exímio.

………………………………

Como satírico, falta-lhe a observação, quase cruel, que distinguia o grande torneador da quintilha moderna.

Nicolau tem vistas mais largas; generaliza as suas caricaturas; Paulino limita-se quase sempre ao facto do momento, à crítica do caso actual, e da pessoa posta em foco.”

 

 

Imitando Camões

Amor é um arder que se não sente;

É ferida que dói, e não tem cura;

É febre, que no peito faz secura;

É mal, que as forças tira de repente.

 

É fogo, que consome ocultamente;

É dor, que mortifica a Criatura;

É ânsia, a mais cruel e a mais impura;

É frágoa, que devora o fogo ardente.

 

É um triste penar entre lamentos;

É um não acabar sempre penando;

É um andar metido em mil tormentos.

 

É suspiros lançar de quando em quando;

É quem me causa eternos sentimentos.

É quem me mata e vida me está dando.

 

I, 55

 

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
 
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
 
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
 
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
 
                           Luís de Camões

 

 

 

 A m o r e s

 

 

Olha Nize, vem cá; falemos claro

Já agora a tua história está sabida

E loucura será mudar de vida

Se nunca há-de calar-se o mundo avaro:
 

Inda que, de virtude exemplo raro,

Te mostres do passado arrependida,

Nada com isso alcanças; que perdida

A honra uma só vez, não tem reparo.


Se faltaste ao dever, e a sorte escura

Eterna nódoa sobre ti derrama,

O afecto ao menos conservar procura.

 
Torna outra vez de amor á doce chama;

Que será duplicar a desventura,

Perder o Amante, e não cobrar a fama.

 

I, 46

 

 

Enquanto to permite a mocidade,

Teu Pai disfarça, tua Mãe consente,

E enquanto, Nize, a moda o não desmente

Nos brincos gasta a flor da tua idade.


Joga, dança, conversa, e a variedade,

Que causa tanta prenda, assombre a gente;

Deixa-te ver, que o Século presente

Hoje chama ao pudor rusticidade.


Os corações de quem te aplaude enlaça:

desfruta o tempo: e tem por aforismo

Que o gosto é fugitivo, a sorte escassa


Engolfa-te de amor no doce abismo;

Busca o prazer; a vida alegre passa;

Logra-te enfim; que o mais é fanatismo.

 

I, 16

 

 

 

Ou fosse, Nize, em nós pouca cautela,

Ou que alguém pressentisse o nosso enleio,

Tudo se sabe já; tudo é já cheio,

Qu’algum cuidado há muito nos disvela.


Dizem, qu’eu sou feliz, que tu és bela;

E às vezes com satírico rodeio,

Um murmura, outro zomba, e sem receio

A fama cada qual nos atropela.


Mas se nunca se tapa a boca à gente,

E se amor sempre activo nos devora,

Porque aquela é mordaz, porque este ardente;

 

Adoremo-nos pois como até agora:

Siga-se amor; arraste-se a corrente;

E se o mundo falar, que fale embora.

 

I, 20

 

 

 

Ora Nize se ri, ora lamenta,

Ora se of’rece, ora se dificulta

Ora em nada me aceita, ora me multa

Ora me anima, ora me desalenta:


Ora gostos me dá, ora atormenta;

Ora se deixa ver, ora se oculta;

Ora mimos me faz, ora me insulta;

Ora toda é bonança, ora tormenta:


Ora me faz gelar, ora me acende;

Ora aleito me dá, ora me espanta,

Ora solto me traz, ora me prende:


Ora triste me tem, ora me encanta;

Ora sim, ora não; ninguém a entende,

Ora é um Diabo, ora é uma Santa.

 

I, 245

 

 

Penas de amor


Se tanto gosto a tua tirania

Recebe, ó Fera, em ver um desgraçado,

Põe os olhos em mim; vê se te agrado,

Que eu te farei constante companhia.

 
Não precisas, que à bárbara Turquia

Vás ver sobre as galés algum forçado,

Pois eu, mais infeliz, junto ao teu lado

Avivarei a tua rebeldia.


Se o teu prazer enfim, cruel, consiste

Em teres por objecto um descontente,

A quem a desventura sempre assiste;


No vás mais longe, não; porque presente

Tem feito o teu rigor de mim um triste,

O mais triste, que cobre o Sol luzente.
 

II, 147

 

 

Amores – o fim

 

 

 

Nize, eu não sou de ferro, e atenuado,

Ainda que o fora, o uso me teria;

Porque enfim do trabalho na porfia

Se consome o metal mais obstinado.


Instrumento não há tão reforçado,

Que resista do tempo à bataria:

Gasta o martelo a safra, e a terra fria

Pouco a pouco consome o curvo arado.


Tudo assim é: o amor o mais ardente,

No contínuo incêndio se evapora;

E o mesmo me acontece ultimamente.


Outro procura pois; e te melhora

De amante, ou mais afouto, ou mais valente;

Que eu já não posso mais; fica-te embora.

 

I,43

 

Nize, deixa-me em paz; porque já agora

No mar de Amor, por mais que á vela saia,

Carcaça velha sou, que junto á praia,

Por não poder surgir se desarvora.

 

Adeus, que quem me vir da barra fora,

É capaz de me dar alguma vaia:

E ao menos quero, antes que ao fundo caia,

Inda salvar-me: adeus; fica-te embora.

 

Bem sei que pouco é já; mas por vanglória

(Porque às vezes se faz do próprio dano)

A mesma falta hei-de fazer notória.


E no público altar do Desengano,

Deixarei dos estragos por memória

O destroçado leme, e o roto pano.

 

I,196

 

 


Nize, eu não posso mais, e a minha idade

Já não resiste à tua gentileza,

Porque em mim já desmaia a natureza,

E em ti inda te alenta a mocidade.


Enquanto eu pude, e tive actividade,

Nenhuma exp’rimentou em mim tibieza;

E se queres saber esta certeza,

Tua avó te dirá toda a verdade.


Pergunta-lhe o que fiz, e a valentia

Com que do ardente amor acompanhado

Nas campanhas de Vénus combatia:


Mas já hoje da guerra estropiado,

Só conservo na vaga fantasia

Estas tristes memórias do passado.
 

II, 102

 

 

Velhice, Solidão, Morte

 

 

Eu como, eu bebo, eu durmo e a vida passo

Ora bem, ora mal, como sucede:

Tomo tabaco, e chá; e se mo pede

O génio alguma vez, eu Nize abraço:


As vezes jogo, as vezes versos faço,

Que mais que a arte a natureza mede:

E talvez por saber como procede

Em se mover o Sol círculos traço.


Alguma vez me agrada a soledade,

Outras vezes a nobre companhia;  

E desta sorte vou passando a idade:


E espero assim que venha a morte fria

Com o manto da eterna escuridade

Encobrir-me de todo a luz do dia.

 

II, 140

 

  

Esta vida infeliz que me não larga,

Só por dar ao meu mal maior aumento,

Parece que igualando o meu tormento,

Quanto mais ele cresce, ela se alarga.


Tenaz não quer deixar-me; e tanto amarga

Me rouba o gosto, e esgota o sofrimento,

Que multas vezes sacudir intento

Dos ombros fracos meus tão longa carta.


A Parca invoco então; e a Parca dura

Os votos me rejeita, as costas vira,

E vai ferir a quem a não procura.
 

Porque quando a morrer um triste aspira,

Como a morte lhe serve de ventura,

A morte encosta a fouce, e se retira.


I, 181

 

 

 

Aqui onde me trouxe o duro fado

A passar o melhor da minha idade,

Não tenho mais que a bruta sociedade

De algum tosco Vilão, que tange o gado.


Tudo o mais é deserto inabitado,

Despenhos, precipícios, soledade,

Que só pode oferecer comodidade

Para algum infeliz desesperado.


Aqui sobre uma penha esmorecido

Fico um dia talvez, e em tal segredo,

Que até nem de mim mesmo sou sentido.

 
E, então, estupefactos mudo, e quedo

Assi’estou de males aturdido;

Qual junto de um penedo, outro penedo.

 

I, 9

 

  

Aqui, onde me trouxe o fado duro

Para passar da vida o triste resto,

É tudo um espectáculo funesto,

Em que a vista apascento, o peito apuro.


Do Marão carregado o forte muro,

E dos penhascos o medonho gesto,

Um me prende, outro faz com que molesto

Seja aos meus passos este albergue escuro.


Aqui só por instinto se governa

A gente bruta: aqui feroz me avisa

Da brenha a fera, a serpe da caverna.


Aqui todo o meu mal me martiriza;

Que até, para fazer-me mágoa eterna,

O aspecto de mim mesmo me horroriza.
 

I, 158

 

 

(Ao seu Amigo)


Deixa, Moreira, o mundo; é tempo agora

De ver da praia firme o golfo insano,

As velas colhe, e o tarde desengano

Com levantadas mãos devoto adora.


Repousa pois: o mundo hoje devora

Com enganos cruéis o peito humano;

E rindo-te de ver o antigo engano,

As antigas paixões sábio melhora.


Deixa Amor, deixa as Musas, e somente

Do Ilustre Baco o copo à boca arrima;

Pois alegra a quem vive descontente:

 

Louva o homem discreto, o Sábio estima;

Ama a virtude; mostra-te prudente;

Toma tabaco, fala à tua Prima.

 

I, 123

 

 

Bucólico

 

Aqui sobre esta penha, que defronte

Me fica do Marão, sentar-me intento,

Para lançar ao mundo o pensamento

Antes que o Sol se meta no Horizonte.

 
Acolá vejo ao pé daquele monte

De uma pobre corrente o nascimento,

Que apenas deve á chuva um breve aumento

Já quer ser rio, e deixa de ser fonte.
 

Já tal estrondo faz, e tal balborda,

Que tudo atroa; e assim que o vale ganha

Logo se espalha, e toda se tresborda.


Enxada, submergir quer a campanha,

Soberba quer ser mar; e não se acorda

Que a mijou ainda há pouco uma montanha.


I, 14

 

 

Filosofia de vida

 

Não desejo chegar a tal grandeza,

Que aduladores vis cerquem meus lados,

Nem palácios magníficos doirados,

Ricas alfaias, nem polida mesa.

 

Não me lembram heranças, nem riqueza,

Que me obrigue a pôr nela meus cuidados;

Não ocupar honrosos magistrados,

Nem outras coisas vãs, que o mundo preza.

 

Quisera só fugir de tanta estima,

Livrar-me deste pélago profundo,

Mudar da natureza que me anima;

 

Subir da lua ao globo alto e rotundo,

E depois de apanhar-me lá de cima,

Desatar os calções, cagar no mundo

 

II, 96

 

 

Sátira

 

Se magro como um cão alguém me visse

Em terra estranha roto, e desprezado,

E do pobre vestido esfrangalhado

Cardumes de piolhos sacudisse:


Se doença maligna perseguisse

Meu corpo de ossos só organizado;

Se em terrível prisão, no chão deitado

De fria cama a terra me servisse:


Se feito objecto ascoso a toda a gente,

Aquele, que me visse a vez primeira,

Ou fugisse, ou pasmasse de repente:


Se meu corpo por fim visse a lazeira

De cego, surdo, e mudo juntamente;

Antes tudo sofrera que ter F...

 
II, 108

 

 

Crítica social


A trinta e cinco réis custa a pescada:

O triste bacalhau a quatro e meio:

A dezasseis vinténs corre o centeio:

De verde a trinta réis custa a canada.


A sete, e oito tostões custa a carrada

Da torta lenha, que do monte veio:

Vende as sardinhas o galego feio

Cinco ao vintém; e seis pela calada.


O cujo regatão vai com excesso,

Revendendo as pequenas iguarias,

Que da. pobreza são todo o regresso.


Tudo está caro: só em nossos dias,

Graças ao Céu! Temos em bom preço

Os tremoços, o arroz e as Senhorias.
 

I, 214

 

 

Louvando o Marquês de Pombal e desfazendo nos Jesuítas

 

 

Ao enterro do Excelentíssimo Marquês de Pombal

 

Marcha em paz, ó Marquês, e afronta ousado

Da fria sepultura a escuridade;

Que a ser do Elíseo, o que se diz verdade,

Inda nele o teu Rei te of’rece o lado.

 

Tu lhe guardaste a vida, o Trono, o Estado;

Tu lhe assististe enfim com tal lealdade,

Que se o Letes não muda de vontade,

Terás inda além dele o Régio agrado.

 

Marcha, torno a dizer, sem que a vanglória

Deixe as tuas acções em bronze escritas,

Ou forme  delas volumosa história:

 

Pois te basta sem frases esquisitas,

Que mostre o teu sepulcro esta memória:

Aqui jaz quem deu fim aos Jesuítas.

 

II, 112

 

 

(Ao mesmo)

 

É tal, Marquês preclaro, é tal o aumento,

Que às Armas tens, que tens às letras dado,

Que o lustre, que se deve ao teu cuidado,

Te dobra, e não distingue o luzimento.

 

Da muda habitação do esquecimento

As soubeste extrair, e afortunado

Logra com elas o florente Estado

Numas defesa, e noutras ornamento.

 

Tu com progresso igual na concorrência

Lhe fizeste recíproca a vitória,

Sem que ceda nenhuma a preferência.

 

E tanto que inda as Filhas da Memória

Se lembram nesta nobre competência

De dous triunfos teus, uma só glória.

 

II, 113

 

 

Ela lá vai a infausta Companhia,

Aquela cabisbaixa atreiçoada,

Que da falsa virtude mascarada

Tanto mal à República fazia.

 

Ei-la lá vai, a mesma, que algum dia

Formava em Portugal tanta embrulhada:

Ei-la lá vai banida, abandonada,

E exposta até do vulgo à zombaria.

 

Coitada! Que é objecto de piedade

A que causava inveja a muita gente;

Mas torne a culpa à sua iniquidade.

 

Vai para Roma, a pobre, onde somente

As portas lhe abre Sua Santidade,

E lhe faz cumprimento o Pretendente.

 

II, 120

 

 

Ao Excelentíssimo Marquês de Pombal

 

Marquês tinhas razão; e o Mundo agora

Da tua persistência a valentia

Por prudência feliz tanto avalia,

Que de eterno louvor te condecora.

 

A mesma Roma em seu triunfo arvora

O Decreto, que extingue a Companhia:

Tarde teu grito ouviu, mas todavia

Te deu maior abono na demora.

 

Persististe, venceste, e um monumento

A teu nome já célebre prepara,

Capaz de resistir ao esquecimento.

 

A acção toda foi tua, e tão preclara,

Que a faltar-te das mais o luzimento,

A fazer-te imortal esta bastara.

 

II, 121

 

 

Apreciando a dedicação dos cães

 

Tó, Mondego, vem cá; pois tu somente

Alivias um pouco o meu cuidado;

Que em parte se consola um desgraçado,

Quando tem quem lhe escute o mal que sente.


Tu firme; tu leal; tu finalmente

Me tens na minha ausência acompanhado:

Raro impulso de amor! Porque ao seu lado

Ninguém quer suportar um descontente.


Ora deixa, que em prémio da piedade,

Com que o teu zelo ao meu tormento assiste,

Farei teu nome emblema da amizade.


E os versos meus que um tempo alegre ouviste

Cantarão, para exemplo da lealdade,

Um Rafeiro fiel de um Pastor triste.
 

I, 176

 

 

Fidelidade do Cão “Diamante”

 

 

Se parto, tu, “Diamante” descontente

Ficas guardando o solitário assento;

Mas bem que triste, com robusto alento

Vibras contra o ladrão o agudo dente.

 

Se volto, tu me esperas diligente,

Mostrando-me um fiel contentamento;

Pois logo com festivo movimento

És em casa o primeiro que me sente.

 

Se caço, com gentil velocidade

De um salto abocas a ligeira presa,

E a trazes com leal docilidade.

 

Oh! Como eu fora descansado à mesa!

Se pudesse encontrar tanta lealdade

No António, no José, e na Teresa.

 

I, 108

 

 

Saudades do Cão “Mondego”

 

Pastor um tempo e agora pegureiro,

Vivo o mais infeliz deste montado,

Sem Pátria, sem cabana, e sem mais gado,

Que as feras que me cercam neste outeiro.

 

Tudo o mais me roubou o derradeiro

Dia em que fui feliz: que o duro fado

Até por me deixar mais desgraçado,

A vida me arrancou do meu rafeiro.

 

Ele por toda a parte me assistia,

E com tanta lealdade, que comigo,

Se acaso eu fosse à morte, à morte iria.

 

A fome, a sede, a calma, o desabrigo,

Só por me não deixar, fiel sofria;

Eu perdi nele o mais leal amigo.

 

I, 178

 

À morte do Cão “Mondego”

 

Morreu o meu “Mondego”, o que algum dia

Com tal desvelo me guardava o gado,

Que nem lobo voraz sobre o montado,

Nem no curral ladrão subtil se via.

 

Ele por toda a parte me seguia,

E com afecto tal, com tal cuidado,

Que inda depois de ver-me desgraçado,

Inda assim nos meus males me assistia.

 

Ora repousa em paz, e unicamente

Quem eu sou, quem tu foste, este letreiro

Faça algum dia, a quem o ler patente:

 

Aqui jaz subterrado neste outeiro,

Dando exemplos de amigo a muita gente,

De um pastor triste o mais fiel rafeiro.

 

I, 177

 

 

Mais poemas:

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

Poesias de Paulino Cabral de Vasconcellos, Abbade de Jazente, Porto, Off. Antonio Alvarez Ribeiro, 1786-1787, 2 vols

Online: www.archive.org

 

  

Inocêncio Francisco da Silva, Dicionário Bibliográfico Português, 1858 - 1978, Vol. VI, pag. 358-359.

 

Francisco Topa, Para uma reedição completa da obra de dois poetas setecentistas esquecidos: Paulino António Cabral e Teodoro de Sá Coutinho – Inventário das fontes testemunhais dos seus poemas, Porto, 1998, Edição do Autor  ISBN: 972-97675-0-5

 

Paulino António Cabral, Poesias, coligidas, prefaciadas e anotadas por Mário Gonçalves Viana, Livraria Figueirinhas, Porto, 1944

  

Jacinto Almeida do Prado Coelho (1920-1984), As confidências do Abade de Jazente, in Problemática da história literária, 2.ª ed. revista e ampliada, Lisboa, Ática, 1972, 280 pag.

 

Abade de Jazente, Poesias, com um ensaio de Miguel Tamen, Lisboa,  Imp. Nac.- Casa da Moeda, imp. 1985, 561 pag.

 

Poesias do Abade de Jazente, num roteiro organizado e anotado por Miguel Tamen, Editorial Comunicação, Lisboa, 1983.

 

Poesias de Paulino Antonio Cabral, abbade de Jazente, revistas, anotadas e seguidas de um estudo biographico-literário sôbre o poeta por Júlio de Castilho, 3.ª ed.,  Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1909, 2 vols., com um Estudo sobre a vida e as obras do Abbade de Jazente Paulino António Cabral, por Júlio de Castilho  - 2.º volume, pgs. 195 a 246, datado de 8 de Julho de 1908.

 

Paulino António Cabral, um poeta amarantino do século XVIII, Balbino de Carvalho, pref. A. Magalhães Basto, Porto, 1955

 

Paulino António Cabral, o abade de Jazente, org. Pedro Barros, colab. António Cabral... [et al.], Lomba, Comissão das Comemorações do Bicentenário da Morte de Paulino Cabral, Junta de Freguesia, 1989, 95 pag.

 

 

 

Transcrevo a seguir as Memórias Paroquiais de 1758, da freguesia de Santa Maria de Jazente, que, infelizmente, não estão assinadas por Paulino António Cabral, mas sim pelo coadjutor da Paróquia.

No índice informático da Torre do Tombo, a freguesia figura como Iazente.

O questionário pode ser visto no final desta página.

 

Freguesia de Santa Maria de Jazente

Memórias Paroquiais, vol. 18, nº (J) 3, p. 27 a 30

 

1758

 

1.       Esta Paróquia de Santa Maria de Jazente, fica em a Província de Entre Douro e Minho, pertence ao Bispado do Porto, comarca de Sobre-Tâmega, pelo Eclesiástico, e pelo Secular pertence à comarca da Vila de Guimarães e ao termo do concelho de Gestaçô.

2.       É de El-Rei.

3.       Tem cinquenta e dois vizinhos, e cento cinquenta e nove pessoas.

4.       Está situada em um convale, e dela se descobrem a maior parte da freguesia de São Pedro da Lomba, e da de Santo André de Padornello, de Santa Maria de Gundar, de São Simão de Gouveia, e o Castelo de Celorico de Basto;  as quais freguesias são vizinhas, e do dito Castelo dista esta Paróquia três léguas com pouca diferença.

5.       Não tem esta Paróquia termo seu, tem sete lugares, scilicet, a Residência Abacial, Cima de Vila, Jazente, Pousadela, Pardieiros, Fornos e Loureiro.

6.       Esta Paróquia está solitária e fora de lugar, e tem os lugares já especificados em o número quinto.

7.       O Orago deste freguesia é a Santíssima Virgem Maria; tem três altares, o Maior da Padroeira, o colateral da Epístola da Senhora do Rosário, o colateral do Evangelho, do Menino Deus, São José e Santa Ana. Não tem nave alguma; tem duas pobres Confrarias, a do Santíssimo Rosário e a do Santo Nome de Deus.

8.       O Pároco desta freguesia á Abade por eleição do Bispo da Cidade do Porto, e colação da Sé Apostólica; tem esta Abadia por dízimos, frutos do Passal, foros, domínios e pode Altar de Renda comummente deductis expensis, trezentos mil reis.

9.       Não tem Beneficiado algum.

10.   Não tem convento algum; Porém, sem dúvida, foi esta Igreja Convento ou Hospício dos Religiosos de S. Bento, até o ano mil quinhentos quarenta e dois, com pouca diferença; a Igreja tem indícios de antiguidade.

11.   Não tem Hospital.

12.   Não tem Casa de Misericórdia.

13.   Não tem Ermida alguma.

14.   Não acorre Romagem alguma.

15.   Os frutos da terra que os moradores desta Paróquia recolhem em maior abundância são: vinho vermelho verde, milho grosso, e centeio;  bolotas de carvalheiras e carvalhos e também castanhas.

16.   Não tem Juiz dentro de si; está, porém, sujeita ao Juiz ordinário do sobredito concelho de Gestaçô, dentro de cujo termo existe.

17.   Não é couto, nem cabeça de concelho, nem honra nem behetria.

18.   Não há memória do contido neste interrogatório.

19.   Não tem em si feira alguma.

20.   Não tem Correio, e se serve do Correio da Vila de Amarante, da qual dista uma légua com pouca diferença.

21.   Dista esta Paróquia da Cidade do Porto Capital do Bispado, dez léguas com pouca diferença, e da Cidade de Lisboa sessenta léguas do mesmo modo.

22.   Não tem o contido em este interrogatório.

23.   Não tem também o contido neste.

24.   Não é perto de mar.

25.   Não é murada, nem se acha nela a matéria do interrogatório.

26.   Não padeceu ruína alguma.

27.   Não há mais coisa alguma notável digna de memória.

 

 

1.       Em esta freguesia de Santa Maria de Jazente não há Serra alguma, e suposto esteja circunvizinha de algumas serras notáveis, contudo assim estão incluídas, e pertencentes a freguesias cujos Párocos melhor podem noticiar delas.

2.       Oferece-se a mesma razão já dada.

3.       Pela mesma razão, não se sabe.

4.       Pela referida causa, não se sabe.

5.       Não consta que haja o contido em o interrogatório.

6.       Não há que responder.

7.       Pela referida causa, não há que responder.

8.       Do mesmo modo, não [há] que relatar.

9.       Não há que responder.

10.   Isso mesmo, podem narrar os Párocos que as conhecem.

11.   Do mesmo modo, o podem dizer os Párocos na forma sobredita; porém, em esta freguesia de Santa Maria de Jazente, há criações de alguns bois, vacas, ovelhas, porcos, galinhas; sim, há caça de coelhos, perdizes, galinholas, e de outras aves de menos estimação.

12.   Não há notícia nesta Paróquia, de Lagoa, nem fojos.

13.   Não há mais coisa digna de memória.

  

 

  1. Em esta Paróquia de Santa Maria de Jazente, nenhum rio tem nascimento, nem dentro dos limites dela tem curso Rio algum.

  2. Não há nascimento de Rio.

  3. Não há o contido em o interrogatório.

  4. Não há que responder.

  5. Pela referida razão, não há que responder.

  6. Pelo mesmo modo, não é sabido.

  7. Nem neste há que relatar.

  8. Menos o conteúdo.

  9. Pelo mesmo modo, não há que noticiar.

  10. Nem assim.

  11. Não se oferece coisa que se diga.

  12. Pelo mesmo modo, não há que responder.

  13. Não há que se diga do contido.

  14. Menos em este.

  15. Nem pelo contido em este.

  16. Não há de que se possa dar resposta neste.

  17. Menos a há do contido em este.

  18. Pela causa já expendida, não há notícia.

  19. Menos do referido em, se pode dar notícia.

  20. Não há mais alguma coisa notável, de que se deva fazer menção; tanto porque esta Paróquia não é populosa, como porque é angusto o circuito dela; e não há mais, nem menos que se possa responder. As quais respostas e relação eu, o Padre Manoel Pereyra, Coadjutor desta Paroquial Igreja de Santa Maria de Jazente, por impedimento  do Reverendo Abade actual da mesma, escrevi e assinei.

 

O Coadjutor, Padre Manoel Pereyra.