20-6-2001

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ANGOLA, 20 ANOS DEPOIS

 

 

UM GOLPE CAÍDO DO CÉU

O 25 de Abril surpreendeu tudo e todos em Angola. Luanda vivia a vida cosmopolita de uma capital colonial, e só uma meia-dúzia de dias depois, em princípios de Maio, no Zaire e na Zâmbia, os movimentos de libertação reagem ao golpe militar em Portugal, com proclamações de continuação da luta até à independência total. Ironicamente, o golpe em Portugal haveria de conceder-lhes um protagonismo que estavam longe de ter conquistado.

José Gomes

As promessas de continuação da guerra com que o MPLA, a FNLA a a UNITA reagiram ao golpe em Portugal, diga-se em boa verdade, não tiravam o sono a ninguém.
Em 1974, a luta de libertação atravessava um período crítico: o Exército português controlava militarmente todo o território - as operações tinham cessado em 1972 e a livre circulação era um facto.
Após o surgimento, em meados dos anos 60, de actividade militar no interior - O MPLA abre em 66 a Frente Leste, a UNITA ataca Vila Teixeira de Sousa, na fronteira catanguesa, em fins de 65 -, os movimentos encontravam-se minados por profundas crises internas.
Neto mandara fuzilar, dois anos antes, vários comandantes no Leste, após a revolta dos Bundas, e o movimento está recuado na Zâmbia, envolvido num debate interno para a revitalização daquela frente. Chipenda proclamara no ano anterior a cisão, em protesto contra a assinatura, por Neto e Holden Roberto, do inesperado acordo para a criação do Conselho Supremo para a Libertação de Angola.
Mais tarde, já em 74, mas ainda antes do 25 de Abril, virá a surgir uma outra facção, a Revolta Activa, propondo amplo debate para a redefinição da estratégia da luta de libertação.
Pelo lado da FNLA, as coisas não estavam melhores. Apesar de se saber que o movimento, com apoio de Mobutu, estava a formar no Zaire um exército de 9.000 homens, treinado por instrutores chineses e bem armado, Holden Roberto estava precisado de quadros dirigentes. Mandara fuzilar, após a revolta de Kinkuzo, no Zaire, em princípios de 72, dezenas de oficiais do seu Estado-Maior, e vários outros haviam fugido para Brazzaville.
A UNITA encontra-se no interior, abaixo da linha do caminho-de-ferro de Benguela, sem actividade militar conhecida.

GUERRA ESQUECIDA

Em Luanda, em 74, os combates eram uma coisa longínqua, que a cosmopolita vida na capital fazia ainda mais remota.
"À medida que as pessoas se integravam, a ideia da guerra era uma ideia longínqua", recorda o pró-reitor da Universidade do Porto, professor Nuno Grande, na altura vice-reitor da Universidade de Luanda.
"Como as pessoas estavam longe dos focos de guerra, adormeciam um pouco em relação à situação em que se vivia", conta.
O professor recorda no entanto que a capital angolana por pouco não foi abalada por uma operação da guerrilha. "No Natal de 73, foi desactivada uma operação de guerrilha urbana que estava a ser preparada por gente da FNLA, dentro da cidade de Luanda. As pessoas não tiveram muita consciência disso, mas eu, porque estava ligado à Universidade, tive conhecimento pelos canais oficiais que uma das acções seria contra o próprio hospital universitário".
A preparação dessa acção foi contudo descoberta.
No geral, o dispositivo militar da administração colonial era na verdade muito eficaz, reconhecem hoje alguns dos que naquela altura estavam do outro lado.
O Exército, as tropas especiais africanas treinadas pela PIDE/DGS, os Flechas, a polícia política, forças militarizadas e as milícias da Organização Popular de Vigilância e Defesa Civil de Angola estabeleciam no terreno um controlo a que dificilmente escapavam os movimentos da guerrilha.
Estes faziam contudo incursões através das fronteiras de Brazzaville e da Zâmbia, e havia zonas perfeitamente demarcadas onde já se sabia que tudo podia acontecer.
Aí por volta de 1965, conta Nuno Grande, nos Dembos e no Moxico a guerrilha fez muita mossa. "Cabinda e o Leste eram sítios de onde nós, os médicos do Hospital Militar, sabíamos que os feridos vinham sempre muito maltratados".
Em Cabinda, onde foi enviado para investigar um surto de febre amarela, "havia muitos focos, com grande número de mortos. Lembro-me que, numa distância de 200 quilómetros, os comandantes das companhias que estavam ali aquarteladas diziam-me: "Temos um morto por quilómetro". Havia 200 mortos entre as duas companhias, o que era um número considerável.
"Bem sei que estavam ali dois anos, mas a guerrilha era muito mais efectiva em Cabinda, porque as fronteiras com o Congo-Brazzaville eram muito permeáveis. Eles faziam as operações, deixavam as coisas armadilhadas, e iam embora, nem sequer assistiam aos efeitos. E dava-se conta, no Hospital Militar de Luanda, quando alguém vinha de Cabinda, pelos maus tratos...", conta.
Por cá, era ler os comunicados militares que diariamente o Ministério da Guerra mandava publicar nos jornais. "O Serviço de Informações Públicas das Forças Armadas comunica que morreram em combate, na Província de Angola, os seguintes militares:" e seguiam-se os nomes de mais uns tantos que, naquele ano, entre a noite de Natal e a de fim de ano, não iriam aparecer na TV, a desejar festas felizes.
Na capital, muita gente conhecia pessoas ligadas ao MPLA. "A FNLA tinha também alguma implantação, a UNITA não me recordo de ter grande impacto em Luanda - teria provavelmente mais para leste, mas em Luanda não", recorda o professor.
"Eles trabalhavam em Luanda, tinham frequentado as escolas. As pessoas lembravam-se de alguns que tinham saído de lá nos anos 50 e 60. Desde o dr. Agostinho Neto, que tinha saído de Luanda, onde era enfermeiro, para estudar Medicina, e depois não voltou, até àquele que havia de dar o nome ao hospital universitário, o irmão do Miguel Boavida, o Américo Boavida, que foi estudante, aqui no Porto, no meu tempo. Era ginecologista em Luanda, e, portanto, muitas pessoas o conheciam".
"Referiam-se a eles com simpatia, curiosamente. Mas, ao mesmo tempo, eles representavam as forças que lutavam contra Portugal, e havia uma certa ambiguidade - as pessoas lembravam-se de quem eram conhecidas e amigas, mas ao mesmo tempo tinham a reserva inerente a alguém que sabe que em algum momento eles poderiam desestabilizar tudo", recorda Nuno Grande.

APANHADOS DE SURPRESA

A 25 de Abril de 1974, Agostinho Neto encontrava-se no Canadá, mantendo contactos com a companhia petrolífera norte-americana Gulf Oil, em busca de apoio ocidental para o MPLA. Não hesitou em classificar o golpe em Portugal como um ajuste de contas entre facções do regime.
Os três movimentos, aliás, em comunicados tornados públicos nos dias imediatos, não escondiam as suas reservas.
A FNLA, em comunicado publicado a 30 de Abril, apelava à continuação da luta do povo angolano até que "a justiça universalmente reconhecida, o bom-senso e o direito à livre determinação" saíssem vitoriosos.
No mês seguinte, o líder do movimento, Holden Roberto, admitia já negociações com Portugal, com uma condição: o reconhecimento do direito à autodeterminação e à independência.
Pela mesma altura, já Agostinho Neto ajustara a opinião sobre o golpe militar em Portugal, mas mantinha a determinação de lutar até que Portugal se comprometesse a conceder a independência, a partir do que poderia ser iniciada a negociação sobre a transferência do poder. Pelo caminho, rejeitava categoricamente qualquer federação com a antiga metrópole.
A 21 de Maio, a UNITA alinha pelo mesmo tom. Mas, segundo o jornal "Província de Angola", Jonas Savimbi teria já acordado com as autoridades portuguesas um cessar-fogo. A 13 de Junho, Savimbi tornava públicas, no mesmo jornal, as suas posições sobre a questão, propondo um período de preparação política do povo para a independência, com a participação dos três movimentos, e a realização de eleições.

AMBIGUIDADE EM LISBOA

De Portugal, a Junta de Salvação Nacional ordenara o regresso do então governador de Angola, Santos e Castro, e nomeara em seu lugar o então tenente-coronel Soares Carneiro.
Da prisão de Luanda são libertados 85 presos políticos, e da de São Nicolau, em Moçâmedes, 1.200. A PIDE é formalmente extinta, mas os agentes integrados num novo serviço de informações, o Comando da Polícia de Informação Militar.
O general Costa Gomes chega na primeira semana de Maio a Luanda, e afirma em conferência de imprensa que o combate contra os movimentos de libertação continua, até que estes deponham as armas e aceitem uma solução política.
"Nenhuma província, nenhum grupo, nenhuma raça, terão permissão para impor uma solução que não tenha passado pelo crivo de um teste democrático", disse o general, acrescentando, em resposta a dúvidas manifestadas pelos jornalistas, que "é nossa intenção continuar a luta contra as guerrilhas, e essa posição manter-se-á até que os guerrilheiros aceitem a nossa oferta para depor as armas e se apresentem como um partido político legal".
De regresso a Lisboa, Costa Gomes, que em Luanda manifesta muitas e públicas dúvidas quanto ao que "muita gente pensa e tem propagado" sobre o apoio da população angolana aos movimentos de libertação, afirma que "todos os grupos humanos dessa sociedade luso-tropical" lhe haviam dado uma grande alegria, a da "esperança da realidade efectiva da autodeterminação autêntica num quadro variável dum portuguesismo pluricontinental".
Três dias após o 25 de Abril, o general Spínola já fazia questão de separar as águas entre autodeterminação e independência: a autodeterminação é o direito de um povo livremente escolher o seu destino, a independência imediata a aceitação duma vontade que não seria a desse povo.
Mário Soares, recém-regressado do exílio e já de viagem a Bona, considera "importantes" as palavras do general, mas quando lhe perguntam se é favor de uma federação ou da independência, responde: "Sou abertamente pela independência, e, na minha opinião e na do meu partido, é necessário negociar urgentemente com os movimentos de libertação".
Ao tomar o lugar de que o almirante Tomás fora apeado, duas semanas depois, a 15 de Maio, Spínola diz para a rua, que berra pelo fim da guerra colonial e a independência imediata para as colónias: "Os nossos esforços centrar-se-ão no restabelecimento da paz no Ultramar, mas o destino do Ultramar Português terá de ser decidido por todos os que àquela terra chamaram sua".

A QUEDA DO GENERAL

Mais tarde, num encontro com o presidente do Zaire, Mobutu, na ilha cabo-verdiana do Sal, discute esse destino. A conversa foi rodeada do maior segredo, e o jornal "República" haveria muito mais tarde, em Outubro de 75, já depois da queda em desgraça do general, de noticiar que fora discutido um complexo acordo de mútuos benefícios para os interesses portugueses e zairenses, nos quais se incluiria uma inédita Federação Zaire-Angola-Cabinda, com Mobutu a presidente e o líder da FNLA a vice-presidente.
Na notícia, é difícil distinguir entre a verdade e a propaganda da época, mas não se andará longe da verdade se se disser que dos planos do general constava a aposta em Holden Roberto, o homem dos americanos, de Mobutu e, noutro tabuleiro, dos chineses, para contrariar o MPLA.
Na falta de uma política clara para o problema colonial, a incerteza dominava mesmo os sectores mais informados da sociedade luandense. Os telexes das agências noticiosas dão conta desse estado de espírito, como um despacho da Reuter publicado pelos jornais portugueses a 4 de Maio, segundo o qual brancos e africanos moderados se manifestavam favoráveis à criação de um Estado multirracial e à ideia de uma qualquer federação com a metrópole.
Em Junho, o general Silvino Silvério Marques, que fora já governador de Angola entre 1962 e 1966, os anos imediatamente seguintes ao início da luta armada, é nomeado de novo para o cargo. Quando o avião aterra em Luanda, há manifestações no aeroporto contra o general, que permanecerá no entanto na capital angolana até fins de Julho, altura em que, após o assassínio de um taxista branco num musseque, ocorrem os primeiros distúrbios.

O ÚLTIMO DIA

Na tarde do dia 10 de Novembro de 1975, a bandeira portuguesa foi pela última vez arreada no Palácio do Governo e na fortaleza, dobrada e redobrada. O alto-comissário, almirante Leonel Cardoso, ao qual coube a ingrata tarefa, proclamara horas antes a independência de Angola.
Quatrocentos e noventa e dois anos depois das naus portuguesas ali terem largado ferros, o último representante da soberania portuguesa abandonava a jóia do ex-Império, e partia, "sem cerimonial, mas de cara levantada", rumo à base naval da ilha de Luanda.
Ao largo, na baía já abandonada por barcos carregados até à borda de multidões e contentores, a fragata "Roberto Ivens" escoltava o "Uíge" e o "Niassa", com as máquinas prontas para, pela última vez, zarparem para Lisboa.
Uma semana antes, a cidade branca acabara de esvaziar-se. A ponte aérea, organizada com o apoio de países estrangeiros, retirara de Angola, no meio de indescritíveis cenas de pânico e confusão, quase meio milhão de portugueses.
As estátuas dos imortais portugueses jaziam apeadas, no sítio havia só os pedestais, já pintados com o vermelho-negro do MPLA.
Para trás ficara a companhia de pára-quedistas, o almirante e uma meia-dúzia de funcionários que agora, no meio de grande e inútil aparato militar, se dirigiam para o porto.
Polícias angolanos, de farda azul, ganharam de imediato as posições desocupadas. Às janelas do palácio, alguns criados negros assistiram à saída de blindados e "Berliets".
Na baixa luandense, nem isso. Cortadas por fuzileiros, as ruas estavam desertas.

O ADEUS PORTUGUÊS

No imponente Salão Nobre do Palácio, o alto-comissário fizera de manhã, perante um batalhão de jornalistas, um breve deve e haver daqueles meses de brasa.
"E assim Portugal entrega Angola aos angolanos, depois de quase 500 anos de presença, durante os quais se foram cimentando amizades e caldeando culturas, com ingredientes que nada poderá destruir. Os homens desaparecem, mas a obra fica. Portugal parte sem sentimentos de culpa e sem ter de que se envergonhar. Deixa um país que está na vanguarda dos estados africanos, deixa um país de que se orgulha e de que todos os angolanos podem orgulhar-se".
E arrematou responsabilidades: "A única recriminação que poderá aceitar é a de ter dado provas de extrema ingenuidade política quando concordou com certas cláusulas do acordo do Alvor".
Para o almirante ingenuidade, para Neto, que à custa de sangue e suor conseguiria proclamar-se no dia seguinte presidente em Luanda, outra coisa. "Quanto a Portugal, o desrespeito dos acordos do Alvor é manifesto, entre outros, no facto de sempre ter silenciado a invasão de que o nosso país é vítima por parte de exércitos regulares e de forças reaccionárias (...) que teimou em considerar como movimentos de libertação, tentando empurrar o MPLA para soluções que significariam uma alta traição ao povo angolano".
Leonel Cardoso não pode responder, não estava presente no palanque de Neto, cumprira a promessa feita em confidência um mês antes a Cáceres Monteiro, enviado de "O Jornal": "Se um movimento não quiser vir, ainda aceito que se faça a cerimónia com os outros dois. Só com um, eu não tomo parte nas cerimónias. A um, eu não entrego o poder. Não vou às cerimónias de posse desse movimento".
No Campo da Revolução, no Sambizanga, o povo, na véspera, condenara ao enforcamento os espantalhos dos presidentes da FNLA, Holden Roberto, e da UNITA, Jonas Savimbi. Mas nessa noite, as palavras do líder do MPLA, agora presidente de Angola, perdiam-se no barulho dos disparos de faplas festejando, e, mais ao longe, de um fragor de explosões.
Ao largo de Cabo Ledo, um submarino soviético estava para o que desse e viesse, pronto para dar fuga a Neto.
A FNLA estava a 25 quilómetros, no Caxito e Quifangondo, e Holden Roberto, que celebrava a independência em Carmona, hoje Uíge, encerrara o discurso às tropas com um "até logo, em Luanda". Vinte e quatro horas depois, à meia-noite do dia 11, não em Luanda, mas em Ambriz, proclamava a República Popular e Democrática de Angola.
No Sul, o MPLA acabara de perder Sá da Bandeira, Moçâmedes, Porto Alexandre, Benguela e o Lobito, e a UNITA celebrava naquela que viria a ser a sua capital, Nova Lisboa, depois crismada Huambo.

RECONHECIMENTO ADIADO

Em Lisboa, ao Verão Quente sucedia um Outono escaldante, o 25 de Novembro estava à vista. O ministro da Cooperação, Vítor Crespo, cancelara na madrugada de dia 10 a partida para Luanda. Um longo e polémico Conselho de Ministros, terminado a altas horas dessa noite, para que tinham sido convocados, a título excepcional, os secretários-gerais dos três partidos com assento no Governo - PS, PPD e PCP -, acabaria por reafirmar apenas o espírito do acordo do Alvor, e a não ingerência de Portugal nos assuntos internos do povo angolano, defendida pelo PS e o PPD, contra a posição do PCP, segundo o qual o MPLA era o único representante legítimo do povo angolano.
Convocado o Conselho da Revolução pelo presidente da República, general Costa Gomes, as divergências mantiveram-se.
Otelo faltou, zangado com os moderados, e Rosa Coutinho, ex-alto-comissário em Angola, num telegrama de felicitações a Neto, pedia desculpa por só mandar o coração a Luanda, que o resto era preciso aqui.
O avião da TAP, que levantara para a capital angolana com Palma Inácio, da LUAR, Carlos Antunes, do PRP, José Manuel Tengarrinha, do MDP/CDE, Pereira de Moura, do Conselho Mundial para a Paz, e delegações de vários partidos comunistas estrangeiros, foi mandado regressar a 30 minutos de Luanda.
Ao aterrar na Portela, às 5,30 horas, soube-se que a ordem de regresso fora do ministro dos Transportes, Valter Rosa, e o argumento que Luanda estava a ser bombardeada. Horas mais tarde, o aparelho, fretado pelos Transportes Aéreos de Angola, levantava de novo com o mesmo destino.
Às seis da manhã de 22 de Fevereiro do ano seguinte, Melo Antunes anunciava o reconhecimento por Portugal do Governo angolano. O Brasil fora o primeiro país a reconhecê-lo, no próprio 11 de Novembro, Portugal era o 88.o.

O GRANDE PROJECTO "LUANDA-SUL"

Não há dinheiro, mas o projecto, ambicioso e chamativo, já embalou e começa a convencer: a URBANIZAÇÃO DE LUANDA-SUL. Nem Banco Mundial, nem BAD (Banco Africano de Desenvolvimento), nem UNESCO - nada! Este programa de desenvolvimento urbanístico de Luanda nutre-se do seu próprio lenho: vende os terrenos que lhe são afectos (para casas de renda alta) e desse modo agiliza outras duas vertentes de grande urgência: as casas "económicas" e as casas "sociais". Ao cabo de 20 anos de independência, Luanda tenta revitalizar os pulmões e lavar a cara. Mas, claro, não vai ser fácil. E não é trabalho para cardíacos...

Luís Alberto Ferreira
Enviado JN

Luanda, sabiam?, tem cerca de três milhões de habitantes!!!
A partir de 1975, semana a semana, dia a dia, a capital de Angola viu crescer, de modo avassalador, o número de utentes das suas, hoje, devassadas e corroídas infra-estruturas. Montadas para servir pouco mais de 400 mil pessoas. Hoje, positivamente a rebentar pelas costuras, a cidade de Luanda é vítima de todas as erosões possíveis. Sempre são 20 anos velozes e dilacerantes. Desde a proclamação da independência, com o saudoso presidente Neto na tribuna do Largo 1.o de Maio. Ele, o dr. Agostinho Neto, aí por alturas de 1977, 78, 79, ano em que morreu, usava deslocar-se, por vezes, discreto e sorrateiro, a certos recantos de Luanda, para ver e crer. Quando começaram a manifestar-se, na pele da grande cidade africana, as primeiras feridas preocupantes. Já passaram, pois, cinco lustros - durante os quais Luanda não cessou de crescer e de receber gente, gente, mais gente, sempre mais gente. Um fenómeno visceral da guerra. Em vários capítulos. Depois de 1975, uma onda imparável, num gotejar sincopado. Depois das eleições de 1992, nova onda de deslocados, refugiados, mutilados - homens e mulheres, com as suas crianças, camponeses, operários, funcionários, militares tresmalhados, do Norte, do Centro e do Sul.
Luanda aguentou tudo isso e hoje, exausta, reconhece-se em tudo isso. Guerra de libertação, independência, guerras pontuais fratricidas. É uma cidade, apesar de tudo, estoica, lutadora, perseverante. Uma cidade rara. Ulcerada e destruída ali, refeita e repintada acolá. E a gente reconhece-a, sempre, até nos inesperados labirintos, nos esconsos de terra batida do bairro dos Coqueiros. As infraestruturas de Luanda, estripadas, são ainda as mesmas de 1974, quando a cidade acolhia cerca de 400 mil almas. As mesmas! E os novos muceques, nas imediatas periferias são, agora, de betão! Construções ao Deus dará, numa impressionante sequência de sofreguidões, improvisos e clandestinidades sem clandestinidade nenhuma.
Há edifícios de apartamentos, noutras áreas de Luanda, cuja infraestrutura comporta, na totalidade, fossas sépticas! Edifícios com uma média de 20 apartamentos por cada andar. Os rebentamentos em canalizações agudizam, no quotidiano luandense, o problema da rede de esgotos, talvez o mais sério de todos. O governador provincial de Luanda, Justino Fernandes, disse ao JN que a maior preocupação, neste momento, incide no esforço a realizar antes da eclosão das próximas chuvas. A malha de drenagem está a ser objecto de obras estrategicamente definidas, em vários pontos de Luanda. São obras avulsas, mediante contratos severamente estabelecidos.
É que, francamente, não há dinheiro, confessa Justino Fernandes. E, por isso, tudo é negociado palmo a palmo, discutido com a Direcção de Economia. "Se der uma volta por Luanda", sugere o governador provincial, "vai certamente poder observar pequenas obras em curso, um pouco por toda a cidade". Por exemplo, estão a ser desobstruídas as mais de três mil sarjetas da capital. Obras encaixadas num "sistema" de programa a programa, passo a passo. Tem de ser assim porque, de facto, não há, no verdadeiro sentido do termo, um orçamento próprio. O grande programa "Vamos salvar Luanda", desenhado, em tempos, com algum entusiasmo, chocou com a barreira impeditiva da falta de meios financeiros. Para recuperar Luanda, segundo cálculos de 1992-1993 (na altura revelados, também, ao JN), seriam necessários cerca de 400 milhões de dólares. Agora, a política do governo provincial é mesmo arregaçar as mangas e caçar com gato, como sentencia o povo português. Programa... caderno de encargos... Programa... caderno de encargos... E Luanda lá vai cuidando das suas feridas profundas.

PEDRADA NO CHARCO

Justino Fernandes não tem, de facto, mãos a medir, nem tempo para ir à varanda e contemplar a algazarra popular dos transportes colectivos no Largo da Mutamba, lá mais em baixo. O governo provincial de Luanda está instalado no belo e histórico edifício da antiga Câmara Municipal. O imóvel, diz Justino Fernandes ao enviado do JN, é "património mundial". Nada mais atinado. A estrutura de ferro foi, reitera o governador de Luanda, concebida por Gustavo Eiffel, o mesmíssimo que ofereceu engenho à ponte de D. Maria Pia, no Porto. Bem, e "Luanda-Sul"? O que vem a ser, afinal, esse projecto de que tanto se fala na capital?
JUSTINO FERNANDES - Luanda-Sul é um programa de desenvolvimento urbanístico que visa descongestionar o casco urbano da província. Um programa que criará condições para a implantação de novos bairros residenciais. Como pode ver, Luanda está hoje prensada por uma grande rede de muceques de betão: não houve, nestes anos todos, a possibilidade de acompanhar de uma forma organizada a construção de moradias. O resultado é este: muceques de betão! Quando, noutras partes do mundo, são bairros de lata - chaparias, entabuados e outros materiais, facilmente removíveis. Mas, se fizermos as contas, concluimos que a construção clandestina, em betão, fica tão onerosa como se a obra surgisse em terrenos urbanizados a rigor. Com o programa Luanda-Sul vamos, pois, começar a fazer casas de uma forma ordenada. Vamos meter na ordem a construção, em Luanda. Isto é fundamental numa metrópole com qusse 3 milhões de almas!
JN - Por onde se estende essa nova urbanização?
JF - Estende-se para sul da cidade de Luanda. O programa está dividido em três partes, três segmentos onde os novos bairros serão implantados. O primeiro segmento é a plataforma que sai do Futungo para a Barra do Quanza e vai, por Benfica, até à zona alta do Golfe. Será a vertente das casas de renda alta. Para gente com recursos. Vendemos os terrenos, aí, em direito de superfície. E o horizonte temporal é de noventa anos.
JN - Varre-se qualquer possibilidade de especulação imobiliária...
JF - De forma absoluta. Veja: com o dinheiro que vamos arrecadar (na venda dos direitos de superfície), criamos infraestruturas nessa vertente (casas de renda alta) e também nas zonas destinadas aos bairros económicos e aos bairros sociais. Respectivamente: na zona frontal ao Golfe (bairro emblemático da macrocefalia luandense), ou seja, na vertente Camama-Sepú, e na zona de Viana-2.
JN - A água, em Luanda, é outro dos bicos de obra tormentosos. Isso não vai "amordaçar" o projecto Luanda-Sul?
JF - Já estamos a instalar uma conduta de cerca de 25 quilómetros que abarcará os três segmentos de casas habitacionais.
JN - Calculo as expectativas da população de Luanda em relação às "casas sociais"...
JF - Ao princípio, as pessoas pensavam que o projecto de urbanização iria contemplar, simplesmente, as pessoas com dinheiro, só casas de renda alta. De facto, não é assim. Empregámos o dinheiro, das pessoas que podem comprar em direito de superfície, na criação de infraestruturas para as casas e bairros destinados às pessoas de menos recursos. Começámos, já, a construção das 2.500 casas que, no projecto Luanda-Sul, figuram como expressão de um "compromisso assumido".

LUANDA PATRIMÓNIO MUNDIAL

Portanto, em Luanda, 400 mil habitantes em 1974 e quase 3 milhões em 1995! Uma improcedência "fatal" para os equilíbrios em jogo: urbano-arquitectónico, ambiental, funcional e cívico. Ao longo destes últimos 20 anos, os anos de independência, este enviado do JN esteve em Angola tantas vezes quantas redondeiam o dobro desses cinco lustros do exercício da soberania angolana. Muitas, muitíssimas coisas mudaram em Luanda nestes 20 anos. Para pior, a maior parte. Para melhor, muito melhor, a parcela menos vultosa. Vamos ver o que é que mexe na caleidoscópica cidade de Luanda.

Luís Alberto Ferreira
Enviado JN

A muito pré-jacente deterioração dos edifícios comerciais e residenciais do centro de Luanda ilustrou, desde 1977, os relatos dos jornalistas que visitam Angola. A "baixa" foi (prelúdio de sobressalto em 1975), rapidamente invadida por gente fugida dos muceques periféricos ou mesmo de outros pontos do país. Aos poucos, este cenário altera-se. Porém, edifícios como o do velho Hotel Luanda, o da velha "fábrica do gelo", e outros, residenciais, na fundamental Rua de Avelino Dias, estão irreconhecíveis. Outros imóveis, entretanto, conheceram cuidados de manutenção ou foram beneficiados. Nem tudo está mal, portanto. A Avenida Marginal (manutenção e higiene) está muitíssimo bem. A Cidade Alta, o Maculusso, alguns trechos da Maianga, o Bairro de Alvalade, souberam ou puderam defender-se. Seja como for, a recuperação do parque imobiliário de Luanda irá, sempre, traduzir-se num grandioso investimento financeiro, tecnológico e humano!

A RUA DIREITA

Durante a entrevista que nos concede, em Luanda, o governador provincial põe o acento tónico na momentosa questão dos velhos edifícios da "tipologia" urbana. Justino Fernandes continua esperançado em obter, no estrangeiro, talvez nomeadamente em Portugal, os apoios indispensáveis. Empresários angolanos e estrangeiros já se disponibilizaram. O que, por enquanto, é pouca coisa. O governador inclui, entre as prioridades, a recuperação e manutenção da histórica Fortaleza de S. Miguel. E, entretanto, vai requerer, nas altas instâncias angolanas, que a velha Rua Direita de Luanda volte a chamar-se assim. "Faz parte do acervo histórico da cidade", diz Justino Fernandes, ao JN, a propósito da localização, na Rua Direita, de edifícios carismáticos: o singular "palácio de ferro" e o palácio de dona Ana Joaquina. "Património mundial", sublinha o governador provincial de Luanda. Estatuto revigorante que deveria atribuir-se também a toda a zona da Cidade Alta e aos edifícios da velha matriz familiar do Bairro dos Coqueiros, do Bungo, do Casuno e da Rua da Pedreira.

"LUANDA-SUL"

É o tema central da conversa que o governador provincial sustenta com o enviado do JN: Luanda vai crescer para sul, com os novos bairros, mais casas para habitação. A Empresa Provincial de Projectos, em conjunto com uma multinacional, será o embrião de uma empresa mista (dotada de regime especial aduaneiro, fiscal e cambial) que deverá acompanhar outras iniciativas da "revitalização" urbana de Luanda. Entretanto, nos terrenos da nova urbanização "Luanda-Sul", uma inovação se desenha: na construção das "casas sociais" vão participar (mão de obra) os futuros utentes das novas urbanizações. Muitos jovens, prevê o governador de Luanda, poderão iniciar-se, deste modo, como operários ou artífices no ramo da construção civil. E no tocante às "casas económicas": "Com base no programa distribuímos o talhão, entregamos o projecto e o usufrutuário passa, imediatamente, à construção da casa", sintetiza, também, o governador provincial.

NEGÓCIOS

Os aviões que, saídos de Lisboa, pousam no aeroporto "4 de Fevereiro", em Luanda, despejam constantemente médios e pequenos comerciantes em busca de negócios rápidos. Em Luanda, hoje, praticamente, pode comercializar-se um pouco de tudo, de muitíssimas coisas. E, como a necessidade, em qualquer parte, aguça o engenho, não há "negócios" que em Luanda se não façam. Mesmo assim, o tradicional comércio geral, com pequenas lojas, outrora espalhadas pela cidade, está longe de um regresso em força. Lojas de vestuário há algumas, sim. De porta aberta e no coração de Luanda. Abundam, isso sim, as lanchonetes. E os pequenos restaurantes. Como quer que seja, há uma grande distância ética entre os que fazem negócios a pensar, também, no que é importante para a nutrição e a saúde das pessoas, e os que simplesmente chegam a Luanda dispostos a sacudir a "árvore das patacas" da nova era. Sem, claro está, olharem a meios. Nesse aspecto, Luanda é um verdadeiro lodaçal.

BANDIDAGEM

Luanda é uma cidade particularmente perigosa. O repórter avança com um episódio sintomático. Ao terminar, por volta das 19 e 30, no Bairro Azul, uma longa entrevista com Miguel N'Zau Puna, antigo secretário-geral da UNITA, proponho-me agarrar nos equipamentos e dirigir-me, se possível em corrida, para os acessos à Avenida Neves Ferreira, de ligação à "baixa" luandense. O entrevistado, e anfitrião, lança as mãos à cabeça, horrorizado: "Vai a pé e sozinho? Por favor! Não pense que o deixo sair daqui nessas condições, os meus auxiliares vão conduzi-lo até ao hotel...". E o deputado N'Zau Puna explicava o que eu, com efeito, já ouvira de outros luandenses: "Aqui, desaparecem pessoas sem deixar rasto. Não se trata somente de serem despojadas dos seus bens, até da própria roupa: as pessoas desaparecem, pura e simplesmente!" Enfim, o que é preciso, em Luanda como em toda a parte, é ter sorte. Umas vezes com "escolta" armada, outras vezes sozinho, aventurei pela cidade passos que me permitiram matar saudades e recolher elementos de reportagem.

OS PRIMEIROS TUMULTOS EM LUANDA

Nos primeiros dias de Julho de 74, dão-se os primeiros incidentes violentos em Luanda, provocando ainda mais apreensão numa população branca que via já muitas nuvens no horizonte. Meia centena de negros é morta em confrontos provocados por "ultras" brancos. No mês seguinte, os primeiros 30 mil portugueses viajam para a metrópole.

José Gomes

O Verão de 74 é vivido com enorme expectativa pela população branca. "Angola é nossa", insistira o antigo regime contra ventos que sopravam de outras antigas metrópoles europeias, e muitos tinham acreditado.
Era, mas certamente ia deixar de ser, e é uma cidade cheia de dúvidas quanto ao futuro que é abalada, nos primeiros dias do mês de Julho, por violentos confrontos - que constituiriam também a mais importante tentativa dos extremistas brancos para terem um papel naquele jogo.
O episódio - a descoberta, num musseque, às primeiras horas da madrugada de 11 de Julho, do corpo de um taxista branco estrangulado - "desencadeou um grande levantamento, tiros para um lado, tiros para o outro, e, durante um mês ou dois, a situação foi de grande tensão", recorda o professor Nuno Grande.
As circunstâncias do crime não são esclarecidas, mas poucas horas depois, ao princípio da manhã, na Avenida do Brasil, o ponto de passagem obrigatório para os negros que vinham dos musseques trabalhar na cidade, extremistas brancos concentram-se e agridem, insultam e ameaçam quem por ali passe.
Os tumultos não se ficam por ali. Cerca de meio milhar de manifestantes dirige-se ao palácio do governador, agredindo pelo caminho os negros que apanhavam à mão. Um guarda negro da Polícia de Segurança Pública foi espancado, a crer num comunicado da Casa de Angola a propósito dos acontecimentos.
Face à passividade das autoridades, que se limitam a apelar à calma, a agitação continua. Em grupos de cinco, exibindo as armas, fazendo-se transportar em táxis, os extremistas interceptam ao fim da tarde um autocarro, atacando-o a tiro. Várias pessoas são mortas, e uma manifestação silenciosa de negros é dispersada pela polícia de choque frente ao Palácio do Governador, à vista do general Silvino Silvério Marques.
A violência prossegue até ao fim da manhã do dia seguinte, quando é decretada a proibição de circulação de veículos motorizados, e o recolher obrigatório. O balanço é de pelo menos 50 mortos e 200 feridos.
A intenção dos "ultras" de passarem à acção era já conhecida. Corriam rumores que partidos brancos criados em Angola após o 25 de Abril, como a Frente de Resistência Angolana, o Exército Secreto de Intervenção Nacional e a Resistência Unida Angolana, que preconizavam a declaração unilateral de independência, baseada na supremacia branca, contavam com o apoio dos Flechas, as tropas negras treinadas pela PIDE, e de cerca de meis centena de mercenários catangueses, que tinham servido na guerra colonial e se encontravam ainda num quartel no Luso, hoje Luena.
Agostinho Neto, por seu lado, acusara o Partido Cristão-Democrata de Angola, liderado por Fernando Falcão, a Frente de Unidade Angolana e a FRA de financiarem o treino militar, por instrutores sul-africanos, em campos no Sul do país, de colonos portugueses para combaterem os movimentos de libertação.

PLANO PREMEDITADO

Tudo indica que o assassínio do taxista obecedeu a um plano preparado com antecedência.
"Em Junho, exactamente no dia 10 de Junho, houve uma reunião de pessoas, escolhidas segundo algum critério, que desconheço, no que era o Colégio Lisboa, perto do Hospital Militar", lembra Nuno Grande.
Aí, "um representante do dr. Agostinho Neto - recordo-me que era africano, mas tinha um nome holandês - alertou-nos para a possibilidade de um grande conflito armado na cidade de Luanda. Estava a preparar-se a realização do Campeonato do Mundo de hóquei em patins, já havia muitos estrangeiros na cidade. Ele anunciou que haveria um movimento, a partir de homens radicais de direita, brancos e negros, no sentido de desencadear a violência, denunciando um conjunto de operações que tinham sido detectadas".
"Então nós, os que estávamos nessa reunião, decidimos juntar um grupo e falar com o arcebispo de Luanda, para que nas missas fosse feito um apelo à tranquilidade e à paz", recorda o professor.
"Algumas das tais operações anunciadas aconteceram. Só que não tiveram o impacto que as pessoas esperavam. Houve uma, que desencadeou depois toda a confusão em Luanda, o assassínio do taxista, que fora também prenunciada pelo enviado de Agostinho Neto. Quando nos procurou, avisou que poderia ser assassinado um branco, pessoa indiscutivelmente aceite pela sociedade luandense. E foi assassinado o taxista, duma maneira estranha, num musseque", conclui.
A partir daí, conta o professor, "a cidade entrou num grande desequilíbrio, e quando eu vim (a Portugal), em Julho, já havia um êxodo muito grande, as pessoas já estavam todas amedrontadas com a confusão. Estabeleceu-se um clima de pânico, já havia a sensação que aquilo podia dar origem a um grande êxodo".
No mês seguinte, Agosto, 30 mil brancos viajam para Portugal.
Após os incidentes, a 22 de Julho, o general Silvino Silvério Marques é mandado regressar a Lisboa, e nomeada uma junta militar, encabeçada por Rosa Coutinho. As tropas portuguesas tomam o controlo da situação.

PORTUGAL RECONHECE DIREITO À INDEPENDÊNCIA

Dois dias mais tarde, a 24 de Julho, é aprovada a Lei 7/74, proclamada pelo general Spínola, a qual finalmente reconhecia "o direito à autodeterminação, com todas as suas consequências", incluindo a "independência dos territórios ultramarinos".
A lei é publicada a 27 de Julho, e, considerando "conveniente esclarecer o alcance" do ponto do Programa do Movimento das Forças Armadas segundo o qual "a solução das guerras no Ultramar é política e não militar", refere que esse princípio "implica, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à autodeterminação".
No artigo 2ho, a lei diz que "o reconhecimento do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a derrogação da parte correspondente do artigo 1.ho" da Constituição de 1933, que considerava aqueles territórios parte integrante de Portugal.
A 9 de Agosto, a Junta de Salvação Nacional anuncia o primeiro programa formal para a descolonização de Angola.
Era prevista a formação de um Governo provisório de coligação, após a assinatura de um cessar-fogo com os movimentos de libertação, que integrariam um Gabinete em condições de igualdade com representantes dos grupos étnicos mais significativos, entre os quais o dos "brancos" é referido explicitamente.
No prazo de dois anos, após um recenseamento, seriam realizadas eleições para uma Assembleia Constituinte, segundo o princípio de um homem, um voto, e, após a elaboração da Constituição, seriam realizadas eleições para o Parlamento e o Governo, cujos resultados Portugal se comprometia a respeitar. Era igualmente admitida a possibilidade de verificação, pelas Nações Unidas, das eleições.
O anúncio, que tinha por objectivo tranquilizar a população branca, acaba por ter algum efeito contrário.
O MPLA e a FNLA rejeitam o programa, devido à proposta de representação dos maiores grupos étnicos.
Dá-se o 28 de Setembro em Portugal, Spínola é afastado, e o novo presidente da República, general Costa Gomes, toma em mãos o processo de descolonização.
Pouco mais de uma semana depois, a 10 de Outubro, uma delegação portuguesa, chefiada pelo general Fontes Pereira de Melo, viaja para a capital zairense, Kinshasa, para conversações com Mobutu, encontrando-se com representantes da FNLA e do MPLA.
Em Novembro, Portugal assina acordos formais de cessar-fogo com os três movimentos.
Savimbi fora o primeiro a comprometer-se, em Junho, a cessar as hostilidades no mês de Outubro, e a UNITA abre a sua sede em Luanda a 10 desse mês. Segue-se-lhe a FNLA, no dia 16, e o MPLA, no dia 8 de Novembro.
A entrada dos movimentos de libertação em Luanda é uma supresa para muitos. "A chegada dos movimentos de libertação é uma supresa para muita gente, porque são grupos mal armados, mal preparados", recorda Vasco Vieira de Almeida, que viria a integrar, mais tarde, em Fevereiro, o Governo de transição.
Em fins de Outubro, Rosa Coutinho, que viera a Lisboa para assistir a uma reunião da Comissão de Descolonização, anuncia que Portugal está a realizar negociações com os líderes de cada um dos três movimentos de libertação para a formação de um Governo de transição.

PROJECTO PARA O HUAMBO VEIO ACABAR NO PORTO

O que era para ser o Instituto de Biomédicas do Huambo acabou por vir pegar de estaca no Porto, quando o professor Nuno Grande, que chegara a ir escolher o terreno na capital do Planalto Central, voltou para Portugal.

Foi com pena, mas sem azedume, que Nuno Grande deixou Angola. Veio de lá em Outubro de 1974, quando era vice-reitor da Universidade de Luanda, responsável pelo Instituto de Investigação Científica.
Viera a Portugal em Junho, de férias, e, quando estava para voltar, em Setembro, recebera um convite. "Tive a informação que se estava aqui a organizar o Instituto de Biomédicas, e um convite do ministro Magalhães Godinho". Mas as obrigações em Angola levaram-no de volta.
O projecto de um Instituto de Biomédicas para o Huambo tinha tido início no Carnaval de 1974, com os dr. Fernando Real e Rui Vaz Osório, com os quais Nuno Grande chegou a deslocar-se à então Nova Lisboa para escolher o local.
Porquê o Huambo? "Primeiro, porque havia muitos alunos. Angola tinha naquele altura no primeiro ano de Medicina 500 alunos, e já não comportava em Luanda esse número. Depois, porque este modelo interessava a Angola, era um modelo moderno de ensino da Medicina, e de aproveitamento dos recursos locais, e, ainda porque havia o Instituto de Ciências Veterinárias, o Instituto de Agronomia, e o Instituto de Investigação Médica. Estavam portanto criadas as condições para se lançar o Instituto de Ciências Biomédicas. Fomos lá escolher o terreno, mas depois aconteceu o 25 de Abril...", recorda o professor.
A partir da altura em que foi anunciado que Angola iria ser um país independente, Nuno Grande começa a organizar o regresso. "Era cidadão português, teria de vir participar na reorganização da sociedade portuguesa".
Regressa a Angola em Setembro, para os exames de segunda época, e fica até fins de Outubro, quando volta, definitivamente.
O professor conhecera Angola em 1965, como médico militar. "Fiz serviço militar até 67, e regressei a Portugal. Depois fui em comissão de serviço pela Faculdade de Medicina, e decidi radicar-me lá, porque as oportunidades para uma pessoa da minha idade eram muito grandes, mais do que as que tinha aqui. E aquela terra é atractiva, quer do ponto de vista da beleza natural, quer da afabilidade das pessoas. Era profundamente atractiva. Vivi nove anos e meio em Luanda, com grande intensidade e muita felicidade".
Como médico militar, recorda uma operação em Cabinda, numa altura em que se admitia a possibilidade de um surto de febre amarela. "Fui a Cabinda, tive de visitar o enclave todo, de uma ponta à outra, ver os militares aquartelados em todos os pontos, e concluí que não havia qualquer surto de febre. Mas quando houve um foco de febre amarela na cidade de Luanda, tive grandes dificuldades para mobilizar as autoridades, em nome da Ordem dos Médicos - eu era o presidente do Conselho Regional -, sofri muitas pressões das autoridades da época. Tentaram escamotear o surto, que ainda teve 600 mortos".
Quanto à descolonização, o pró-reitor da Universidade do Porto acha que dificilmente poderia ter sido diferente. "Tenho lido muita coisa sobre as descolonizações, portuguesa e outras. Estou convencido que não poderia ter sido de outra maneira. Se olharmos, por exemplo, para a descolonização da Índia, feita pelos ingleses - a primeira sugestão de descolonização da Índia é feita o século passado, pela rainha Vitória, passaram aquele tempo todo a preparar a independência, e veja como estão as coisas. Os processos de descolonização são sempre muito traumatizantes. Estou convencido que no caso de Portugal não podia ser diferente. Primeiro, porque é um processo agudo: está-se em guerra, e na semana seguinte já se está a tentar negociar. Segundo, Portugal é um país muito frágil, e ali cruzam-se conflitos de muita espécie, interesses internacionais. Veja que eles não conseguiram ainda encontrar um caminho para a paz, matam-se com armas extremamente poderosas, e que eu saiba não há fábricas de armas em Angola. Alguém as vende. Angola tem uma característica que a torna aptecível: é muito rica, e portanto os países poderosos e os ambiciosos não vão deixá-la em paz muito tempo, a não ser que disso tirem proveito".
Mas Nuno Grande compreende a mágoa que ainda sentem muitos dos que vieram. "Eu lembro-me das circunstâncias que se viviam em Portugal nos primeiros anos após o 25 de Abril, não só em relação aos que então eram chamados retornados, como em relação ao mundo produtivo, ao capital. Eram circunstâncias complexas. Em todo o caso, compreendo a mágoa das pessoas, porque eu próprio encontrei, à chegada a Lisboa, o que entendi como alguma frieza relativamente aos nossos problemas. Fiz um esforço no sentido de compreender. Admito que cada um tenha as suas próprias razões de queixa, mas se nos lembrarmos da confusão social que se vivia em Portugal nesse período, talvez se possa entender que não era simples organizar a evacuação de 500 mil pessoas sem que houvesse atropelos, que de facto houve".
O próprio professor foi vítima desse processo. "Vim com tranquilidade - acabei por chegar definitivamente a Portugal em Novembro de 74 - mas as minhas coisas, o meu património, ficaram lá. Aconteceu até uma coisa: tive de mandar dinheiro daqui para que as minhas mobílias viessem. Normalmente, as pessoas tinham muito dinheiro cá, mas eu não tinha - estava para comprar uma casa em Luanda, já depois do 25 de Abril. Cheguei a ir vê-la, pois acreditava, a longo prazo, que houvesse possibilidade de uma transição, admitia eu, ingenuamente. Só à última hora é que o negócio se gorou. Como disse, ainda tive de mandar dinheiro daqui, e as mobílias só vieram no ano seguinte. E fiquei em casa dos meus sogros até meados de 75".
Desse período, e da maneira como os portugueses se relacionaram com as colónias, guarda uma curiosa recordação: "Recordo-me que esteve nessa altura lá, em visita, um redactor do "Monde", que fez uma reportagem sobre Angola, e ele estava espantado com a relação entre o colonizador e o colonizado no terreno. Tinha ido ao Uíge, e vinha espantado: "Vocês são um povo estranho. Então agora é que estão a investir?". Havia pessoas que tinham vindo a Portugal buscar dinheiro para investir lá. "Vocês são completamente loucos!", concluiu ele".

MULHER ANGOLANA JÁ GANHOU A GRANDE GUERRA DA EMANCIPAÇÃO

Advogada, antiga combatente, Luzia Sebastião abre o "livro" de uma nova geografia social

Num terreno de imensas perspectivas como é o da mulher, a voz da advogada e activista Luzia Sebastião é simbolizante, em Angola, de grandes combates no interior da sociedade. Em declarações ao JN, na capital angolana, a antiga deputada do MPLA, em plena fogueira de uma oratória especialmente desassombrada, diz assim da sua convicção: "Poucos países no mundo de hoje, muito poucos mesmo, terão, como em Angola, uma tão forte panóplia de textos legais (Constituição, Lei da Família, Lei do Trabalho), consagrante dos direitos da mulher!".

Luís Alberto Ferreira
Enviado JN

JORNAL DE NOTÍCIAS - Nestes terríveis 20 anos de longas e penosas caravanas de problemas, no solo angolano, dir-se-ia que os níveis de resistência da mulher excederam, verdadeiramente, as expectativas...?
LUZIA SEBASTIÃO - Não excederam, antes corresponderam, plenamente, ao que dela seria de esperar. Basta ler a história, a história "total", de Angola, para compreender isso. A história remota e a história recente. Toda feita, esmaltada de sacrifícios e estoicismos da mulher angolana.
JN - Em todo o caso, abundam, na história destes 20 anos de independência, os sinais absolutos de que a mulher angolana se sobrepujou, se transcendeu a si própria.
LS - Tem razão quando diz que, ao longo de todos estes anos de vicissitudes vividos em Angola, a mulher foi dos elementos mais penalizados. Certamente, o mais penalizado. Mas, repare: nós, aqui, quando falamos da mulher, imediatamente a associamos à criança. Em Angola não podemos, nunca, deixar de aludir, muito objectivamente, às crianças, quando falamos das mulheres. As mulheres estão sempre ligadas às crianças. E o sofrimento das mulheres, naturalmente, acaba sempre por transmitir-se às crianças. Mesmo quando as mulheres, numa atitude que é uma constante, tudo façam para que o sofrimento chegue minimamente às crianças.
JN - Quais são os cenários de vida em que situa, na Angola destes últimos 20 anos, as vicissitudes enfrentadas e sofridas pela mulher? A guerra alterou ou afectou a noção dos valores. Mas, em certa medida, a mulher angolana parece ter permanecido imutável, igual a si própria.
LS - Ela foi um elemento duramente penalizado. A mulher teve que ficar a gerir a família, a maior parte das vezes em condições infra-humanas, ou desumanas. Porque os homens, os seus companheiros, tinham de estar nas frentes de combate. Numa primeira fase, em muitos casos, elas também iam para as frentes de combate. Porém, à medida que a guerra se foi desenvolvendo, concluiu-se que essa não era a melhor solução. E a mulher passou, então, a permanecer à frente da família, a ficar em casa. Digo "ficar em casa", mas não significa que ela permanecesse, só e simplesmente, entre as paredes domésticas. Pelo contrário, foi chamada a intervir em todas as frentes da vida familiar. Inclusivamente naqueles casos em que o marido regressava da guerra ferido ou doente, ou mutilado: ela tinha de trabalhar, também, fora de portas, e as parcas economias por ela angariadas estiveram, de facto, durante anos, na base da manutenção do agregado familiar.
JN - E, entretanto, os desenvolvimentos da guerra, com todo o seu séquito de violências, foram abrindo outros horizontes de sofrimento...
LS - Sofrimento, por vezes, estarrecedor! Quantas vezes a mulher angolana perdeu filhos, perdeu o marido, quantas?

HEROÍNAS!

JN - Consegue imaginar, ou reproduzir, o quadro físico e psíquico da vida das mulheres que acompanharam os homens na odisseia da luta armada de libertação, antes da independência?
LS - Certamente que consigo, eu própria participei na luta armada de libertação e até foi mesmo lá que eu conheci o homem com quem casei e que é, hoje, o meu marido. Em muitos casos, de facto, a mulher angolana acompanhou o homem, ela foi para a mata. E, muitas vezes, ela própria esteve na frente de combate. Numa vigorosa duplicidade de funções. Mas, evidentemente, houve momentos em que se tornou difícil às mulheres angolanas conciliar essas duplas missões. A frente de combate e a família. As crianças e a gestão dos assuntos correntes da família, no dia a dia.
JN - O regresso aos centros urbanos, nomeadamente nos casos de Luanda, Benguela e Huambo, arrastou consigo, entretanto, uma nova problemática. Lembro-me de várias situações, nesse domínio: a atitude da mulher perante o discurso ideológico do poder, a nível das instituições, e o seu papel na defesa de valores tradicionais e básicos no mundo das relações humanas.
LS - Antes de mais seria de toda a utilidade referir que a mulher angolana - e isto, se me permite, não significa, de maneira nenhuma, ser imodesta - é uma heroína. Uma heroína, sim! Heroína no mais nobre, mais profundo, sentido da palavra. (Sorrisos de emoção deslizam no semblante de Luzia Sebastião). Ao longo destes vinte anos de independência, a mulher angolana, fundamentalmente, procurou, pelos meios ao seu alcance, acompanhar os novos desenvolvimentos no país. Portanto: nunca se colocar à margem desse processo. É evidente que a presença da mulher angolana na maior parte das situações, e em termos globais, pode ainda ser considerada diminuta. Em quantidade e, talvez, também, em qualidade. Se bem que, se formos ver com atenção, já hoje, em Angola, nós temos muitas mulheres com formação superior, mulheres licenciadas. E outras, igualmente, com excelente nível de preparação.
JN - Considera que a mulher está significativamente representada na administração angolana?
LS - Até mesmo no elenco governamental. O número de mulheres ultimamente chamadas a ocupar lugares no Governo de Angola pode ser, já, considerado aceitável. Mulheres à frente de ministérios e secretarias de Estado. É uma constante na Angola de hoje. Além disso: temos muitas mulheres na Saúde. Como médicas, como enfermeiras, como técnicas, como administrativas, como auxiliares. Um número verdadeiramente vultoso. E, outro exemplo; na advocacia. A jurisprudência, em Angola, encontra-se principalmente servida por mulheres. Representada por mulheres. Portanto, a mulher angolana, sustida embora por determinadas restrições, ou limitações, dentro de muitíssimos condicionalismos, conseguiu intervir. E contribuir, efectivamente, para o desenvolvimento que hoje se regista em diferentes níveis da vida angolana.

MATRIARCAS!

JN - É a resultante de um propósito firme, naturalmente. Para ir até onde? Qual é a fasquia?
LS - O que a mulher angolana, fundamentalmente, pretende, é poder participar, directamente, na resolução dos problemas mais sérios. Até porque ela continua a ser o verdadeiro suporte da família. Da estrutura familiar. Cá estamos nós, portanto, a voltar ao coração do tema inicial desta nossa conversa. A mulher, em Angola, tem de gerir os assuntos centrais da família. Mesmo quando ela é ministra, quando desempenha um cargo na administração central. E esta duplicidade de desempenhos, em Angola, não se processa como acontece em países organizados e sem os problemas extremamente complexos que aqui enfrentamos. A mulher, aqui, é a pessoa mais interessada no bom funcionamento dos serviços, das instituições, de tudo. Para que a sua tarefa seja, minimamente, facilitada.
JN - Refere-se, certamente, às múltiplas questões do dia a dia: transportes, abastecimentos, segurança...
LS - Naturalmente. Repare: se a escola estiver a funcionar bem, se o professor estiver lá motivado e com o seu salário em dia e compatível, a mulher está sossegada porque sabe que vai largar o filho na escola e o filho vai receber uma boa educação. E, em casa, ela já não terá tanto trabalho na educação do filho, ou na sua instrução. E mais: se o hospital estiver a funcionar como deve ser, se o médico e os medicamentos estiverem lá, a mulher está mais sossegada porque não vai gastar tanto tempo cada vez que precisar de levar a criança ao médico. Porque, na verdade, continua a ser ela quem terá de levar a criança ao médico, apesar de ser ministra ou secretária de estado. Se o comércio estiver organizado... se os bens essenciais não faltarem... se os transportes colectivos...
JN - Há uma demissão "estratégica" do homem angolano nestas "frentes de combate" quotidiano?
LS - Eu não creio que isso seja o resultado de uma atitude machista do homem angolano. Claro que a mentalidade do homem angolano ainda não mudou. Ou, pelo menos, não mudou completamente. Mas, enfim, também não exageremos: eu cruzo-me com muitos pais que vão levar os seus filhos à escola... não é ?

CAMINHOS DE DOR E GLÓRIA POR ENTRE AS LEIS DA VIDA

Constituição, Lei da Família e Lei do Trabalho "escoltam" o universo da condição feminina

O regresso dos combatentes angolanos a Luanda, Benguela, Huambo e outros centros urbanos deu lugar a alguns fenómenos hiperbólicos do foro social. Mormente, no campo afectivo: os homens que, olvidados os tempos e as peripécias nas matas do Norte, do Leste, de Cabinda, abandonaram as antigas companheiras e elegeram "raparigas mais evoluídas". Ou "raparigas mais estilizadas". Mais "pomposas". (Em 1976, em Luanda, este enviado do JN ouviu relatar um episódio em que, alegadamente, ter-se-ia envolvido, como "juiz", o próprio presidente Agostinho Neto. Convidado para padrinho de casamento de um destacado oficial das FAPLA, o líder angolano não gostou de constatar que "afinal a noiva não era a companheira das guerrilhas na mata, já era outra, mais nova, mais atraente!!!").
LUZIA SEBASTIÃO - Claro que nos demos conta desse fenómeno. Eu, por exemplo, que tive o privilégio de viver, por dentro, a luta de libertação; eu, que lá conheci o meu marido e lá casei, não poderia ter ignorado tal fenómeno. Houve, de facto, companheiros que, por determinados circunstancialismos da vida, mudaram. Digamos, entre aspas, "encontraram coisa melhor". Olhe que não foram só os maridos a abandonar as mulheres, também houve mulheres que elegeram outros homens. Uma situação, ao fim e ao cabo, natural. Algumas situações foram, de facto, bastante dolorosas. Principalmente quando se tratou de senhoras que, do ponto de vista cultural, eram de nível mais modesto.
JORNAL DE NOTÍCIAS - Um pulso incerto e desigual para as mulheres angolanas menos "sofisticadas", no fim de contas.
LS - Pode, talvez, dizer-se assim. Em muitos casos, eram mulheres que, num quadro perfeitamente normal nas relações humanas, foram ultrapassadas por factores próprios de uma sociedade nova. Nova e num meio urbano como aquele que a gente encontrou, por exemplo, aqui, em Luanda, depois dos tempos da mata. Situações perfeitamente normais no relacionamento entre pessoas. Casos muito concretos de mulheres que tiveram dificuldade em encontrar emprego, em obter uma nova inserção no conjunto da sociedade.
JN - A letra, os postulados da Constituição angolana contemplam todas as vertentes da condição feminina?
LS - Note: eu não sei se haverá, no mundo dos nossos dias, muitos países, ou algum país, onde as mulheres já conseguiram que as leis contemplem as suas mais importantes reivindicações. Os textos existem, a prática é que já será outra coisa, em Angola. Nós, angolanos, costumamos dizer: "Do texto da lei para a prática vão outros quinhentos!". Mas, a verdade é que nós já conseguimos transcrever, para os textos legais, mesmo a partir da própria Constituição, verdadeiras vitórias. Da emancipação da mulher angolana. E, sobretudo, da concretização do princípio da igualdade de direitos que vem no artigo número 18 da Constituição.
JN - Essa importante legislação esgota-se no texto da Lei Constitucional?
LS - Há outras leis avulsas que desenvolvem, ainda, todos esses articulados. Sem dúvida: nós temos muito bons textos. Não é em todo o mundo que a mulher consegue cinco meses de licença de parto, como acontece aqui em Angola. Onde a mulher, todos os meses, tem direito a um dia de dispensa para se dedicar a assuntos da família. Há leis avulsas do trabalho que asseguram essa regalia. Que é um dia que tanto pode ser gozado pela mãe como pelo pai! Não abundam, por esse mundo, os textos legais que contemplam, numa Lei da Família, o princípio da igualdade entre marido e mulher. Não está no texto da Constituição, mas está na Lei da Família. Quantos textos constitucionais no mundo reconhecem, à mulher casada, o direito de, por si só, registar um filho nascido fora do casamento e sem se ter divorciado?
JN - Portanto, todas as condições, em Angola, para que a mulher consiga o salto qualitativo para uma emancipação completa?
LS - Todas as condições. Inegavelmente. Podemos, felizmente, proclamar: a mulher angolana regista, já, verdadeiras vitórias no campo da igualdade social!

MOSCOVO QUIS DAR A SAVIMBI A VICE-PRESIDÊNCIA DO MPLA

"Histórico" da UNITA revela ao JN as contradições entre os principais protagonistas da luta armada

Miguel Maria N'Zau Puna, durante 24 anos secretário-geral da UNITA, afastou-se, dramaticamente, de Jonas Savimbi, pouco antes das eleições angolanas, em 1992. Hoje, deputado na bancada do Fórum Democrático Angolano (FDA), N'Zau Puna reflecte, em Luanda, sobre a evolução do país.

Luís Alberto Ferreira
Enviado JN

Quais os passos madrugadores da UPA-FNLA e do MPLA? Quem, de facto, convenceu Jonas Savimbi a ingressar na UPA-FNLA? Que antecedentes tapizaram a decantada ruptura entre Savimbi, secretário-geral, e Holden Roberto, presidente da UPA-FNLA? Savimbi "namorou", de facto, o MPLA? E, por isso, Holden Roberto quis eliminar Savimbi?
Miguel N'Zau Puna responde ao JN sem rodeios e sem calar convicções. Como quer que seja, a retrospectiva só parcialmente desvenda o que terá sido determinante e unívoco na criação da UNITA.
No peristilo da entrevista, que decorre, num entardecer cacimboso, no Bairro Azul (Samba), em Luanda, Miguel N'Zau Puna assegura que, em 1961, "muitos angolanos", ele próprio, "apoiaram o 4 de Fevereiro sem verdadeiramente saber quem era o partido ou movimento que liderava a sublevação nacionalista".
JORNAL DE NOTÍCIAS - A UNITA não existia, ainda, em 1961, mas certamente que, no interior do movimento, mais tarde, não subsistiram dúvidas quanto à autoria intelectual e material do 4 de Fevereiro em Luanda...
N'ZAU PUNA - Nenhumas dúvidas. Foi o MPLA quem desencadeou, em Luanda, o 4 de Fevereiro. As primeiras acções armadas contra o colonialismo começaram aqui mesmo, em Luanda. Com o 4 de Fevereiro. E as polícias coloniais, com a PIDE ao centro, iniciaram logo a repressão. Abafaram, praticamente, o movimento. Não havia condições para a revolução, nas cidades. É assim que começa a clandestinidade. A UPA, futura FNLA, de Holden Roberto, entra em acção no mês de Março, no norte de Angola. E torna-se mais conhecida. Ouve-se falar da UPA até na Namíbia, no Botswana e na Zâmbia... E de Luanda fogem para Kinshasa, via Cabinda, muitos angolanos.
JN - Onde estava Jonas Savimbi?
NP - Em Portugal, de onde foge para a Suíça, via Paris. Savimbi dá, então, início a uma digressão por países africanos. Vai a uma conferência em Kampala e segue dali para Nairobi, onde o "velho" nacionalista queniano Jomo Kenyatta se encontrava em regime de residência vigiada. Por imposição das autoridades (coloniais) britânicas. Foi o "velho" Kenyatta quem convenceu Savimbi a ingressar na UPA-FNLA, de Holden Roberto.
JN - Holden conhecia Jonas Savimbi?
NP - Holden Roberto tinha-se deslocado, anteriormente, à Suíça, para convencer Savimbi a aceitar o cargo de secretário-geral da UPA, mais tarde FNLA. Savimbi pediu-lhe que desse a conhecer o programa do movimento em todas as suas vertentes. E não gostou do que viu. Convincente foi, em Nairobi, Jomo Kenyatta. Ele convenceu Savimbi com os seguintes argumentos: "Se você, Savimbi, acha que a UPA-FNLA está mal estruturada, junte-se a ela, junte-se a Holden Roberto e mostre aquilo que aprendeu na Europa, nomeadamente em Portugal e na Suíça. Só assim você poderá participar na revolução". Jonas Savimbi rende-se aos argumentos de Kenyatta, vai para Kinshasa e ingressa na UPA-FNLA. Holden é o presidente e ele é o secretário-geral!

SAVIMBI "MINISTRO"

JN - Savimbi ajudou a UPA a organizar a luta armada, como lhe recomendou o líder queniano?
NP - Savimbi e Holden trabalham juntos, inicialmente Savimbi faz viagens, missões diplomáticas em vários pontos da África e do Mundo. Ele testemunha a fusão da UPA com o PDA (Partido Democrático Angolano), de que resulta, finalmente, a FNLA. Está-se em 1962 e Savimbi conclui, tal como Holden Roberto, que é preciso evoluir para outros patamares na luta armada de libertação. Que a própria UPA tinha, já, em Março de 1961, desencadeado no norte de Angola, mormente na região de São Salvador. Constituída a FNLA, decide-se logo a formação de um "governo". O GRAE, Governo Revolucionário de Angola no Exílio.
JN - Isto, portanto, em 1962. Que cargo atribuiram a Savimbi nesse "governo", o GRAE?
NP - O cargo de ministro das Relações Exteriores. Savimbi participa amplamente na divulgação do GRAE, que recebe em África múltiplos apoios. E quando se dá o processo de formação da OUA, Jonas Savimbi é escolhido para a direcção do Comité dos Movimentos de Libertação. Corria o ano de 1963. Prepara-se um documento sobre os movimentos de libertação que deve ser apresentado aos chefes de Estado africanos, no âmbito da OUA. Mário Pinto de Andrade, do MPLA, faz parte da respectiva comissão redactorial. Surge a primeira fricção, entre Savimbi e Holden, por uma questão "hierárquica": Savimbi entende que a leitura do documento deve ser feita pelo histórico queniano Oginga Odinga. Holden, contudo, argumenta que ele próprio, presidente da FNLA, deve proceder à leitura do texto. A preferência acaba por recair em Oginga Odinga...
JN - Foi um primeiro sinal público das diferenças entre Holden e Savimbi, na UPA-FNLA. Mas o "tapete" do quotidiano,em Kinshasa, era escorregadio: cresciam as clivagens, na FNLA, entre as duas tendências...
NP - A "francófona", de Holden Roberto, e a "lusófona", de Jonas Savimbi. Sim, o problema existia. Definem-se grupos no interior da FNLA, em Kinshasa. Mesmo no seio do GRAE (Governo Revolucionário de Angola no Exílio) as clivagens notavam-se. Os mais novos apreciavam o dinamismo de Jonas Savimbi. Mas houve quem conseguisse influenciar Holden Roberto. Convencê-lo de que Savimbi estaria a ir longe de mais na estratégia da luta de libertação. Claro que os quadros "francófonos" da FNLA estavam, em Kinshasa, num "habitat" familiar. Tinham estudado, esses angolanos, com Holden Roberto e com indivíduos zairenses.

NETO E O MPLA

JN - Jonas Savimbi sentia-se, portanto, na FNLA, numa situação incómoda, tanto mais que, para chegar à presidência, teria de desbancar Holden Roberto, instalado de pedra e cal... até hoje. Savimbi voltou-se, então, para o MPLA?
NP - Quando o dr. Agostinho Neto chega a Kinshasa, fugido de Portugal, e ocupa a presidência do MPLA, nós (eu, o dr. Savimbi e outros) já lá estávamos. Havia, necessariamente, certas afinidades. Dizia-se: "Nós todos viemos de Angola..." Éramos os "lusófonos" da FNLA, os "lusófonos" do MPLA... No interior da FNLA, congratulamo-nos com a fuga de Agostinho Neto.
JN - Mas, na FNLA, em 1963, era a "tendência Savimbi" quem assumia, no concreto, as aproximações ao MPLA?
NP - O próprio Savimbi. Lembremos que ele, em Portugal, quando estudante, convive com angolanos que, depois, militam no MPLA em Kinshasa. A aproximação entre Savimbi e o MPLA tornou-se inevitável, até porque Savimbi se sentia incómodo e hostilizado pelos "francófonos", na FNLA.
JN - E Savimbi acabou mesmo por ir a Moscovo. Em que contexto pretendeu Jonas Savimbi a ajuda dos soviéticos?
NP - Ao desenhar-se a ruptura com Holden Roberto e a FNLA; Savimbi diligenciou enviar guerrilheiros para a União Soviética, para serem treinados. O próprio Savimbi foi, então, a Moscovo. E registou-se um impasse. Os soviéticos queriam que Jonas Savimbi, em vez de meter ombros à criação da UNITA, aceitasse o lugar de vice-presidente do MPLA. Savimbi recusou a proposta.

HOLDEN DESCOBRIU A "TRAIÇÃO" E AMEAÇOU PRENDER SAVIMBI

O futuro líder da UNITA "deu a entender" ao dr. Neto que acarinhava
a hipótese de mudar para o MPLA

"Eu não sei se a ideia chegou mesmo a dominá-lo, mas é verdade que Savimbi deu a entender ao MPLA que encarava a hipótese de se juntar ao dr. Agostinho Neto", disse também, ao JN, Miguel N'Zau Puna.
O antigo secretário-geral da UNITA pensa que os soviéticos, quando "propuseram" ao dr. Savimbi a mudança (da UPA-FNLA) para o MPLA, onde ocuparia a vice-presidência, pretendiam esta simples coisa: concentrar, à volta de Agostinho Neto, o maior número possível de nacionalistas angolanos.
Miguel NZau Puna evita, contudo, cair na assertiva de que o dr. Neto estaria totalmente receptivo à iniciativa ou pretensão dos russos. Ele admite, simplesmente, que Agostinho Neto iria, talvez, compreender que a vice-presidência (do MPLA) para Savimbi constituiria uma "acomodação", que poderia até ser meramente transitória.
NZAU PUNA - Uma coisa é certa: numa reunião de quadros "lusófonos" da UPA-FNLA, efectuada em Kinshasa, Jonas Savimbi advertiu-nos: "Nem a FNLA, nem o MPLA; não servem. Eles têm os escritórios aqui, no Congo, fora de Angola, portanto. Estão bem instalados e deixam os camponeses angolanos entregues a si próprios". Savimbi teorizava sobre a urgência de criar um movimento cuja direcção deveria lutar, ao lado do povo, no interior de Angola.
JORNAL DE NOTÍCIAS - Quando foi que Holden Roberto se deu conta das aproximações de Savimbi ao dr. Neto e ao MPLA? Miguel NZau Puna acompanhou, presencialmente, esses desenvolvimentos?
NP - Eu mantinha, com Savimbi, uma colaboração estreita. Foi em 1963 que o presidente da FNLA, Holden Roberto, soube dos contactos Savimbi/MPLA. Holden dirige-se à capital da Tanzânia para participar numa reunião da OUA. Ali descobre tudo. Ele não estava preparado, em 1963, para dar cobertura a semelhante coisa: contactos com Agostinho Neto e o MPLA. Havia, como há pouco disse, na UPA-FNLA, um clima discriminante adverso não só para Savimbi e seus companheiros mas, também, para o MPLA. Holden, praticamente, mal falava o português. Era um puro "francófono".
JN - Holden, depois da reunião da OUA em Dar-es-Salam, quis romper com Savimbi por este ter contactos com Agostinho Neto?
NP - Pior do que isso. Holden Roberto anunciou, na Tanzânia, a sua intenção de, mal chegado a Kinshasa, mandar prender Savimbi. Eu próprio seria, igualmente, encarcerado, mas as coisas não tiveram esse desfecho. Porque, entretanto, agudizaram-se as dificuldades que o MPLA experimentava em Kinshasa, onde o regime se tornava intratável para Agostinho Neto e seus homens. O MPLA acabou por ter de se transferir para a vizinha Brazaville, na outra margem do rio Zaire.

"ORDEM"PARA O MPLA: INTEGRAÇÃO...NA FNLA!

Acabava a Organização da Unidade Africana, OUA, de reconhecer o MPLA e a FNLA como "os únicos movimentos de libertação de Angola". De súbito, conta Miguel N'Zau Puna ao JN, uma comissão da OUA desloca-se a Kinshasa. O MPLA estava em dificuldades operativas. A UPA-FNLA, dividida. E os enviados da OUA verificam, no terreno, que é a FNLA quem tem, de facto, homens a combater. Face a tal constatação, a Organização Africana "ordena", em medida talvez insidiosa: que o MPLA seja, com os seus quadros, absorvido pela FNLA, de Holden Roberto!
"A título individual", recorda Miguel N'Zau Puna, segundo o argumento da OUA, cuja comissão incluia elementos da Nigéria, Congo-Brazaville, Argélia e Guiné-Conakri.
JN - O MPLA não tinha, em 1962/63, guerrilheiros no terreno?
N'ZAU PUNA - Não tinha. Porque, uma vez retirado, obrigado a retirar-se do Congo-Kinshasa para o Congo-Brazaville, ficou quase mutilado. Mas, num rasgo de firmeza, o dr. Agostinho Neto recusou a integração na FNLA, mesmo "a título individual", como pretendia a OUA. A quem Neto mandou recado: "Se nós, MPLA, trabalhamos agora oito horas, diariamente, vamos passar a trabalhar dezoito!". Foi assim que o MPLA meteu mãos à abertura da sua "segunda região", nas matas de Cabinda.
JN - Que apreciação fez Jonas Savimbi deste caso?
NP - Achou coerente a postura do dr. Neto. Savimbi tinha por Neto uma confessa admiração. Admirava-lhe a coragem e a criação poética revolucionária. Admirava o facto de Agostinho Neto ter desafiado, em Portugal, o aparelho colonial-fascista. Savimbi discordava das posições de alguns elementos do MPLA, mas mantinha com Neto um certo entendimento.

ELE NÃO SE SENTE DERROTADO E NÃO ACEITA ENTRAR NO REGIME!

Miguel N'Zau Puna prevê que o líder do movimento do "Galo Negro" exija o máximo para evitar represálias dos seus próprios soldados...

Só mesmo quem conheça muito bem Jonas Savimbi pode expressar-se com a precisão, e o desenfado, de Miguel N'Zau Puna. Um dos fundadores da UNITA. E, por certo, também, um dos beneficiários intelectuais dos cerca de 4000 títulos que Savimbi acarinhava na sua biblioteca multidisciplinar da Jamba. N'Zau Puna, que reconhece "a espantosa capacidade de trabalho" de Jonas Savimbi, entende que ele "não vai renunciar ao partido, nem à força militar". Logo, muito dificilmente o líder da UNITA aceitará uma das (duas) vice-presidências da República angolana.

Savimbi, um homem que "não aceita conselhos de ninguém", no partido, "deve estar a preparar qualquer coisa diferente", admite, também, Miguel N'Zau Puna. O "Galo Negro" pode estar à espera da "consolidação" de Jacques Chirac e da "queda" de BilL Clinton a favor dos republicanos...
O repórter do JN faz, em Luanda, o que lhe compete: além de revisitar, com protagonistas de carne e osso, os caminhos da história remota, tenta convencer políticos e militares da utilidade de uma avaliação do processo de paz. Isaías Samakuva, da UNITA, abandona subitamente Luanda. Rumo ao Bailundo, quartel-general do "Galo Negro". O general Ben-Ben também se encontra no Bailundo: queixa-se de ter sido vítima, em Luanda, de um atentado; as autoridades referem-se a uma bala perdida, presumivelmente disparada para o interior da casa do carismático general da UNITA.
Na capital, elementos próximos do Governo e do MPLA sussurram, junto do enviado do JN: "Até agora, a UNITA mandou para os acantonamentos, somente, uma garotada, que não tem nada a ver com os seus guerrilheiros".
É a desconfiança reinstalada. O representante especial das Nações Unidas farta-se de levar as mãos à cabeça e, quando pode, vibra alguns murros na mesa.
Miguel Maria NZau Puna, o antigo secretário-geral da UNITA, está disponível para falar, também, do presente. E nem sequer se demite de arriscar algumas previsões: "Jonas Savimbi não se considera derrotado!", avisa. Ele conhece bem o líder da UNITA, com quem trabalhou desde a fundação do movimento.
JORNAL DE NOTÍCIAS - Mudaram os dados, no terreno. A África do Sul já não é a mesma. Mobutu não tem sossego. E o general João de Matos, do Exército governamental, chegou a pensar numa vitória esmagadora e definitiva sobre as FALA. Face a estes indicadores: a UNITA poderia, ainda, reacender a guerra em Angola?
N'ZAU PUNA - O material que a UNITA tem, ainda, escondido em parte incerta, pode não proporcionar acções militares de vulto, mas será o suficiente para, durante algum tempo, causar danos. Com isso, voltaria a crescer a insegurança. E os investidores fugiriam, mais uma vez.

REPRESÁLIAS

JN - Quais serão, nesta altura, os verdadeiros propósitos de Savimbi?
NP - Savimbi está a querer ver o que é que ganham, ele e os seus homens. Qual é a contrapartida. Savimbi não vai limitar-se a ocupar um posto relevante na nova hierarquia do poder em Angola. Ele pretende obter, também, cargos para os seus homens. Para que se sintam recompensados. Se o não conseguir, o próprio Savimbi corre sérios riscos na UNITA. Iriam verificar-se represálias. Savimbi deve ter por aí, ainda, muito armamento escondido. Que o Governo e as Nações Unidas não controlam. Enquanto não houver uma clarificação total, ele poderá, sempre, dizer que não autorizou nem tem nada a ver com esta ou aquela fustigação efectuada pelos seus soldados. "Foi sem o meu conhecimento", dirá ele. Porém, no caso de haver entendimento com o MPLA, com o Governo, Savimbi já terá de assumir concretamente as suas responsabilidades. Porque, na UNITA, ninguém desobedece ao Savimbi.
JN - Recentemente, Savimbi confessou-se arrependido do comportamento que assumiu, em Luanda, em 1992, depois das eleições. E também já reconheceu o que sempre negara obstinadamente: ter pactuado com o exército colonial português. Estes rasgos vão beneficiar ou prejudicar a imagem de Savimbi junto do povo angolano?
NP - De uma coisa estou seguro: com estas jogadas todas, Savimbi quererá tudo, tudo, menos queimar a sua própria imagem. Estas confissões, estes arrependimentos, o "perdão" que ele anda a suplicar, não é nada daquilo que ele diz ou propõe no seu comité restrito, na UNITA. Savimbi é assim: dentro de casa, uma linguagem. Fora, outra linguagem. Ele sabe muito bem que não é cómodo aceitar determinadas indulgências. Isso pode levá-lo, ainda, à barra dos tribunais. Só com fortíssimas garantias de ser amnistiado o Savimbi aceitaria determinados "consensos".
JN - E quanto à opinião pública angolana?
NP - Depois de tantos anos, o povo angolano está saturado, já não aguenta mais guerras. Se o Savimbi cumprir em aspectos realmente construtivos para Angola, ele poderá, ainda, conquistar muita popularidade junto dos vários grupos sociais.

RESSENTIMENTOS

JN - Para si, Miguel NZau Puna, que tão bem conhece Jonas Savimbi, é um dado adquirido que ele poderá aceitar a vice-presidência adjutória de José Eduardo dos Santos?
NP - São duas vice-presidências. Se fosse apenas uma, é possível que Savimbi "vergasse" um pouco. Mas, duas vice-presidências...? A UNITA é bem capaz de indigitar alguém, um outro dos seus dirigentes, quando no seio do partido terminarem os debates sobre o assunto. É preciso ver, também, que Jonas Savimbi não vai querer abandonar o partido e a força militar. São duas coisas importantes para o Savimbi. Ele é um político, mas a força armada, para Savimbi, é uma forma de implementar a política partidária. Savimbi prefere continuar no partido e preparar-se, assim, para as futuras eleições. E ele também calcula que os acantonamentos irão, em parte, debilitá-lo.
JN - Uma leitura em termos absolutos: por que é que Jonas Savimbi não se modera? Ambição? Complexos? Ressentimentos?
NP - Há, pelo menos, dois estigmas nucleares. Primeiro: Savimbi sempre dizia, desde os tempos de Kinshasa, que os angolanos do Norte sempre nutrem um complexo de superioridade; porque os angolanos do Sul, nomeadamente os ovimbundos, foram levados para as plantações de café do Norte. Eu tive de lembrar-lhe, um dia, que isso não está certo. Quem arrastou para as plantações do Norte os angolanos do Sul foi o colonialismo português. Segundo: Savimbi costuma dizer: "Eu lutei contra os portugueses, contra os russos, contra os cubanos, e agora vou ficar sem o poder em Angola?!". Savimbi, quem sabe, talvez se torne um pouco moderado. Mas essa moderação, por aquilo que eu conheço dele, não deve significar uma mudança!.

UNITA E SWAPO TIVERAM OS MESMOS ACAMPAMENTOS!

Na presença de Miguel N'Zau Puna, em Pretória, durante uma recepção oficial, Peter Botha, então presidente sul-africano, voltou-se para Jonas Savimbi e justificou-se: "Tirarmos o Nelson Mandela da prisão? Se o fizermos, não tarda muito estaremos nós próprios no lugar dele. Atrás das grades!".

Savimbi teria sugerido a Peter Botha, durante a conversa, a libertação "imediata" de Mandela. O episódio, naturalmente, ocorreu há alguns anos. N'Zau Puna tentava, assim, convencer o enviado do JN da bondade "ideológica" das relações de Savimbi com o regime do "apartheid". O que, deveras, não conseguiu. Bastaria reflectir sobre o que o antigo secretário-geral da UNITA nos disse sobre o "carácter" das relações de Savimbi com os americanos: "Ele está muito agradecido aos Estados Unidos porque foi deles que recebeu as armas para se opor aos aviões e aos tanques do MPLA. Não esquece os grandes investimentos dos americanos. E, agora, ele espera que os seus amigos republicanos reapareçam no poder, voltem à Casa Branca!".
Para Savimbi, os "bons" são sempre, e só, aqueles que o ajudam.
Savimbi, como quer que seja, desde muito cedo evidencia uma considerável desenvoltura nas relações internacionais, dentro e fora do Continente Africano.
Aprisionado na Zâmbia (pelo regime de Kaunda) no tempo da guerra colonial, Savimbi contou com os bons ofícios de Nasser, que lhe deu assistência no Cairo. Entretanto, na Tanzânia, regressado da China, Savimbi conhece o pessoal da SWAPO (Namíbia).
A SWAPO tinha escritórios em Dar-es-Salam. Era o início de um "processo" colaboracional que, hoje, leva Miguel N'Zau Puna a garantir-nos que "a UNITA se antecipou ao MPLA nas relações factuais com a SWAPO de Sam Nujoma".
JORNAL DE NOTÍCIAS - Mas não é também um facto que a maior carga referencial na região contempla o binómio MPLA-SWAPO?
NZAU PUNA - Está certo. Mas muito antes de se formar esse cenário MPLA-SWAPO, quando o Savimbi era secretário-geral da UPA-FNLA, e ministro das Relações Exteriores do "governo" do GRAE, já ele tinha entendimentos com a SWAPO. E, durante a luta de libertação nacional, na área do Cuando Cubango, praticamente os acampamentos dos guerrilheiros da UNITA e da SWAPO estavam geminados. Os homens da SWAPO iam combater nas envolventes da Namíbia e, depois, regressavam para junto da UNITA. A SWAPO recebia armas da OUA, a UNITA chegou a utilizá-las, quando precisou dessas armas como de pão para a boca. A tal ponto que os homens da SWAPO, o general Dimo, por exemplo, nos rotularam de gatunos!
JN - Mas, posteriormente, o MPLA monopolizou essas relações com a SWAPO e desempenhou, até, um papel histórico notável na independência da Namíbia.
NP - Das movimentações conjuntas UNITA-SWAPO em Luiana, Mucusso, Mutumbo, Chitembo, em corta-mato até Caiundo, cerca do Cunene, passou-se para outros cenários, outros tempos. Sem esquecer, ainda, que foi com a ajuda da SWAPO que o dr. Savimbi, regressado do "exílio" no Cairo, em 1968, conseguiu passar, através da Tanzânia e da Zâmbia, para o interior de Angola. Mas, enfim, as coisas mudaram. Depois do 25 de Abril em Portugal, fomos nós, UNITA, foi o próprio Savimbi quem levou os comandantes (da SWAPO) da Zâmbia para o Huambo (de avião). E eu próprio os levei para as zonas da Huila e Cunene. Quando o MPLA tomou as cidades e a UNITA voltou, em 1976, para as matas, a SWAPO naturalmente não pôde acompanhar-nos. Ficou lá e consolidou as suas relações com o MPLA. Finalmente: o corte de relações entre as partes foi quando a SWAPO verificou que a UNITA tinha relações com a África do Sul!

O PRÓPRIO SAVIMBI "DAVA AULAS" PARA DIVULGAR MAO, MARX E ENGELS

"As ideologias que nós aprendemos", em Angola, sublinha Miguel N'Zau Puna, "são ideologias importadas". Um juizo-timbre que o antigo secretário-geral da UNITA aplica, sem distinções, aos históricos movimentos de libertação angolanos. Para concluir: "Então, é necessário voltarmos a ser nós próprios, empregarmos uma nova filosofia agregativa, no essencial, de todos os angolanos".
A UNITA, recorda N'Zau Puna, "lutou contra aquilo que nós chamávamos o social-imperialismo de russos e cubanos". Porém, já depois de se reconhecer numa organização forte, o movimento de Jonas Savimbi começou a ser percorrido, internamente, por sentimentos "divisionistas".
Questões "regionalistas", talvez diferenças etnoculturais - os bienos, os umbundos, etc, etc. Savimbi e outros, como ele, naturais do Bié, detinham o poder. "Havia uma clara rivalidade entre os do Bié e os do Huambo", diz ao JN o "histórico" Miguel N'Zau Puna.
Corria, no seio da UNITA, que os do Huambo "tinham a presunção de se destacarem como intelectuais". O mais importante, porém, é que Jonas Savimbi ficou com as mãos suficientemente livres para vender, no exterior, a imagem de um anti-comunismo inabalável. A palavra de ordem: "Nós somos contra os comunistas do MPLA!".
JORNAL DE NOTÍCIAS - Savimbi convenceu, com o "slogan", os sul-africanos?
N'ZAU PUNA - Não só os sul-africanos como, também, os americanos. Mas, no interior da UNITA, preponderavam de facto as práticas maoístas. Jonas Savimbi tinha sido bem recebido na China, onde treinou alguns quadros em técnicas de guerrilha. E logo irrompeu uma máxima no funcionamento interno da UNITA: "Não se pode combater os marxistas sem conhecer a teoria marxista!". O próprio Savimbi dava aulas num centro de formação que ele mesmo implantou. Aprendíamos o marxismo-leninismo em coabitação com o maoísmo.
JN - Savimbi cultivava isso com fervor?
NP - Além dos livros, em quantidade e qualidade, Savimbi tinha, bem à vista de toda a gente, grandes fotografias de Karl Marx, Estaline, Lenine, Engels e Mao Tsé Tung. E o Savimbi mesmo dava aulas, era o professor: marxismo-leninismo, o marxismo dialéctico, o marxismo histórico. A nós, companheiros, ele dizia: "Eu sou comunista, mas se algum de vocês for lá para fora divulgar, eu vou gritar que é tudo mentira!". E o mesmo Savimbi afiançava-nos: "Quando vou à África do Sul, isto é ouro! Quando vou para os Estados Unidos, é ouro, também!".
JN - Se eu questionasse, agora, Jonas Savimbi, como é que ele se definia?
NP - Ah, neste momento Savimbi não aceitaria identificar-se como maoísta, marxista-leninista, ou simplesmente comunista... Ele diria que é social-democrata. Savimbi iria utilizar consigo a mesma linguagem que o MPLA utiliza agora.

ACORDOS DO ALVOR: UM FRACASSO ANUNCIADO

A 15 de Janeiro de 1975, no Hotel da Penina, sob a chuva miudinha que caía no Algarve, representantes dos três movimentos de libertação assinavam no Alvor os acordos para a independência de Angola. Mas, do que foi assinado no Alvor, aos três só interessava a independência, o que significava, para cada um, e sozinho, o exercício do Poder. O que ainda hoje se revela impossível.

José Gomes

Na Guiné e em Moçambique, Portugal tinha sabido exactamente com quem iria negociar os acertos para a independência: do outro lado da mesa iriam estar só o PAIGC e a FRELIMO. Mas a existência de três movimentos de libertação no caso de Angola tornava impossível qualquer tentativa de uma rápida solução negociada.
Foram necessários meses de cuidadosas negociações. Primeiro, a Organização de Unidade Africana reconheceu a UNITA como parte tão legítima como o MPLA ou a FNLA. Depois, em Mombaça, no Quénia, os líderes dos três movimentos prepararam o terreno para as negociações com os representantes de Portugal.
Finalmente, no Alvor, os três concertaram com o Governo português um acordo sobre a fórmula pela qual Angola se tornaria indepedente.
No Alvor, os três movimentos foram reconhecidos como únicos e legítimos representantes do povo angolano, e Angola como país indivisível, incluindo o enclave de Cabinda.
Seria estabelecido um governo de transição, baseado numa fórmula de coligação. Um alto-comissário seria nomeado por Portugal, sob ordens directas do presidente da República, Costa Gomes, e o Governo de transição seria constituído por 12 ministros, três portugueses e os restantes nove distribuídos igualmente pelos movimentos de libertação.
Um conselho presidencial, constituído por um representante de cada movimento, presidiria ao Governo, rotativamente, até à data marcada para a independência, 11 de Novembro.
O Governo devia tomar posse até ao fim de Janeiro, marcar eleições no prazo de nove meses, e deveria ser constituído um exército unificado. Na altura da independência, essas forças militares unificadas deveriam ter 48 mil homens - 24 mil efectivos portugueses e oito mil de cada um dos movimentos. Os militares portugueses em excesso seriam evacuados até 30 de Abril, e todas as tropas portuguesas deveriam deixar Angola até Fevereiro de 76.
Os interesses dos portugueses residentes eram assegurados, e os movimentos comprometiam-se a considerar angolanos todos os que tivessem nascido em Angola, ou os que ali vivessem e se declarassem angolanos por opção. Contudo, a concessão de cidadania aos não nascidos em Angola era remetida para o que fosse estabelecido na futura Constituição.
Assinaram por baixo, por Portugal, o ministro sem pasta major Melo Antunes, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, o ministro da Coordenação Interterritorial, Almeida Santos, e, por Angola, os líderes do MPLA, da FNLA e da UNITA.

UMA SOLUÇÃO "IDEAL"

O problema não foram os acordos, pois, se havia alguma possibilidade de paz e estabilidade em Angola, ela teria de ser resultado de um acordo entre os três movimentos. Nenhum teria força para, sozinho, exercer o Poder no país inteiro, sem o acordo ou a aceitação dos outros dois.
A questão é que, como nos meses seguintes viria a ficar amplamente provado, cada um dos três era exactamente para isso que se preparava - para se instalar no Poder, excluindo os outros dois.
"No Alvor, discute-se a independência, e nada mais que a independência", deixavam bem claro os membros das delegações angolanas na Penina, e uma, a do MPLA, adiantaria mesmo que "não há unidade dos movimentos. Apenas um programa comum".
"A grande ironia do acordo do Alvor é que, quando nós, em Portugal, já estávamos a ver que o processo democrático ia ser complicado, mesmo num país europeu que já tinha tido uma experiência democrática no passado, fomos tentar impor uma situação perfeitamente surrealista, a de criar um governo de transição com os três movimentos, como se isso fosse suficiente para acreditar na sua acção", recorda Vasco Vieira de Almeida, que viria a ocupar o cargo de ministro da Economia no Governo de transição.
"Foi exactamente o contrário: o Governo passou a funcionar como legitimador das acções no terreno e, por outro lado, como uma entidade que pairava sobre a realidade, já que era no terreno, e conforme a relação de forças, que os acontecimentos se iam produzindo", comenta.
"Não houve, quanto a mim, da parte de nenhum dos movimentos, em momento algum, a ideia de que ia estabelecer-se qualquer forma de consenso para uma governação a três".

AGITAÇÃO EM PORTUGAL

Os meses seguintes iriam provar a total ineficácia do Governo. "Lembro-me, por exemplo, que quando, em 1975, foi preciso fazer a colheita do café - que é feita por trabalhadores do Sul -, nessa altura a UNITA não deixou vir os trabalhadores", recorda Vasco Vieira de Almeida.
As fábricas deixam de funcionar, pois os trabalhadores nem em transportes militares se sentem seguros, os portos paralisam, refugiados do interior enchem as ruas Luanda.
A situação em Portugal teve também, segundo o então responsável pela economia de Angola, uma enorme influência no desenrolar dos acontecimentos.
"A enorme agitação, aqui, em Portugal, tornava impossível estabelecer uma política coerente. Não havia instruções por parte do Governo português, havia apenas algum consenso entre as forças políticas portuguesas - havia desde forças que defendiam a independência imediata a outras que ainda pensavam que era possível fazer uma espécie de Comunidade Portuguesa. Perante um leque de posições destas, havia uma paralisação total do Governo, aqui".
"Se, não alterando em nada a nossa posição, tivesse havido um mínimo de capacidade de orientação a partir de Lisboa, teríamos tido força para impor, não uma alteração do esquema - a independência era um caso definido -, mas alguma ordem na forma como as coisas se passaram", admite.
Mas as tropas portuguesas também não estavam dispostas a bater-se a partir do momento em que sabiam que a independência era inevitável. "Esse facto levou praticamente à desmobilização da tropa, apesar da situação militar estar longe de ser dominada pelos movimentos de libertação. Em termos estritamente objectivos, a tropa normal teria chegado perfeitamente para dominar a situação".

... E NA TROPA

António M. chegou a Angola em Dezembro de 1974. Tinha acabado de licenciar-se em Engenharia Mecânica, no princípio do ano, e fora mobilizado para a Guiné, mas acabou por não ir. Depois, acaba também por não embarcar para Moçambique. Com o 25 de Abril, nasce a esperança de não ir para lado nenhum. Mas, finalmente, recebe guia de marcha para Angola.
Antes, em Outubro, vai à Madeira, conhecer o batalhão de caçadores que lhe calhara em sorte.
"Desde o princípio que havia forte contestação aos embarques", recorda. "Não aos embarques" era uma das palavras de ordem mais ouvidas na altura. Quando o batalhão se apresta a embarcar, há incidentes com uma manifestação.
Quando chega a Angola, vai para Quibaxe, Malanje. "Uma zona muito bonita", lembra-se. Já na altura as tropas confraternizavam com os guerrilheiros. "Sobretudo do MPLA, que eram os que havia na zona".
A chegada dos primeiros da FNLA é, para António M., inesquecível. "Eram três. Chegam à porta de armas, entram pelo quartel dentro de arma aperrada, o sentinela abriu logo. O sargento veio chamar-me, lá falei com eles, os gajos pedem em francês para falar com o comandante".
Pouco depois, começa a haver as patrulhas mistas.
Em Março de 75, há um levantamento de rancho no quartel, António M. é detido e enviado para a Casa de Reclusão de Luanda. "Aquilo até não teve nada a ver com a comida, era só agitação. Aliás, como se passou em vários sítios. Mais tarde, em Luanda, na Casa de Reclusão, vim a encontrar vários outros companheiros de "aventura". Tinha havido em Cabinda, em Fevereiro, um batalhão de Artilharia que se tinha amotinado e prendido os oficiais na messe. Tomaram conta do quartel e exigiam regressar. Penso que foi também uma coisa organizada, havia aquela confusão toda".
"Como sabe, havia quem quisesse que a gente fosse para lá fazer aquilo que muita gente fez, entregar as armas ao MPLA. Em Quibaxe, muita gente fez isso. No nosso batalhão, tudo foi praticamente entregue ao MPLA".
Detido em Luanda, obtém ao fim de algum tempo autorização para saídas precárias, ao fim-de-semana.
"Em Quibaxe, enquanto lá estive não houve confrontos. Mas depois vim a encontrar em Luanda algumas pessoas, brancos, que até eram simpatizantes do MPLA, e queriam ficar lá, mas tinham fugido quando começaram os bombardeamentos", conta.
Da guerra de Luanda, só lhe chegavam os ecos. "Na Casa de reclusão, ouvíamos os estouros ao longe, os tiros, as granadas". Veio de avião, na véspera da independência. "Do que me lembro mais é das pessoas quererem vir-se embora, de qualquer maneira. Lembro-me que começou a especulação: com mil escudos portugueses compravam-se dez ou 12 contos angolanos".
Além do grande receio que o obcecava na altura, que se esquecessem de o trazer para Portugal - onde haveria de penar dois anos, até ser condenado, depois de novamente preso, desta vez em Caxias, a seis meses de prisão, já cumpridos em prisão preventiva -, recorda que, durante o caminho para o aeroporto, Luanda não parecia ainda muito degradada, e o MPLA dominava. "Os outros chegaram a atacar a cidade, mas não entraram, pararam no Caxito".

O FIM DA LINHA

Por essa altura, já Vasco Vieira de Almeida batera com a porta, e regressara a Lisboa. "Tinha tomado várias posições sobre a maneira como tudo se estava a passar em Angola, e tinha falado, inclusivamente, com os presidentes dos movimentos de libertação. Disse várias coisas: em primeiro lugar, que estava ali para procurar ajudar a fazer uma descolonização, para permitir que os portugueses que lá quisessem ficar em condições normais ficassem e os que quisessem vir pudessem vir. Por outro lado, considerei completamente impossível fazer prosseguir uma política com princípio, meio e fim no plano económico, porque a incapacidade, a rivalidade, tornavam impossível qualquer acção nesse sentido. A certa altura, tomei a posição de dizer que, ou havia um mínimo de entendimento no Governo para que se pudesse, naquele prazo, agir, ou vinha-me embora, pois não queria ser cúmplice numa situação que não era nem de protecção dos interesses portugueses, nem de desenvolvimento de Angola, nem de colaboração... não era nada".
Ainda vem a Lisboa, a uma reunião do Conselho dos 20 - onde estava o presidente da República, o primeiro-ministro, os chefes dos estados-maiores das três armas, o embaixador na ONU, entre outros - para explicar a sua posição. Mas, diz, "essa reunião foi absolutamente inconclusiva, porque não era possível obter aqui um consenso mínimo entre as forças políticas. Voltei para Angola e escrevi uma carta aos três movimentos de libertação, e essa carta causou grande agitação porque era uma denúncia total do que se estava a fazer".
Nessa carta, Vasco Vieira de Almeida refere que aceitara integrar o Governo de transição por julgar possível contribuir para reforçar o entendimento "aparentemente" alcançado no Alvor. Não contara, escreve adiante, "com a miopia política daqueles que, não contentes com precipitar o conflito no tempo, provocaram uma luta militar suicida de que a única vítima é o povo que também dizem representar, correndo o risco de aniquilar à partida o projecto pelo qual tantos se bateram e morreram durante 14 anos de luta contra compatriotas meus".
Constata que "quem abate milhares de velhos, mulheres e crianças, em todo o país, são angolanos", bem como aqueles que "espalham a fome, o terror, a violência e o pânico em todo o território", e interroga-se: "Que fez o Governo durante este período? Praticamente nada, excepto revelar a sua absoluta incapacidade e irresponsabilidade. O Governo não detém qualquer parcela do Poder, é um simples espelho reflector das lutas políticas mais profundas (...)".
A 12 de Julho, Vasco Vieira de Almeida abandona o Governo de transição e regressa. "Não foi por me vir embora, obviamente, mas julgo que é a altura em que fica marcado que as coisas não têm já mais solução".
Não é só o já então ex-ministro a reconhecer o fracasso. Cinco dias antes, Melo Antunes estivera em Luanda para uma última tentativa de entendimento com os movimentos de libertação, e no dia 11 a própria Comissão Nacional de Descolonização, reunida em Lisboa, reconhece que não fora atingida nenhuma das grandes metas dos acordos assinados seis meses antes no Alvor.

NETO DEIXOU TODOS DE BOCA ABERTA

Agostinho Neto assinou no fim de 72 um acordo com Holden Roberto para a criação de um Conselho Supremo para a Libertação de Angola, que pretenderia unificar a luta dos dois movimentos contra Portugal.
O acordo foi uma surpresa, pois as tentativas de unificação dos nacionalistas tinham, até aí, sido sempre frustradas pela tentação da hegemonia do mais forte, e, nessa altura, era o MPLA que reaparecia em cena, após o reajustamento na Frente Leste.
A FNLA estava enfraquecida pela repressão da revolta de Kinkuzo, em que Holden mandou fuzilar dezenas de oficiais do seu Estado-Maior.
Segundo o acordo, a Holden Roberto caberia a direcção política, e a Neto o Comando Militar Unificado.
No MPLA, após a surpresa, concluiu-se que Neto acabara de entregar a direcção da luta nacionalista ao líder da FNLA. Chipenda cinde mesmo, com a Revolta do Leste.
Sabia-se que a Primeira Região Militar do MPLA (Dembos e Catete) pressionava Neto para mandar mais armas para a região. O MPLA tinha o grande problema de não ter qualquer base no Zaire, o que dificultava a logística numa grande parte das fronteiras norte e leste de Angola.
Holden Roberto, à parte os argumentos ideológicos - a FNLA considerava o MPLA um movimento de orientação comunista, e este acusava a FNLA de ser um movimento fantoche, ao serviço de interesses imperialistas - opôs-se sempre à concessão dessa base ao MPLA.
O acordo acabaria por revelar-se uma hábil manobra do presidente zairense, Mobutu, para levantar do chão Holden Roberto, na qual Neto embarcara na miragem de uma base do outro lado da fronteira.
Após o acordo, o líder da FNLA parte numa ronda por capitais africanas, admitindo a possibilidade de negociações com Portugal. E como chefe do Conselho Supremo, seria ele a liderar o processo.
Neto chama então Gentil Viana para seu conselheiro, e este inicia uma operação diplomática em várias capitais africanas, para reabilitar a imagem de Neto e evitar que o acordo fosse sancionado, argumentando que a primazia da luta de libertação devia ser dada à acção armada, e não a negociações.

ALVOR FOI "PERFEITAMENTE SURREALISTA"

Uma grande ironia do acordo do Alvor foi Portugal, quando já estava a ver que o próprio processo democrático era complicado, ter tentado impor em Angola uma solução "perfeitamente surrealista", a de um Governo de transição com os três movimentos lá representados, disse ao JN Vasco Vieira de Almeida, que foi durante cinco meses o ministro da Economia desse Executivo.
Jornal de Notícias - O que recorda dos tempos que esteve no Governo de Transição em Angola?
Vasco Vieira de Almeida - Estive em Angola numa época particularmente difícil. Cheguei pouco antes de ter rebentado a chamada Guerra de Luanda, um período extremamente complicado porque tinha de preparar-se a saída dos militares portugueses de Angola e a passagem da Administração portuguesa para as novas autoridades saídas dos acordos de Alvor. Foi também o período em que rebentou a guerra, e todas estruturas, por se saber que a administração portuguesa ia cessar, foram completamente desestabilizadas. O que recordo é, principalmente, o esforço de alguns, entre os quais eu me contava, para tentar dar um mínimo de normalidade ao funcionamento da sociedade angolana, numa situação de conflito que tornava isso praticamente impossível.
JN - Era uma batalha perdida...
VVA - Foi um período de enorme agitação, de situações de enorme violência. Para quem, como eu, que toda a minha vida fora anticolonialista, foi uma enorme pena ver destruir inevitavelmente um país. É isso que me leva a escrever uma carta aos três movimentos de libertação, dizendo qual era a minha opinião sobre o que se estava a passar e o que ia acontecer a Angola. Infelizmente, essa carta revelou-se profética.
JN - Teria havido maneira de mudar isso?
VVA - Não, não tenho qualquer dúvida. Havia dois tipos de problemas fundamentais. O primeiro é que, quando se faz o 25 de Abril, os movimentos de libertação dizem que não aceitam nenhuma forma de negociação, só aceitam conversar desde que seja assente o princípio da independência...
JN - Mas, no terreno, a situação não era assim tão má...
VVA - Sim, mas tínhamos uma situação que levou praticamente à desmobilização da tropa portuguesa, apesar da situação militar estar longe de ser dominada pelos movimentos de libertação. Mas havia esse princípio capital, o da independência, sem o qual não seria sequer possível conversar-se com os movimentos de libertação, e a falta de disposição das tropas portuguesas para se baterem a partir do momento em que sabiam que a independência era inevitável. E havia depois outra coisa óbvia: a enorme agitação, aqui, em Portugal, que tornava impossível estabelecer uma política coerente. Não havia instruções por parte do Governo português, havia apenas algum consenso entre as forças políticas em Portugal - desde as que defendiam a independência imediata às que ainda pensavam que era possível fazer uma espécie de Comunidade Portuguesa. Perante um leque de posições destas, havia uma paralisação total do Governo.
JN - E lá?
VVA - Lá, era a total insegurança de um Governo assente na estrutura que tinha sido definida no Alvor. Havia, no mesmo Governo, três tipos de movimentos de libertação, três primeiros-ministros... Se juntar a tudo isto o clima de Guerra Fria em que a coisa se passava, com os Estados Unidos e a União Soviética interessados numa solução do problema angolano, é evidente que era uma tarefa impossível.
JN - As autoridades de Lisboa terão até dito, apesar dos avisos de Luanda, que as coisas eram o que eram, e não adiantaria tentar mudá-las...?
VVA - Devo dizer que não sou muito favorável a esse tipo de argumento, que as coisas teriam sempre de passar-se como se passaram. É uma espécie de desculpa automática para todos os erros que se fazem. E fizeram-se erros enormes do nosso lado! Mas uma coisa é terem-se feito erros, outra é supor que em Portugal havia condições objectivas para impor uma solução unificada. O Melo Antunes, naquela altura, tentou uma solução de equilíbrio, e falou com os movimentos de libertação todos. Mas o MPLA estava então numa posição extremamente dura, porque tinha uma força militar importante, e sabia que tinha o apoio da União Soviética. Essa tentativa do Melo Antunes gorou-se por causa da atitude dos movimentos de libertação, em especial do MPLA, porque era de longe o movimento mais estruturado, o que estava mais próximo de nós, os dirigentes tinham estudado nas nossas universidades, tinha uma visão dos acontecimentos históricos e uma perspectiva política que não andaria muito longe das posições políticas de Portugal. Aliás, houve vários erros nessa altura: lembro-me, por exemplo, de um discurso de Agostinho Neto - de quem era amigo pessoal e por quem tinha muita admiração - em que praticamente dava a entender que os funcionários administrativos portugueses tinham que vir-se embora. Lembro-me que me meti no carro e fui a casa dele dizer-lhe que me parecia um disparate monumental. É importante também não esquecer que o MPLA não era uma força única, e a linha que tinha mais força na altura era uma linha dura, legitimada pelas pessoas que tinham estado na luta contra Portugal, e não compreenderam que uma certa flexibilidade abria a possibilidade de uma colaboração mais estreita com as forças que, do nosso lado, também representavam alguma moderação.
JN - No Alvor, os movimentos de libertação afirmaram que apenas estavam de acordo quanto à independência, e além disso não havia qualquer tipo de acordo ou cooperação. Mesmo assim...
VVA - Acho que uma grande ironia do acordo do Alvor é nós, quando em Portugal já estávamos a ver que o processo democrático era complicado, irmos tentar impor uma situação perfeitamente surrealista, a de criar um Governo de transição com os três movimentos lá representados, como se isso fosse suficiente para acreditar na sua acção.
JN - No processo angolano houve uma originalidade: creio que em nenhum outro processo de descolonização cidadãos do país colonizador se increveram em partidos do do país colonizado. Havia portugueses inscritos no MPLA, na UNITA...
VVA - Havia. A questão aí foi que Angola teve uma colonização muito especial. Não tinha nada a ver com Moçambique, em Angola a colonização foi feita por gente muito pobre. Aliás, é isso que explica, em parte, a nossa pseudocapacidade de lidar com povos africanos...Muita gente que saía daqui vivia em condições praticamente iguais às que viviam as populações em África. Lembro-me de ter encontrado brancos a viver nos musseques, o que era uma coisa inacreditável, como engraxadores nas ruas. Quer dizer, gente do país colonizador, que exerce o poder, ser engraxador em Luanda da mesma maneira que era engraxador no Rossio, é uma coisa inacreditável. O que se verifica, de repente, quando aparecem os três movimentos, e esses movimentos são legitimados pelo acordo de Alvor, é que as pessoas tentaram obter protecção a qualquer preço. O que se passou aqui também - a seguir ao 25 de Abril, eram raras as pessoas que não se inscreveram num partido, porque achavam que isso lhes dava alguma forma de protecção. E as clivagens foram feitas um bocado de acordo com o que era a posição social das pessoas - as que tinham interesses económicos achavam que o MPLA era marxista e portanto procuravam aproximar-se da UNITA, e muita gente que achava que era preciso uma mudança, que se reconhecia nas ideias difusas da época do MPLA. Outra gente aproximou-se da UNITA. Simplesmente, não tinha qualquer espécie de voz, porque se filiaram nos partidos mas não queriam ver-se envolvidos naquele vendaval. E havia muita gente, mesmo muita gente, com menos preparação, menos acesso a informação, que ficava varada porque descobria que aquilo, afinal, não era Portugal. Fizeram-nos descobrir que não eram angolanos, e o próprio MPLA, que a princípio tinha uma grande abertura, começou a fechar-se por força das pressões daqueles que tinham estado na guerrilha e que queriam ter acesso às posições que eram ocupadas por portugueses.
JN - A questão da cidadania dos angolanos por nacionalidade ou por opção - não ficou resolvida no Alvor, ficou para depois...
VVA - No fundo, o que veio ao de cima é que tinha havido um processo de colonização menos elitista, mas há uma coisa que é preciso não esquecer: é que havia uma sobreposição clara - havia dois povos, duas culturas, tipos de interesses diferentes, um domínio completo pelos portugueses da população angolana. Embora houvesse - e isto é um fenómeno diferente em Angola -, uma burguesia negra, escritores, poetas... Essa burguesia negra, que inicialmente tinha estado de alguma forma culturalmente próxima de nós, até em termos políticos - alguns tinham-se batido aqui o salazarismo - acaba por ser submergida, quer por aqueles que conduziram a guerra, quer por camadas novas que vão aparecendo e que cada vez têm menos que ver connosco. Aliás, não tenho ilusões que, à medida que o tempo for passando, o que vai haver é afastamento afectivo e emocional.
JN - Sai do Governo por iniciativa sua ou por pressões? Foi, como se disse, intimado a sair?
VVA - Não, não fui nada intimado. Eu tinha tomado várias posições sobre a maneira como tudo se estava a passar em Angola, e tinha falado, inclusivamente, com os presidentes dos movimentos de libertação. Eu tinha um plano económico para a recuperação de Angola, foi exposto publicamente, tinha o acordo de princípio dos três movimentos - é claro que isso para eles não tinha qualquer espécie de importância, mas era minha obrigação -, e ainda vim aqui a uma reunião duma coisa que se chamava o Conselho dos 20. Essa reunião foi absolutamente inconclusiva, porque não era possível aqui obter um consenso mínimo entre as forças políticas. Voltei para Angola e escrevi uma carta aos três movimentos de libertação. Lembro-me que nessa altura tive uma conversa com o Agostinho Neto, e ele disse-me: "És muito duro também connosco", e eu respondi-lhe: "Não sou mais duro convosco do que com os outros, a vocês o que eu exigia era mais, e nessa medida vocês têm mais responsabilidades". Como não obtive resposta à carta, nem daqui, nem de lá, vim a Lisboa e disse ao Presidente da República que não continuava. Devo dizer que houve um momento em que a mim me parecia que a posição de Portugal devia ter sido a de claramente apoiar um movimento, e esse movimento só poderia ter sido o MPLA, quanto a mim. Ao fazê-lo, talvez tornasse possível um entendimento, talvez tornasse desnecessário o recurso do MPLA aos cubanos, que foram um elemento de perturbação, e teria permitido a Portugal ter moderado de alguma maneira muitas das coisas. Porque, como disse, havia várias alas dentro do MPLA. O Agostinho Neto foi uma espécie de bissectriz entre todas as tendências. Havia nessa altura um grupo de pessoas lúcidas, como as que integravam a Revolta Activa, que eram vistas na altura pelo MPLA como um grupo terrível. A Revolta Activa era constituída por homens muito inteligentes, com uma capacidade de perspectiva interessante. Mas aquele grupo de pessoas válidas a certa altura foi marginalizado pela ala mais radical e mais ignorante do MPLA.
JN - Quanto à ponte aérea. Pensa que as coisas podiam ter sido mais bem organizadas?
VVA - Inicialmente, as pessoas aqui não se aperceberam da gravidade da situação em Angola. Lá, havia uma comissão militar que estava consciente disso, e, no momento em que se estabelece o pânico, o então tenente-coronel Gonçalves Ribeiro, que era o homem que dirigia o que restava da Administração portuguesa, fez o que era possível, e penso que, apesar de tudo, a ponte aérea e a vinda das pessoas é um feito fora do vulgar.

HISTÓRIAS DA BATALHA DE LUANDA

Em Fevereiro, nem um mês após a tomada de posse do Governo de Transição, tornou-se óbvio que o que parecia desconfiança entre os movimentos estava longe de diminuir. O poder residia, de facto, nos exércitos que cada movimento não cessava de armar. Na cimeira de Nakuru, em Junho, os três reconhecem culpas, e prometem pôr fim à violência. Era mentira.

José Gomes

As forças armadas conjuntas acordadas um mês antes no Alvor não passaram de uma miragem, e os confrontos esporádicos iniciados em Fevereiro rapidamente se transformam em renhidos combates, com milhares de mortos, ao fim dos quais, em princípios de Julho, o MPLA estava sozinho em Luanda.
Pelo meio, a 21 de Julho, ficou a cimeira de Nakuru, no Quénia, promovida pelo presidente Kenyatta, na qual os três movimentos juraram a pés juntos que pretendiam pôr fim à violência.
Raul M. chegara a Luanda em fins de 74. Depois de meia-dúzia de anos em Argel, nos anos 60, é criado numa base da guerrilha no Congo. E é com a memória da adolescência que recorda os combates de Luanda.
"Uma das casas onde estive era na Praia do Bispo, uma estrada marginal com vivendas. Numa dessas vivendas, havia uma sede do MPLA. Por trás, havia um monte, e lá em cima havia uma sede da FNLA. De repente, começaram a entrar em "makas". Desataram aos tiros, e tudo o que estava na rua desapareceu", conta.

A BATALHA DA FNLA

Outra casa para onde depois passou ficava na Avenida Brasil, que dá para o musseque do Rangel. "Ali ao pé havia uma sede da FNLA, até era considerada uma das sedes mais importantes. Ali é que houve mesmo grandes porradas".
Os combates começaram com trocas de tiros de armas ligeiras entre a sede do MPLA e a da FNLA. "Cheguei a ter 46 buracos de bala na parede do quarto. Não percebia como, morava num sexto andar. Até que um dia espreitei: eles nem sequer levantavam a cabeça para ver onde atiravam. Levantavam a arma acima do muro e despejavam o carregador".
Um dia, a FNLA montou antiaéreas no terraço do prédio, e virou-as para baixo, em direcção à sede do MPLA. "Avisaram o pessoal do prédio que era melhor ir embora, não se responsabilizavam pelo que acontecesse. E nós fomos mesmo embora, para casa de família na baixa. Quando o MPLA descobrisse donde estavam a atirar...".
No dia seguinte, quando voltam ao sítio, o apartamento já tinha sido atingido por um roquete. Nos dias seguintes, o prédio iria ficar completamente destruído.
Nessa altura, já os três movimentos de libertação tinham muitas forças em Luanda. A FNLA havia, desde Junho do ano anterior, mesmo antes da assinatura formal do cessar-fogo com o Exército português, metido muita gente na capital, vinda de Kinshasa. Quadros políticos e tropa. Eram conhecidos por não falarem português, apenas francês com sotaque carregado, e pelo comportamento, arrogante, mais próprio de um exército de ocupação.

SABATA E PASSARÃO

Mas quem ganhou a Batalha de Luanda para o MPLA não foi a gente do mato, foi o povo dos musseques, enquadrado por ex-militares negros do Exército colonial. Em Junho de 74, cerca de nove mil militares angolanos do Exército português tinham-se manifestado publicamente, exigindo a desmobilização imediata.
"Uma das figuras paradigmáticas, uma das figuras emblemáticas, era um tipo chamado Sabata, que era um antigo ladrão do tempo colonial, mas que era muito popular nos musseques. Era uma espécie de figura mítica, porque era um indivíduo que fazia raides contra os da FNLA, e depois refugiava-se nos musseques. Dizia-se que andava com duas G3, de canos serrados", recorda Raul.
A FNLA também tinha o seu herói, um vadio branco de apelido Passarão. Conta a lenda que Passarão morreu abatido por Sabata em duelo singular. "Como se tivesse parado a guerra civil, os dois encontram-se no musseque, Sabata saca da arma, o outro estremece...".
Na verdade, não foi isso que aconteceu. De Sabata, mais tarde promovido a comandante, sabe-se que foi morto mais tarde, no 27 de Maio, em 77, durante o golpe de Nito Alves. Quanto a Passarão, diz-se que terá morrido em combate quando a FNLA foi empurrada até à fronteira.
Na batalha por Luanda o MPLA perde vários heróis populares. "Outra das vítimas da guerra foi um que eu tinha conhecido no Congo, o Valódia. O Valódia morreu durante um assalto à sede da Revolta de Leste, do Chipenda". Chipenda é expulso de Luanda logo em Fevereiro, e alia-se à FNLA.
Morre também Nelito Soares, um dos autores do desvio de um avião que voava de Luanda para o Congo, nos últimos anos da década de 60. É morto durante uma - a única? - operação de comandos portugueses em Vila Alice, bastião do MPLA. Vários portugueses, como passou a tornar-se comum, tinham sido raptados e levados para Vila Alice.
O Exército português exigiu a libertação dos reféns e a entrega dos responsáveis pela sequestro. Os responsáveis locais do MPLA fizeram orelhas moucas, e foi ordenada a intervenção dos comandos.
Nelito Soares, que nessa altura saía da sede do MPLA para negociar, é abatido, e os comandos fazem uma razia.

UMA COISA BANAL

Ao fim de algum tempo, a guerra em Luanda era uma coisa que se tinha tornado normal. "Para nós, que éramos miúdos, aquilo já era banal. Às três, quatro da manhã, íamos para a bicha comprar o pão. Às vezes, rebentava tiroteio, e toda a gente fugia. Mas depois havia discussões por causa do lugar em que estavam na bicha, e morria mais gente nessa discussão que propriamente nos combates. A guerra era uma coisa tão banal que a gente brincava aos beligerantes. Construíamos umas armas, em madeira, e andávamos para ali a disparar".
Mais. "A gente até ficava contente com a guerra civil, porque depois não havia aulas. Uma vez, à frente do colégio onde eu andava, apareceu uma manifestação do pessoal dos musseques...Ficou tudo tão aflito que as aulas tiveram de acabar e nós pronto, ficámos todos contentes".
Às tantas, começou a faltar comida em Luanda. "No sítio onde eu estava, não houve grandes carências. A gente ainda apanhava pão, mas tínhamos de fazer bichas de madrugada. E depois as pessoas tinham os seus esquemas, as suas relações... A mim nunca faltou de comer", recorda Raul.
"Por isso, para nós, miúdos, a guerra civil não foi aquela coisa hedionda... Só ouvíamos certos relatos, de gente que era morta de maneira bárbara, dizia-se que a FNLA matava com certos requintes, praticava antropofagia".
"Na Batalha da FNLA, aquela na sede na Avenida Brasil, contava-se de boca em boca, foi um grande acontecimento. Dizia-se que descobriram lá corações".
E sabia-se também da caça ao homem, do racismo. "A FNLA caçava tudo, quimbundos, mas sobretudo mulatos. Lembro-me que houve um mulato, que apareceu numa das casas onde eu estava, que tinha vindo lá de Carmona, do Uíge, e tinha sido apanhado. Levou porrada, e o fnla, o soldado, olhou para ele e disse-lhe: Seu mulato, passarinho sem ninho, seu filho da p.... E havia também aquele ditado: o branco vai embora de barco ou de avião, o mulato vai a nado".

UMA ÚLTIMA MENTIRA

A 11 de Junho, Savimbi, que entrara em Luanda a 25 de Abril de 75, vê o pequeno quartel da UNITA na capital angolana ser atacado pelas FAPLA.
A situação deteriora-se tão seriamente que o presidente do Quénia, Jomo Kenyatta, convoca para Nakuru uma cimeira de emergência. Após quase uma semana de discussões - para as quais Portugal não é convidado -, a 21 de Junho, os três movimentos fazem uma autocrítica, reconhecem ter dificultado a actuação do Governo de Transição, ter apelado ao tribalismo e ao racismo, armado a população civil, e comprometem-se a acabar com a violência e a intimidação, a integrar os seus exércitos numa força armada única e a desarmar os civis.
Poucos dias depois, a 9 de Julho, após três semanas de violentos combates, a FNLA é expulsa de Luanda, e Savimbi pede protecção ao Exército português e ordena aos seus apoiantes que deixem a capital.
Raul M. tem depois uma última recordação. "Quando já tinha mudado para uma casa no Bairro Salazar, lembro-me que houve uma altura em que só se ouvia martelar: pá, pá, pá". E do porto, cheio de caixotes.

ÁFRICA DO SUL AVANÇOU A PEDIDO DA UNITA E DA FNLA

O general Constand Viljoen, reformado desde 1985, já foi o "herói da Guerra de Angola" entre os soldados da África do Sul do antigo regime. Mas a sua personalidade não é a de um militarista no sentido convencional e o título assenta-lhe mal. Todavia, aceitou com prazer recordar e explicar os porquês teóricos da sua campanha de Angola.

Maria de Lourdes Torcato
Correspondente em Joanesburgo

"Na década de 60 começaram as guerras em África pela descolonização. Foi uma pena que todos os movimentos de libertação se virassem para a URSS, para pedir assistência, treino e armas. Acreditavam que a melhor maneira de se libertarem era a guerra" - diz Viljoen. "E a URSS estava na fase de expandir a ideologia comunista na África Austral. Isto condicionou tudo e foi pena porque se podiam ter encontrado soluções e as coisas não terem tomado o caminho que tomaram" - diz Viljoen, comedido nas palavras, referindo-se à guerra de três décadas que rodeou a descolonização em Angola e fez do povo angolano o mais sofredor da história moderna.
Mas havia alternativa, na altura, para os povos colonizados em África? "Infelizmente, por causa das nossas relações com os colonialistas ingleses e portugueses, a África do Sul adquiriu a reputação de ser uma espécie da nação semi-colonialista", diz Viljoen.
Para o general, a África do Sul poderia ter sido aliada dos movimentos emancipalistas na África Austral. Sem a aliança com a URSS, a independência aconteceria "sem guerra" - acredita o ex-general, que virou político. "Qualquer outra solução que não fosse a da guerra teria sido melhor".
"A independência de Angola foi a 11 de Novembro de 1975. Antes dessa data, com a assistência dos cubanos e da logística soviética, o MPLA tinha capturado vastas porções do país anteriormente controlados pela FNLA e pela UNITA. Foram estes que nos contactaram e como comandante general das operações recebi a missão de dar assistência à UNITA e à FNLA e, mais tarde, ao grupo de Daniel Chipenda, para retomarem as suas áreas tradicionais, de modo a que, a 11 de Novembro, a Organização de Unidade Africana estivesse em posição de obrigar à formação de um Governo de Unidade Nacional em Angola" - é como o general vê os acontecimentos de 75, que levaram uma poderosa coluna militar sul-africana em marcha desde o Cunene até Cela, a pouco mais de 100 quilómetros a sul de Luanda.
"Instalar um governo de unidade nacional, em Luanda, era o nosso único objectivo, mas a OUA não conseguiu chegar a essa decisão" - insiste o general.
O que lucrou a África do Sul com esta intervenção? O general resume: "Estávamos a lutar ao lado das forças anti-comunistas na África Austral. Contribuímos para a destruição dos regimes comunistas totalitários no mundo". É claro que o general Viljoen, dados os acontecimentos posteriores, que levaram à queda dos regimes comunistas, considera que participou numa cruzada ideológica e que o Mundo devia agradecer à África do Sul.
E, indo mais longe: "Conseguimos adiar as mudanças na África do Sul até uma altura em que elas se puderam fazer sem interferência comunista exterior".
E porque é que uma boa parte do Mundo, especialmente a África, não vê as coisas dessa maneira? "É tudo uma questão de propaganda, não temos os meios de controlo da propaganda que o resto do Mundo tem" - diz o general.
O general Viljoen retirou-se das Forças de Defesa e Segurança em 1985 e ainda participou, em Março de 1984, na celebração do Acordo de Inkomati, entre a África do Sul e Moçambique, depois de ter dirigido pelo menos uma operação em que as SADF atacaram a Matola, nos arredores de Maputo, para desalojar um comando do ANC instalado numa vivenda.
Nesse ataque, morreram moçambicanos inocentes e instalações sociais de valor foram destruídas. Mas, como homem de paz, este acordo é-lhe caro, considerando-o uma tentativa sincera de Samora Machel de acabar com a guerra que destruía Moçambique.
Mas como explica que depois disso as SADF continuassem a apoiar a Renamo? "Não as minhas SADF", diz secamente Viljoen. "Talvez privados, ou os CCB (unidade secreta, constituída por ex-militares)".
A conversa com Viljoen passa depois para a política e fala agora o líder da Frente da Liberdade, um partido africaner que nas eleições locais acaba de confirmou os seus quatro por cento de votos.
"O Partido Nacional (de De Klerk) não tem futuro, porque não tem visão nem alternativa. É apenas um partido contra o ANC e isso não é um programa político. Eu tenho visão de futuro, pretendo defender a preservação da nação africaner e cooperar positivamente com o ANC no desenvolvimento económico da África do Sul e da região".
O general Viljoen, que dirige o projecto de assistência dos agricultores africaneres que querem investir em Moçambique e está a negociar a ida do primeiro grupo de agricultores para o Niassa, diz que já foi contactado por Angola para um projecto semelhante. "Mas em Angola a situação ainda não é clara" - conclui.
O presidente Mário Soares vem brevemente fazer uma visita à África do Sul e o que é que o general Viljoen lhe vai dizer sobre estes projectos nas antigas colónias portuguesas? "Os portugueses fizeram muito pelo desenvolvimento económico das suas colónias em África. O que eu vou dizer ao presidente Soares é que foi uma pena que os portugueses tivesem fugido a correr de Moçambique e Angola em 1975, e que nós vamos fazer os possíveis por continuar a fazer o trabalho que eles deixaram".

RESPOSTA CÉLERE DOS CUBANOS AO APELO DE AGOSTINHO NETO

Paulo Teixeira Jorge, "histórico" da Revolução Angolana, assegura ao JN que a consulta aos soviéticos partiu do próprio MPLA

Paulo Teixeira Jorge é, actualmente, o homem-forte das Relações Exteriores do MPLA. Um "homem de partido" que, no desempenho de tais funções, contribui de modo inequívoco para o nobrecimento, no estrangeiro, da própria imagem de Angola.

Luís Alberto Ferreira
Enviado JN

Durante anos ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Jorge, dos mais inteligentes, dos mais cultos, dos mais respeitados (até mesmo entre os homens relevantes da UNITA) dirigentes angolanos, guarda uma invejável experiência no domínio das mais complexas relações internacionais. Washington, Moscovo, Havana, Kinshasa, Pretória, Brazaville, desfilam na ardósia da entrevista que Paulo Jorge acaba de conceder ao JN, em Luanda, a propósito da efeméride que, nestas colunas, tem vindo a ser objecto de um amplo registo.
JORNAL DE NOTÍCIAS - Estes 20 anos de independência trouxeram algumas mudanças "qualitativas" no quadro das relações de Angola com os países imediatamente fronteiriços. O Congo-Brazaville, por exemplo. Que, no tempo do presidente Agostinho Neto, era governado pelo saudoso Marien Nguabi. E que, hoje, parece apoiar, veladamente, os independentistas de Cabinda...
PAULO JORGE - As relações entre os dois estados foram bastante amistosas. Tal como as relações entre o MPLA e o Partido Congolês do Trabalho. Isto, evidentemente, sem esquecer os altíssimos níveis de solidariedade dos congoleses durante a própria luta de libertação nacional. Foi uma espécie de compensação para os desgostos e a aspereza da experiência vivida pelo Estado angolano, e pelo MPLA, nas relações com a actual e também vizinha República do Zaire. A morte de Marien Nguabi, a própria evolução situacional na República do Congo e na África Austral, modificaram esse quadro. O estado de graça, digamos assim, foi-se esbatendo depois dos bons ofícios do regime presidido por Nguesso. Provavelmente, uma consequência dos fenómenos registados (o multipartidarismo, por exemplo) tanto no Congo como em Angola. Estamos a restabelecer, de há uns tempos a esta parte, sobretudo a níveis de partido, certas formas convivenciais com o Congo-Brazaville.
JN - É um dado adquirido, para Angola e para o MPLA, que o Congo-Brazaville se esforça por "intervir" no caso de Cabinda?
PJ - Eu não creio que se possa dizer, rotundamente, que o Congo procura influenciar, está implicado ou tem "interesses" nas movimentações sobre Cabinda. O que nós sabemos é que há, de facto, alguns congoleses, deste ou daquele partido, alegadamente interessados na questão. Eu admito que esses congoleses sejam instigados por potênciais alheias ao Continente Africano. E também admito que, mais do que no Congo, haja no Zaire grande apetência desestabilizadora de Cabinda, igualmente em subordinação a interesses e instigações de fora do Continente. Tendo em apreço as potencialidades de Cabinda.

EXÉRCITO AFRICANO

JN - A Nigéria, verdadeira potência africana, agora novamente nas bocas do mundo: é possível clarificar se a Nigéria chegou a disponibilizar-se, ou não, para intervir, militarmente, no passado, solidarizada com o MPLA?
PJ - O apoio da Nigéria, nessa conjuntura, cifrou-se em meios materiais. Não em tropas. Contudo, até mesmo a esse nível, o do envio de tropas e equipamentos respectivos, a Nigéria chegou a manifestar a sua firme disposição de impedir que um certo leque de forças periféricas realizassem os seus desígnios. A Nigéria foi, sem dúvida, dos países africanos de maior disponibilidade para Angola. Não vieram tropas da Nigéria para Angola porque, na oportunidade, se considerou desnecessário. Mas vieram, por exemplo, da Guiné-Conakri, alguns homens e algum equipamento; vieram também da Guiné-Bissau alguns homens e algum equipamento militar. Como é de todos sabido, preparava-se uma dupla invasão de Angola.
JN - Poderá supor-se, ou insinuar-se, que a Nigéria, com umas Forças Armadas numerosíssimas e bem equipadas, terá funcionado como elemento dissuasor de maiores ambições intervencionistas da "antiga" África do Sul?
PJ - O problema da participação de forças africanas em conflitos no nosso continente foi discutido, várias vezes, a nível da OUA. Nos anos da década de 80 discutia-se muito a constituição e composição de um Exército Africano e o respectivo comando, orçamentos, etc. A ideia, porém, face às diferenças conceptuais, nunca chegou a tomar corpo. Mas, indubitavelmente, a Nigéria, num tal projecto de Exército Africano, teria uma participação bastante expressiva!
JN - A distância de, precisamente, 20 anos: é firme a reiteração de que Angola, na altura da independência, esteve debaixo de uma grande ameaça?
PJ - Absolutamente. Uma acção combinada para atingir Luanda. A África do Sul viria, com as suas unidades militares, em apoio à UNITA. E a congénere zairense viria, por seu turno, em apoio à FNLA. Com um objectivo central: impedir a proclamação da independência, pelo MPLA, em 11 de Novembro. A resposta enérgica das FAPLA impediu o êxito dessa operação. Até porque, entretanto, tinham chegado a Angola os contingentes das forças internacionalistas cubanas, em resposta a um apelo do presidente Agostinho Neto. Ajudaram-nos a enfrentar dois exércitos regulares! O dos sul-africanos, na província do Cuanza-Sul, a nível do Rio Queve, que eles não conseguiram atravessar. E o dos zairenses, aqui a norte de Luanda, em Kifangondo.
JN - Os ventos da História determinaram, depois, que Angola, sob a direcção do MPLA, fosse um elemento de peso no próximo destino da Namíbia e da própria África do Sul...?
PJ - Fizemos simplesmente o mesmo exercício. Competia-nos retribuir a solidariedade recebida. A SWAPO passou a actuar a partir do território angolano, tal como os combatentes do ANC fizeram, em Angola, a preparação das suas incursões. Lembro-me de uma frase do presidente Agostinho Neto: "Na Namíbia e na África do Sul está a continuação da nossa luta". Uma frase legendária que o povo angolano assumiu, paralelamente ao seu sentir nacionalista.

OS CUBANOS

JN - Foi aqui sublinhado o papel internacionalista dos cubanos. É possível, já, à distância de 20 anos, uma avaliação profunda do papel dos cubanos em Angola?
PJ - Eu penso que Angola contraiu, perante os internacionalistas cubanos (é assim que nós os designamos), uma dívida impagável. Há sangue de Cuba vertido em solo angolano. Para que nós conservássemos a nossa independência. Isto é um facto, de grande inteireza, não é uma figura de retórica. Sangue cubano vertido em nome de um só valor: a solidariedade. Porém, às vezes, as pessoas, quando se referem a essa presença dos cubanos em Angola, somente a analisam em termos militares. Quando, de facto, essa presença excedeu, largamente, os termos militares. Os internacionalistas cubanos desenvolveram acções que se reflectiram em sectores importantes como o da saúde, o da educação, o das obras públicas. Vieram centenas de médicos, centenas de professores, centenas de técnicos constituídos em brigadas para acções de conjunto ou pontuais. É possível encontrar, hoje, em várias províncias de Angola, sinais da acção multiforme e extremamente válida dos internacionalistas cubanos. Daí que a participação cubana continue a ser, em Angola, vivamente referida não só pela direcção do MPLA mas, também, pela população em geral.
JN - Lá fora, contudo, não falta quem diga que "os angolanos nem podem ouvir falar dos cubanos"...
PJ - Completamente falso. Temos hoje, em Angola, centenas e centenas de quadros que estudaram em Cuba, que se formaram em Cuba sem que o Estado angolano cobrisse os respectivos encargos. Essa foi, sem dúvida, outra das valiosíssimas contribuições do internacionalismo cubano. O povo angolano não se manifestou, jamais, indiferente, ou hostil a essa ajuda multiforme.
JN - Até que ponto Moscovo influenciou a vontade política e internacionalista de Cuba em Angola?
PJ - A reacção de Havana, dos cubanos, após o apelo do presidente Agostinho Neto, foi, posso dizê-lo, imediata.
JN - Não houve sequer um compasso de espera que fizesse pressupor alguma prévia diligência junto da antiga URSS?
PJ - Não houve. Porque, repare: quando os exércitos zairense e sul-africano começam a invasão do nosso território, estamos em Outubro de 1975. A cerca de um mês da proclamação da independência. Até à vinda dos cubanos decorre, pois, um estreitíssimo lapso de tempo. Entretanto, nós, angolanos, isso sim, conhecedores da situação de Cuba, conversámos com os soviéticos. Do que resultou, contrariamente ao que se disse, uma participação da antiga URSS traduzida em equipamentos e instrutores militares, nunca em soldados! Também se disse, e era completamente falso, que em Angola combatiam, a nosso lado, forças da antiga RDA...

"PULSO" DE PAULO JORGE NOS CORREDORES DA CASA BRANCA

Durante algum tempo, a aposta do MPLA nas capacidades de Paulo Jorge incidiu na vertente da administração regional. Vertente incómoda, a dos governos provinciais. Paulo Teixeira Jorge foi governador de duas importantes províncias estratégicas: o Cuanza-Sul e Benguela. E ele não perde, de facto, a noção do tempo e... do espaço.

Ao longo da entrevista que nos concede, em Luanda, na sede nacional do partido, Paulo Jorge procura demonstrar que o MPLA está, de modo realista, preparado para os corredores e tribunas da política internacional. Menos loquaz numas questões do que noutras, Paulo Jorge não se furta, porém, a tudo considerar. Savimbi nunca fará uma apreciação minimamente dúctil do papel que Cuba teve em Angola? Ora, entende Teixeira Jorge, não é coisa que entre nas preocupações mínimas do MPLA. Ou dos cubanos. Porém, note-se, Paulo Jorge não minimiza as "pressões exteriores que levaram a UNITA a hostilizar os cubanos". Nomeadamente por banda da Administração (republicana) dos Estados Unidos. E, claro, do regime sul-africano já felizmente derrubado.
Para Savimbi, diz Paulo Jorge, essa animosidade a Cuba funcionou como bandeira chamativa de apoios de toda a ordem. Nomeadamente, dos seus "padrinhos". Bandeira-psicose-paranoia.
JORNAL DE NOTÍCIAS - Quando sobraçou a pasta das Relações Exteriores (Negócios Estrangeiros), travou, certamente, incontáveis "batalhas" conversacionais com os homens da Casa Branca. O que é que disse aos americanos sobre a ajuda cubana? Lembra-se de algum argumento básico?
PAULO JORGE - Lembro-me. Eu tive ensejo, no decurso de encontros com autoridades americanas, de lhes dizer, muito claramente, que o "conflito" entre os Estados Unidos e Cuba não era um "problema" de Angola! Nós, Angola, frisei, rejeitávamos categoricamente que a actuação dos Estados Unidos, relativamente ao problema angolano, se transformasse num prolongamento do seu "conflito" com Cuba. E a verdade é que Angola, de facto, foi palco para as mais diversas reproduções desse "conflito". E disso é indicador o facto de somente o ano passado os Estados Unidos terem reconhecido a República de Angola.
JN - Ouviu, directamente, dos norte-americanos, tentativas de cristalização e imposição do chamado "linkage"?
PJ - Sim, nos encontros que tivemos foi-me dado a entender, pelos norte-americanos, que o reconhecimento de Angola e a normalização de relações, segundo os Estados Unidos, subordinavam-se a um condicionalismo: a "presença de tropas estrangeiras em Angola", ou seja, os cubanos. Claro, os cubanos. Que não tinha lógica nenhuma, entendíamos nós. Porque os Estados Unidos, afinal, tinham relações diplomáticas com vários países africanos onde existiam tropas estrangeiras. Em Junho de 1977, os Estados Unidos da América do Norte estabeleceram relações diplomáticas com a República do Djibuti; e havia, nesse preciso momento, em Djibuti, 2.500 militares franceses! Então, as tropas francesas, no território do Djibuti, não são tropas estrangeiras? E não havia, também, tropas francesas na República Centro-Africana e no Senegal?!!!

REGRESSO NO ÚLTIMO VOO

"És irmão ou camarada?" - a pergunta gelava o sangue. Do acerto da resposta dependia a sorte de quempor esses dias do fim do Verão de 75 se atrevia a andarpelas estradas de Angola. Houve gente espancada, emblemas engolidos,alguns ali mesmo traçadosà bala.

José Gomes

Nesse fim de tarde de Setembro de 75, eram esperados no aeroporto da então ainda Nova Lisboa dois aviões para evacuar portugueses em fuga à guerra civil em Angola. Os primeiros 200 a partir já tinham passado do hangar à sala de embarque, pela ordem do costume: doentes, feridos e deficientes, crianças e casais.
Quando o primeiro avião, um enorme "Boeing 747", está prestes a tocar a pista, rebenta grande tiroteio, vindo não se sabe de onde. O "Jumbo" aborta a aterragem, ganha de novo altura e afasta-se.
Américo Martins, que tinha ficado a coordenar as operações da ponte aérea repara que um carro de baterias, que arrancara para a pista à aproximação do avião, ficara no sítio, de luzes acesas. Um chamariz para as balas. Vira-se para o condutor, e ordena-lhe que vá lá buscar o carro. "Vá você!", obtém por resposta. E foi mesmo.
Pouco depois, é abordado por um oficial pára-quedista. "O que se passa?", pergunta o militar. "Vocês é que devem saber!", responde Américo Martins. "Deixe estar, vou já tratar disto", garante o outro.
As balas tracejantes deixam realmente pouco depois de riscar os céus por cima do aeroporto. O "747" volta a aproximar-se e finalmente aterra.
Américo Martins sobe a bordo, vai à cabina falar com o comandante do avião, um brasileiro, para saber quantos pode embarcar. "O que é que você precisa?" pergunta o comandante. "De tudo!", responde o português, que ele próprio já só tinha que comer quando a governanta negra que um amigo deixara para trás, por artimanhas que só Deus sabia, lhe desencantava algo que mastigar.
"Comida não tinha, mas deu-me dois pacotes de tabaco, Marlboro", conta Américo Martins, que ainda hoje abençoa os benditos volumes, que horas depois haviam de lhe salvar a vida.
Passadas as cortesias, o coordenador da ponte aérea quer saber quantos pode embarcar. "Mande entrar até eu dizer", responde o comandante. Américo Martins esfregou as mãos de contente, não sabia quando viria o próximo avião, e embarcou quase 300 pessoas - mais que o costume, que aquele voo ainda ia meter mais gente em Luanda antes de partir rumo a Lisboa.
"E malas?, ainda perguntou, com a leve suspeita que estava a abusar da sorte. "Vim salvar vidas, não vim salvar malas", veta o brasileiro. E toca de se fazer de novo à pista.
"Correu-a toda, estava a ver que não conseguia alçar-se", recorda. Por pouco. Ao fim do asfalto, o "Jumbo" afocinha para o barranco, mas lá começa a ganhar altura.
Já eram dez da noite, Américo Martins resolve ir a casa antes do outro avião. No caminho, é parado. À luz dos faróis, vê um civil, armado e completamente bêbado, no meio da estrada. "És irmão ou camarada?", pergunta-lhe, cambaleante, o cano da metralhadora apoiado na beira da janela do carro. "Nem uma coisa nem outra. Deixa-me passar, venho do meu trabalho!", tenta Américo Martins. "Mas és irmão ou camarada?" insiste o outro, o cano a escorregar cada vez mais para dentro, o dedo no gatilho a aproximar-se cada vez mais do aro da janela.
Achar a resposta certa era difícil. Camarada era como se tratava a gente do MPLA, irmãos eram os da FNLA, e o homem que tinha na frente tanto podia ser de uns como dos outros.
Américo Martins sabia que havia gente que tinha cartões do MPLA, da FNLA ou da UNITA, para mostrar conforme as circunstâncias, mas não era o seu caso, nem ali lhe tinha servido para nada. O negro estava vestido de farrapos, que não eram farda de partido nenhum. Por respostas erradas, gente em Luanda foi obrigada a engolir distintivos, levou pancada com mangueira. "Eu próprio vi no Huambo gente encostada ao volante, traçada à bala", lembra o antigo industrial do Porto, que partiu para Angola quando a fábrica que o pai lhe deixara, onde tinha fabricado os aros da cúpula do Palácio, lhe foi tirada a seguir ao 25 de Abril.
Américo Martins puxa de um cigarro, ganha tempo, acende-o. "Tens tabaco?", pergunta o negro. "Tenho", e saca, de debaixo do banco, um dos dois pacotes de "Marlboro" que lhe dera o comandante do "Jumbo".
Parte-o em dois, dá 10 maços. "Deixa passar, que este é irmão!", grita o homem para outro, escondido com a arma nos arbustos mais à frente.
Américo Martins passara já por muitas situações do género. Era há meses encarregado da coordenação das operações da ponte aérea, depois que o engenheiro Alberto Marques Pinto partira, por causa de perseguições.
O engenheiro encabeçara o movimento das forças vivas da cidade na criação do comité local da Comissão Nacional de Apoio aos Desalojados, quando Nova Lisboa foi invadida, em meados de 75, por 200 mil pessoas em fuga do Norte de Angola. "Viviam nas ruas e nas praças, dormiam, cozinhavam, faziam tudo na rua", recorda.
Às tantas, Marques Pinto manda perguntar para Portugal como ia ser resolvido o problema dos refugiados. De Lisboa respondem que a TAP resolvia o assunto. "Como, ninguém sabia. Só havia um voo por semana, quando havia...", diz Américo Martins.
Em Luanda, os dias de barco enchiam o cais, as manifestações em frente ao Palácio do Governador eram diárias. "Queremos sair daqui. Ajudem-nos", diziam os panos estendidos, escritos em inglês e francês.
Vários tentam a fuga por estrada, para sul, em direcção à fronteira do então Sudoeste Africano, sob administração da África do Sul. No caminho, são assaltados, as mulheres violadas. Quando conseguem chegar à fronteira, muitos perdem-se no território desértico. Às vezes, são localizados por aviões de reconhecimento sul-africanos.
No Huambo, decidem contactar consulados de países ocidentais. O Consulado dos Estados Unidos responde que está pronto a auxiliar a comissão, desde que haja um pedido formal por parte de Portugal.
É por essa altura que, em desespero de causa, o general Gonçalves Ribeiro, em Lisboa, faz um telefonema para o embaixador norte-americano, Frank Carlucci. Este promete o auxílio americano para a ponte aérea desde que seja efectuado um pedido oficial do Governo português. Nessa mesma noite, o Presidente da República, general Costa Gomes, entrega o pedido formal.
"Até ao início da ponte aérea, os portugueses não eram perseguidos, mas depois começa a haver problemas", recorda Américo Martins. Marques Pinto é suspeito de simpatias pela UNITA, começa a ser perseguido, e resolve fazer as malas.
Passa as braçadeiras da Cruz Vermelha e da CNAD a Américo Martins, que fica encarregado das listas de embarque, da guarda das bagagens e da passagem dos comprovativos das entregas em dinheiro. E cada vez mais sozinho, que o oportunismo não tem cor nem nação: "Vim a descobrir que alguns se inscreviam no CNAD só para garantirem o lugar no avião", conta.
Com o aproximar da data da independência, começa a ficar inquieto com a própria sorte. "O comandante militar da zona veio ter comigo, pedir-me que continuasse a coordenar o auxílio". A. Martins tenta explicar que a situação está a tornar-se insustentável, que já não há sequer gasolina para o carro. "Então ordenou-me que ficasse. E eu disse-lhe que só lhe obedecia se me desse umas divisas!".
Combina com o técnico das operações de terra destacado no aeroporto sair no mesmo dia. "Ele ia saber com antecedência quando a ponte aérea fosse terminar", explica.
Dito e feito. Regressa no último voo, na primeira semana de Novembro. Hoje, com 70 anos, perdida a esperança de recuperar a fábrica, tenta que lhe seja contado todo o tempo de trabalho, e que a pensão passe a ser decente, que 27 contos...

O HOMEM DA PONTE

Quando os ricochetes das balas do princípio da guerra de Luanda começaram a faiscar nas paredes, o general Gonçalves Ribeiro achou que era altura de pôr a família a salvo.
"Parecia uma festa. Os miúdos iam para a janela, ver aquilo", recorda o general, que ainda se mexe na cadeira, vinte anos volvidos sobre os acontecimentos daqueles meses dramáticos em Luanda.
"Eu também estava a acabar a comissão, mas resolvi ficar". E ainda bem, que hoje Gonçalves Ribeiro, que viria mais tarde a ser alto-comissário para os Refugiados, é lembrado com admiração e reconhecimento por aqueles que com ele lidaram, por ter sido o homem de uma evacuação que, apesar de todas as dificuldades, conseguiu tirar de Angola quase meio milhão de portugueses.
São tempos que o general preferiria, por pudor, não relembrar. Hoje, é a construção de uma outra ponte, ou, como diz, "um outro pilar da mesma ponte", que lhe ocupa os dias: a cooperação militar portuguesa com as antigas colónias. "É notável que hoje isso se possa fazer sem ressentimentos. Os meus interlocutores são homens que naqueles tempos estava do outro lado. Há anos, em Maputo, encontrei o general Chipande (Alberto Chipande, antigo ministro da Defesa de Moçambique), e ele mostrou-me um dedo a que faltava uma falangeta. "Foi um desgraçado de um soldado português que ma arrancou, com um tiro", disse-me. E eu respondi: "Ainda bem que era mesmo um desgraçado, senão não estava hoje aqui a contar-me isso...".
Não quis contar o telefonema feito para o então embaixador norte-americano em Portugal, Frank Carlucci, que, em desespero de causa, acabaria por fazer numa noite de Julho de 75, e por onde havia de começar a ponte aérea para a retirada dos portugueses de Angola.
Nem o que teve de aturar dos que fugiam como o diabo da cruz quando se levantava o problema dos refugiados.
"Fiz nessa altura coisas que nunca imaginara vir a ver-me fazer", acaba por lembrar, a custo, e sem dizer nomes. "Quantas vezes, acabadas as reuniões, ia pelos corredores a dizer "Mas, meu tenente-coronel, é preciso fazer isto e isto", e acabava a empurrar as portas de gabinetes para que não lhas fechassem na cara.
"Era tabu. O problema dos portugueses em Angola não existia. Ninguém aqui queria ouvir falar disso", conta.
Em Angola, era o salve-se quem puder, o cada um por si. "Lembro-me de ter visto juízes, professores universitários, a manobrar guindastes no porto de Luanda. Quando os guindastes deixaram de funcionar, era com os paus de carga dos navios. Punham o que era seu a salvo, como podiam, e partiam para o aeroporto. As pessoas tinham perdido todo o sentido de sociedade, só existiam elas próprias".
Lembra com mágoa a política de meter a cabeça na areia que era regra em Lisboa, mas não tem dúvidas que fazer melhor era impossível.
"Catorze anos foram tempo mais que suficiente para os políticos terem pensado numa solução para a guerra em África. Repare que Portugal foi a única metrópole a manter uma guerra nas colónias por tanto tempo. Os franceses e os ingleses tiveram problemas nas colónias, mas resolveram-nos rapidamente. Portugal foi o único país que aguentou guerras daquele tipo durante tanto tempo. Ainda hoje na OTAN há quem se admire de termos conseguido, nós, um país tão pequeno, manter forças em três teatros de guerra durante tanto tempo".
E com algo êxito, diga-se. "Na Guiné, a situação era má, em Moçambique, o general Kaulza de Arriaga não estava a ter os resultados que tinha pensado, mas em Angola a situação estava controlada. O Exército tinha parado as operações em 1972. O governador podia viajar por todo o território. Mesmo de comboio, podia ir de Vila Teixeira de Sousa, na fronteira, até Benguela".
Esses 14 anos de guerra são o triste recorde que, para o general, haveria de estar na base do 25 de Abril.
"O país estava exangue. Repare, aos 18 anos, um jovem era mobilizado. Se tivesse um irmão com 10 anos, oito anos depois a família ia viver o mesmo problema". Problema que era a angústia de nunca se saber em que acabavam as coisas, se era um dos que voltavam, direito ou como uma perna amputada, ou se ficava por lá, com uma bala no corpo.
A 25 de Abril, foi como se um dique se tivesse rompido. E rapidamente houve quem pretendesse ocupar o vácuo de poder em Angola. Estava-se em plena Guerra Fria, e "os Estados Unidos, a Rússia, a África do Sul tentaram logo preencher aquele espaço".
A Portugal, perdido naquele tabuleiro de parada alta de mais, restou tentar manter-se à tona.
No meio do vendaval, o general assume perante si próprio um compromisso. "Quem quisesse ficar ficava, mas era preciso que, quem quisesse vir, pudesse vir". E ele próprio viria, por fim, a consciência mais tranquila.
Aqui, foi o que se sabe. Gente metida em tudo o que era sítio, hotéis a abarrotar, com pouco mais que a roupa que traziam vestida, com uns trocos no bolso. Como sempre, o mal de uns é o bem de outros, e, quem para tanto teve artes, compôs a vida.
No fim da ponte aérea, os números oficiais registavam 228.471 pessoas trazidas de Angola. De barco, mais 5.794. Ao todo, 234.265 pessoas. Esse número viria depois a subir mais umas dezenas de milhar, quando foram recenseados todos os regressados. Diminuídos uns quantos, que África só conheciam de fotografia, mas aproveitaram para ter cama e roupa lavada durante uns tempos.
De trafulhices falou-se, à volta de uma centena de milhar de contos - coisa pouca comparada com os 50 milhões de contos gastos, a maioria donativos estrangeiros -, a Polícia Judiciária foi metida no IARN, mas não achou ponta por onde pegasse.

UM PORTUGUÊS CONFIANTE

Quando teve notícia do 25 de Abril, António Conceição ficou satisfeito. Era tempo de Angola se desenvolver, de as oportunidades serem para todos, e não apenas para as grandes companhias do algodão e do café, protegidas pelo Estado. "O regime tinha medo que Angola se desenvolvesse e acontecesse como ao Brasil, que se tornou independente", explica.
Os negócios corriam bem, a empresa-mãe do Huambo já abrira delegações em Luanda e Sá da Bandeira, hoje Lubango. Ali começara a trabalhar quando fora para Angola, ido de Mansores, Arouca, em 47, terminado o seminário mas adiada a ordenação, que para outras coisas o puxava a vida.
O sonho era o Brasil, mas sem serviço militar feito, nada feito. Para Angola, era outra história, até empurravam, se fosse preciso.
Feita a tropa, emprega-se como agente de empresas de fornecimento e assistência de máquinas para a indústria ligeira, coisa de padarias, serrações, carpintarias, cerâmica. Depois, abre o próprio negócio, expande-o, que aquela era terra de oportunidades.
Uma manhã de fins de Abril de 74 encontra-o à porta de um dos armazéns que tinha no Huambo. No primeiro andar, morava um exilado checoslovaco. A tomada do poder, após a II Grande Guerra, pelos comunistas, levara-lhe o pequeno rendimento de uma herança, e à decisão de mudar de ares.
"Então, já sabe o que aconteceu em Lisboa?", pergunta, ansioso de dar a novidade. O outro desencanta-o: "Não sabe o que é o comunismo! Não aguento aquilo tudo outra vez! Ainda me suicido".
Mas António Conceição não desanima, era grande a esperança que o golpe em Portugal resultasse em Angola em mais liberdade para trabalhar, para investir.
"Mas sempre brancos e negros irmanados", concluiu, após reunir o pessoal (chegou a ter à volta de 400 trabalhadores). "Pus o problema claramente, e a resposta que eles davam era: Patrão, nós queremos progresso para Angola, melhores condições para os nossos filhos, mas sempre ligados com vocês".
"Da maioria era essa a ideia. Não quer dizer que não houvesse uma minoria que pensasse de maneira diferente", ressalva.

O PRINCÍPIO DOS TRABALHOS

Com a assinatura, em Janeiro de 75, dos acordos do Alvor, começa o calvário de António Conceição. "Houve o Alvor, Portugal reconheceu os três partidos, infelizmente cada um com seu exército - não podia dar bom resultado - e nós tínhamos de os tratar todos com respeito. Eu fui procurado por uns e por outros, para os ajudar, por vezes até com mobílias, que também fabricava mobílias, ou com donativos, e atendi-os a todos por igual".
Mas às tantas começa a ser apontado com o apoiante da UNITA. "Sabe porquê? A certa altura, o comité da UNITA abordou-me, se eu deixava o dr. Savimbi instalar-se na minha propriedade e na minha casa, que eu nessa altura já vivia mais na cidade, tinha a casa disponível. Eu disse que sim, como diria a outro movimento qualquer. E assim foi. O dr. Savimbi, com toda a delicadeza, veio com o seu Estado-Maior ver as instalações, conversou comigo, perguntou de rendas, como é que era... Eu disse que queria nada, não seria por muito tempo. Deixei telefones, posto de rádio, instalações, mobílias. Instalou-se lá com o secretário, o Nzau Puna, e eu tinha absoluta liberdade de trânsito quando queria tratar dos assuntos da fazenda. Fui sempre respeitado, tanto por ele como pelas tropas, e ainda aconteceu salvar a vida a outras pessoas nos controlos por saberem da minha amizade com o dr. Savimbi".
Tudo muito bem, e assim continuou durante algum tempo. "Mesmo depois disso, continuei a ajudar o MPLA e a FNLA quando me solicitavam qualquer coisa. Até o Chipenda, veio uma vez pedir-me uma ajuda financeira e eu dei-a. Portanto, não tinha partido, porque eram todos angolanos".
Mas não há bem que sempre dure. Chegam os cubanos, e António Pereira Conceição passa a ser considerado apoiante da UNITA. "A Nova Lisboa, os cubanos ainda não tinham chegado. Mas já estavam a desembarcar quando isto sucedeu. E tive de vir embora, bem contra vontade".
Para mais, começava a faltar dinheiro para pagar ao pessoal. "Em grande parte, já não trabalhavam, assinavam só o ponto. Não era possível trabalhar, o que se produzia também não se vendia, não havia mercado. Onde eu ainda ganhava algum dinheiro era na serração, a fabricar carroçarias para camiões que iam para a África do Sul, e caixotaria para pessoas que vinham na ponte aérea ou em barcos".
Mas mesmo isso estava no fim. "E eu sabia que ia acabar aquela fonte de receita. Os próprios bancos já recusavam o pagamento de cheques, praticamente estavam fechados. Era natural que o pessoal ficasse indisposto quando não recebesse, e eu, que não tinha culpa nenhuma, ia ser a vítima".

PARTIDA ÀS ESCONDIDAS

Poucos dias antes de embarcar no avião, António Conceição tenta salvaguardar o que podia. "Procurei deixar o pessoal habilitado a continuar a administrar. Já nem havia notários a funcionar, mas dei-lhes uma espécie de procurações particulares, dando-lhes poderes para resolver todos os assuntos que pudessem surgir".
Aí começaram as suspeitas que estava para vir embora. "Um dia chego a uma serração grande, numa propriedade que tinha lá em Nova Lisboa, e vejo o pessoal reunido, o da serração e o da exploração agropecuária. Não me assustei, confiava neles, eram umas largas dezenas de pessoas, e puseram-se à minha volta. Então o que há, algum problema? perguntei. E a resposta era: Patrão vai-se embora. Que não, que tinha passado aqueles papéis porque tinha de ir às filiais de Sá da Bandeira e de Luanda, que os brancos que lá estavam tinham ido embora, e tinha de ver como aquilo estava. Mas não os convenci".
No dia combinado, vem mesmo embora, a única coisa que trouxe foram os alvarás das fábricas e os títulos da propriedade. "Não tive problemas, o coordenador da ponte aérea era um amigo". Mesmo que não fosse, para António Conceição aquilo funcionou bem. Bem de mais, suspeita mesmo. "Se calhar para trocar os portugueses por outros vindos de Cuba, da RDA. Se não tivesse havido tantas facilidades na ponte aérea, era natural que muito mais gente tivesse ficado...", acha.
Uns tempos depois, recebe uma carta de um empregado, a dizer "Patrão, os cubanos levaram tudo, dizem que era para as lojas do povo".
A única coisa que conserva, se os devolverem, são os terrenos. "Houve nacionalizações, mas segundo me disseram uns pastores adventistas que lá estiveram há uns dois anos, a propriedade não foi nacionalizada. Funcionava lá um orfanato para crianças filhas de combatentes mortos na guerra, e estavam lá umas moças holandesas, tudo muito bem conservado".
Contaram-lhe até que - "pedi para repetirem diversas vezes, que me consolava a alma" -, quando procuraram saber da situação da propriedade, perguntaram ao delegado do governo provincial, e o homem mostrou-se espantado por ainda ser vivo, que as terras ainda eram dele, sim senhor, que, quando quisesse, voltasse.
"Mas nunca me decidi a voltar porque tinha sido considerado apoiante da UNITA, e tanto era da UNITA como de outro qualquer. Mas tenho esperança de um dia ser uma pessoa desejada lá. E levar comigo empresários que já contactei, para ajudar a reconstruir Angola".
Chegou cá com o que trazia no corpo. "Podia ter ficado num hotel em Lisboa, como ficaram muitos, mas não estava no meu feitio. Vim parar aqui a Arouca, que era a minha terra".
A casa do pai estava ocupada pelos irmãos, teve de procurar outro sítio. Passados uns anos, a vida reorganizada, construiu casa. A princípio, foi difícil, como para os que por andavam. "Era difícil arranjar emprego, fiz uns serviços de borla, fazia relatórios para a Câmara a contar as carências da terra, a fazer serviços para a comunidade...".
E aproveitou para estudar o terreno. "Vi que uma das riquezas da zona era a floresta, e que os agricultores poderiam eles próprios intervir na transformação da floresta, em vez de proporcionarem o lucro todo aos intermediários".
E, com o apoio das pessoas da terra, deitou mãos à organização de uma cooperativa. "Já havia uma outra cooperativa, que tratava do leite, e eu fomentei a criação de uma outra, chamada a CODA. Comprámos um terreno de trinta mil metros quadrados, fizemos as infraestruturas, chegámos a ser visitados por estrangeiros. O alto-comissário elogiou a orgnização dos retornados de Arouca como um exemplo, porque não quiseram trabalhar isolados da população".
Mas o banco que ia fazer o financiamento exigiu que o projecto fosse só de retornados, não podia ter participação local. Ainda tentaram obter outro financiamento, mas as coisas falharam. E começou a haver invejas, suspeitas, houve até uma polémica no jornal da terra. A polémica foi resolvida, "mas quebrou-se o encanto", conclui António Conceição.

AGOSTINHO NETO "ESCONDIA" EM LISBOA UM "CORREDOR-SOMBRA" PARA WASHINGTON

Pouco antes da morte de Neto, em 1979, a Casa Branca pedia a Luanda que "esquecesse" a ajuda norte-americana ao Zaire e à FNLA; Walker, Bzerzinski, McHenry e Moose previam "para breve" a normalização das relações diplomáticas com o regime de Agostinho Neto

Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos lançaram na aventura dos corredores da Casa Branca alguns dos seus mais astutos negociadores. Por fim, em 1994, os Estados Unidos da América do Norte abriram, em Luanda, oficialmente, a sua representação diplomática, de facto. Quem foram os "homens de Neto" para os contactos com a Casa Branca? O nome de Paulo Teixeira Jorge, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Angola, é indissociável dos esforços de Agostinho Neto para convencer os americanos. O JN descobre, entretanto, que o "velho" presidente tinha, "escondido", em Lisboa, na década dos anos 70, um "emissário especial". Uma "arma secreta" para "raids" à Casa Branca estratégica e tacticamente concertados, em linha síncrona, com o MNE angolano: o dr. Arménio Ferreira. Médico radicado em Lisboa. Antigo companheiro de Agostinho Neto nos bancos escolares e na Casa dos Estudantes do Império. Arménio Ferreira sentou-se, em Washington, credenciado por Neto, de frente para Richard Moose, Donald McHenry, James Overly, Zibgnew Bzerzinski, Walker, Funk, Alan Hardy, entre outros pesos pesados, médios e leves da política dos "States" para a África.
Arménio Ferreira, cardiologista, não é diplomata de carreira, nem sequer "político encartado". O seu estatuto confunde-se com afectos, coerências fecundas, sentido imperdível de constância na lealdade e na solidariedade. Não fosse o dr. Arménio tão modesto, tão avesso à pimponice mediática, e nós, os repórteres, dele tiraríamos, seguramente, revelações interessantíssimas sobre os "labirintos" e os muitos protagonistas da história de Angola e do MPLA. O que mais contraria Arménio Ferreira é o facto de ele não ter conseguido, ainda, em foro desapaixonado, divulgar o seu pensamento sobre o papel e a obra de Agostinho Neto. Quando o saudoso presidente angolano considerou útil e conveniente a colaboração de Arménio nas árduas conversações com os americanos, o médico não hesitou. Independentemente das circunstâncias, Arménio Ferreira respondia "presente!".
As incursões mais "trepidantes" deste emissário especial do presidente Neto, junto da Casa Branca, tiveram lugar em 1979. Isto é, pouco antes da morte de Agostinho Neto. Foi quando o dr. Arménio Ferreira, nos dias 29 de Julho e 9 e 16 de Agosto, andou numa verdadeira farândola entre reuniões e mais reuniões na Casa Branca e com os homens do Departamento norte-americano de Estado. Os altos funcionários encarregados, principalmente, dos Assuntos Africanos: Richard Moose, Donald McHenry, Walker, Alan Hardy, e outros. A sessão que mais terá marcado Arménio Ferreira foi, provavelmente, aquela segunda parte das conversações de 9 de Agosto (1979), por volta das 18 horas. Quando Arménio Ferreira, em representação da parte angolana, discutiu com uma delegação norte-americana da Casa Branca encabeçada por N. Walker. Este, investido das duplas funções de expert em Assuntos Africanos e representante governamental norte-americano para o "dossier Angola", estava acompanhado, também, por Funk, secretário para a Segurança da Casa Branca.

MEMORÁVEL

Dessa reunião, a 9 de Agosto, no Departamento norte-americano de Estado, guarda o dr. Arménio Ferreira uma impressão certamente memorável. No período da manhã, ele trabalhara com um "pesado" da Casa Branca, Zibgnew Bzerzinski (National Security). O americano quis saber, de Arménio Ferreira, se o presidente Agostinho Neto "poderia governar sem os cubanos". O enviado angolano sorriu-se e aproveitou para lembrar aquilo que, de facto, mais embaraçava a Casa Branca: "Os cubanos só estão em Angola para combater e repelir a invasão sul-africana". Dir-se-ia que os norte-americanos, prestes a aceitarem como irreversível a "normalização" das relações com Angola (1979), não perdiam ensejo de agitar, mais uma vez, o fantasma do "comunismo". Bzerzinski disse mesmo ao dr. Arménio Ferreira, enviado de Agostinho Neto, que a URSS era o "suporte", em "todo o mundo", de vários "estados-marionetas". Entrementes, o norte-americano Funk, da "National Security", tem uma explanação no mínimo premonitória: "Actualmente, os Estados Unidos não auxiliam quaisquer organizações anti-angolanas". E justificou: "Se o fizemos no passado era, somente, porque essas organizações apresentavam-se com uma máscara anti-comunista, dizendo-se com forte implantação junto das populações angolanas".

"NORMALIZAR!"

Finalmente, o próprio Bzerzinski foi categórico diante da expectativa crescente de Arménio Ferreira naquela reunião em Washington: "Desejamos e vamos normalizar as nossas relações diplomáticas com Angola. Julgo que Angola também o deseja". Mais tarde, num breve esboço elaborativo dos seus registos, o dr. Arménio Ferreira tomou nota. "Quanto às palavras de Bzerzinski, interpreto-as essencialmente como um recado ao presidente Neto. No sentido de que as relações USA/Angola são provavelmente desejadas, neste momento, pela Casa Branca". E, do seu próprio punho, acrescentava Arménio Ferreira: "Bzerzinski, nesse aspecto, foi claro, na qualidade de único dirigente norte-americano que falava como quem tem autoridade para o fazer".
E, aqui chegado, o dr. Arménio particularizava, da mesma entrevista com aquele alto funcionário da administração americana: "Quando o intérprete (F. de Rivera) me falou em "more normal relations between the two states", eu interrompi-o. E disse-lhe que o conselheiro político do presidente Carter havia falado, sim, em "normal relations". Bzerzinski concordou e confirmou, inteiramente, a minha versão, em inglês".
Arménio Ferreira rematava, assim, as suas apreciações ao perfil de Bzerzinski: "Elemento considerado como da linha dura da Casa Branca, ele foi de uma correcção comedida mas, ao mesmo tempo, simpático e frio no raciocínio. Como quer que seja, foi o único que disse claramente que os Estados Unidos da América do Norte iriam estabelecer relações diplomáticas com Angola. Não mencionou, todavia, qualquer data presumível".

"ACABEM JÁ COM A PARANÓIA!"

Paulo Jorge, antigo ministro angolano dos Negócios Estrangeiros,
"encostou" Chester Croker e ouviu "promessas" de Cyrus Vince...

Paulo Teixeira Jorge foi o carismático ministro angolano dos Negócios Estrangeiros durante a presidência do não menos carismático António Agostinho Neto. Ele tem, dos revoluteios da política externa dos Estados Unidos, um conhecimento quase visceral. Quanto ao "dossier" das relações entre Luanda e Washington, Paulo Jorge conhece todas as sofistarias da "máquina" da Casa Branca.
Em Luanda, Paulo Jorge recebe, pela segunda vez no espaço de 48 horas, o enviado do JN. Especialmente para revisitarmos algumas "páginas" do grande livro negocial: Luanda versus Washington.
JORNAL DE NOTÍCIAS - Quais foram os negociadores norte-americanos que revelaram maior apego à linha dura da Casa Branca?
PAULO JORGE - Para começar: a posição da Casa Branca, se bem que eventualmente matizada, é uniforme. Eu dialoguei, por exemplo, variadíssimas vezes, com o então subsecretário de Estado, Chester Crocker. Claro que a posição dele era a posição do Governo norte-americano! Foi precisamente ao Chester Crocker que eu disse, num dos encontros, que os Estados Unidos deveriam reconsiderar sobre a "paranóia" anti-Angola e anti-Cuba. Em dado momento, o Chester Crocker faz avançar o tão falado "linkage": interligar as questões referentes a Angola, presença cubana e Namíbia. E, em 1982, num comunicado conjunto Luanda-Havana, expressa-se a total rejeição de semelhante "linkage"! Este era um tema obrigatório nas minhas deslocações às Nações Unidas, na época. Já com Ronald Reagan na presidência dos Estados Unidos.
JN - O Paulo Jorge utilizou o termo "paranóia" somente nas conversações com Chester?
PJ - Utilizei-o também num discurso que proferi na Assembleia Geral das Nações Unidas.
JN - Nunca conversou com o "moderado" Walker?
PJ - Conversei com ele, uma vez, no âmbito das consultas bilaterais. Tive também encontros com o Cyrus Vance no período em que se encontrava Jimmy Carter na presidência dos Estados Unidos. Conversei, também, com o Alexander Haig. Com o Shultz, etc, etc, etc.
JN - Na altura do falecimento do presidente Agostinho Neto estariam, já, a desenhar-se perspectivas fortes de entendimento com os Estados Unidos?
PJ - Recordo que em 1978...1979, numa das minhas deslocações a Nova Iorque para participar na Assembleia Geral das Nações Unidas, eu tive um encontro com o Cyrus Vance, secretário de Estado norte-americano. E, então, abordámos sim a problemática do reconhecimento da República Popular de Angola pela Administração dos Estados Unidos. Estavam os democratas na Casa Branca, portanto. E o Cyrus Vance deu a entender que estaria em curso um processo tendente ao reconhecimento e, naturalmente, à normalização de relações diplomáticas com Angola. Só que, entretanto, em 1980, foi eleito o republicano Ronald Reagan...! E tudo se desmoronou. Foi tudo por água abaixo. Um dos primeiros passos de Ronald Reagan, em 1981, na Administração norte-americana, consistia na revogação da chamada "Emenda Clark". Que impedia o Governo dos Estados Unidos de ajudar os "movimentos" de "oposição" aos regimes africanos. Já durante a campanha eleitoral dos republicanos se perfilava, e preconizava, uma ajuda à UNITA!

DIGA AO DR. NETO QUE É UM "INFERNO" SER-SE AMIGO DE ANGOLA EM WASHINGTON

Walker, encarregado norte-americano do "dossier Angola", queixava-se da sabotagem articulada por "comissões,
senadores, deputados e uma certa Imprensa ávida de deixar mal vistos os amigos da causa angolana"...

No interior da Casa Branca, durante a presidência angolana de Agostinho Neto, o poder democrata todos os dias traçava "fronteiras" entre os políticos hesitantes, às vezes mesmo contraditórios, e os políticos decididos. Um dos quais, Walker, não hesitou
em mandar dizer ao presidente Neto: "Olhe que não é fácil, aqui em Washington, a vida de quem se mostra favorável a Angola!". O enviado especial de Agostinho Neto (o médico Arménio Ferreira) percebeu, por outro lado, que os americanos já tinham como irreversível a opção de normalizar as relações diplomáticas com o regime de Neto. O líder angolano morreu, pouco depois, em Moscovo, vítima de cancro no pâncreas.

Luís Alberto Ferreira
Enviado JN

O norte-americano Zibgnew Bzerzinski, alto funcionário da Casa Branca (conselheiro para a Segurança do Estado), chegou a ter este desabafo diante do dr. Arménio Ferreira, enviado de Agostinho Neto: "Considero que, realmente, Angola e o seu presidente têm conduzido uma política independente, e não desejamos que Angola seja base de um novo conflito entre Leste e Oeste". Arménio ficou, por momentos, a contemplá-lo, e Bzerzinski prosseguiu nestes termos: "Queremos uma Angola livre e independente. E os Estados Unidos nunca intervirão, nós nunca interferiremos com o regime angolano. Seja qual for esse regime, como é timbre da nossa política na África Austral. Queremos a estabilidade na zona". E, por último, Bzerzinski proferiu a célebre assertiva: "Desejamos e vamos normalizar as nossas relações diplomáticas com Angola. Julgo que Angola também o deseja". Corria o Verão de 1979.
O ambiente, rememora o dr. Arménio Ferreira durante a conversa com o JN, era de manifesta cordialidade. Tanto assim que Bzerzinski tivera, até, um gesto particularmente simpático: manifestou a Arménio a sua preocupação pelo estado de saúde da esposa do médico angolano, na altura melindroso. Estava-se a 9 de Agosto de 1979.
Arménio Ferreira sentia-se, de facto, agradavelmente impressionado com as "performances" dos seus interlocutores.
Ele gostou, especialmente, das posturas dialogais de Walker e de Richard Moose. "Os mais liberais do Departamento de Estado e da margem esquerda do Partido Democrático", reitera Arménio Ferreira. Também McHenry, Donald McHenry, do "dossier" da Namíbia e embaixador na ONU, impressionou fortemente o emissário especial do presidente António Agostinho Neto.

DONALD McHENRY - A "SINCERIDADE"

No entender de Arménio Ferreira, o poder democrata norte-americano "tropeçava" nos remanescentes da mentalidade conservadora adjutória das políticas republicanas - o "inferno" para as aspirações dos países do Terceiro Mundo. Donald McHenry, que lidava fluentemente com o "dossier" da Namíbia (a SWAPO, na altura, sofria a "bom" sofrer às mãos da Infantaria do "apartheid"), tratou Arménio Ferreira com excepcional afectividade. Arménio matutava para os seus botões: "Este americano é, talvez, mais "formalista" que Walker, ou mesmo Richard Moose, mas é certamente o mais afectuoso de todos". Mc Henry sem dúvida que convenceu Arménio da sua "muita sinceridade". Arménio considerava-o "anti-sul-africano", logo, "anti-apartheid". Além disso, o enviado de Agostinho Neto estava convencido de que Donald McHenry iria suceder a Andrew Young como embaixador norte-americano nas Nações Unidas.
Nesse mesmo dia (9 de Agosto de 1979), ao cair da tarde, em Washington, o emissário especial do presidente Neto ouviu do norte-americano Walker (subsecretário de Estado para os Assuntos Africanos) os mais rasgados elogios. Walker destacou, vivamente, "a eficiência do trabalho" de Arménio Ferreira em prol da aproximação Washington-Luanda. Walker teria dito, entrementes: "Eu não vou repetir aqui as afirmações há pouco proferidas pelos senhores Bzerzinski e McHenry. Quero, isso sim, afirmar que devemos esquecer, Angola deve esquecer a ajuda que os Estados Unidos prestaram, em tempos, à República do Zaire e à FNLA".
Walter, que sabia ser insinuante, aproveitou para lembrar que ele próprio fora o arquitecto, no Departamento norte-americano de Estado, da aproximação Angola-Zaire.
Em Luanda, o enviado do JN ouviu, a propósito, Lopo do Nascimento, actualmente secretário-geral do MPLA, outrora primeiro-ministro durante a presidência do dr. Agostinho Neto. De facto, Lopo deixou bem claro que Donald Mc Henry foi pedra fulcral nas diligências que levaram à "normalização" das relações entre Luanda e Kinshasa. Lopo não falou de Walker. Nessa altura (1977-1979), foram realmente frequentes os encontros de McHenry, inclusivamente em Luanda, não só com Lopo do Nascimento mas, igualmente, com o próprio presidente Agostinho Neto. Falta saber, contudo, se, naquele tempo, a "normalização" teria sido pensável e realizável sem a activa disponibilidade do então presidente do Congo-Brazaville, Marien Nguabi. Com Walker ou sem Walker.
Como quer que seja, ninguém duvida, hoje, da importância que as diligências de Mc Henry, na África Austral, chegaram a conhecer no tocante ao arrefecimento das fricções entre Luanda e Kinshasa. A conclusão a extrair é a de que McHenry foi decisivo no terreno e que Walker tê-lo-á sido no interior mais profundo do Departamento norte-americano de Estado.

A MÁQUINA DOS "STATES"!!!

A verdade é que Arménio Ferreira, o emissário especial que Agostinho Neto, discretamente, accionava a partir de Lisboa, ficou detentor de uma experiência absolutamente singular. Sem ser político, ou diplomata, de carreira. Arménio Ferreira sentiu, por dentro, o pulsar das "dúvidas" e das "certezas" norte-americanas. Em dado momento das conversações nesse 9 de Agosto de 1979, Walker disse ao enviado de Neto: "Peço-lhe que diga ao presidente Neto que não é fácil, em Washington, a vida de quem é favorável a Angola!".
Uma declaração, no mínimo, electrizante. Historicamente significativa de quanto, nos Estados Unidos da América do Norte, Angola (a Angola dos tempos de Agostinho Neto), "perturbava" a terrível máquina dos "States". Walker (da Secretaria de Estado para os Assuntos Africanos) pediu, de facto, a Arménio Ferreira, que fizesse o dr. Neto compreender esse drama: "Diga ao presidente Agostinho Neto que custa muito trabalho, em Washington, sustentar posições pró-Angola. Porque é preciso lutar contra burocracias internas. Contra a má vontade das várias comissões, de vários senadores e deputados. Contra uma Imprensa sempre ávida de assuntos e situações que possam colocar mal os amigos de Angola!".

NETO ELOGIADO PELA CASA BRANCA!

Desabafo insinuante de Donald McHenry: "Eu tenho um fraco por Angola,
sou o americano que mais vezes foi a Angola depois da independência..."

Quando o dr. Agostinho Neto se evadiu da prisão, em Portugal, lembra Arménio Ferreira, "eu mesmo fui buscá-lo à Praia das Maçãs". Para dar continuidade à operação que levaria Neto para o exterior, até à sua fixação em Kinshasa, República do Zaire. Aconteceu em 1961. Dezoito anos mais tarde, Agostinho Neto foi "buscar" Arménio Ferreira a Lisboa para seu emissário-estratega nas conversações com os americanos. Desconfiados do "comunismo" de Neto (e do MPLA).
O que o dr. Arménio constatou, face às declarações dos seus interlocutores, só poderia ser gratificante para António Agostinho Neto, chefe do Estado angolano. Donald McHenry, que sobraçava, na Administração norte-americana, o "dossier" da Namíbia, disse a Arménio ter gostado "imenso" do acolhimento que lhe havia sido dispensado, em Luanda, à sua chegada. "Instalaram-me numa casa maravilhosa", lembrou o alto funcionário de Washington. "Encantou-me aquela vista de sonho da baía de Luanda", disse ainda McHenry com manifesto enlevo.
Uma particularidade, que Arménio Ferreira sublinha: "As conversações, curiosamente, realizaram-se, no Departamento norte-americano de Estado, nos gabinetes de Andrew Young, precisamente um dia antes de este ter apresentado a sua demissão ao presidente Jimmy Carter".
Era a tarde de 16 de Agosto de 1979. Conversou-se muito sobre a tormentosa questão da Namíbia. E, em dado momento, Donald McHenry teve este desabafo: "É justo salientar a actividade construtiva do presidente Agostinho Neto em relação ao problema da Namíbia! Conheço o resultado das negociações com o senhor Kurt Waldheim, secretário-geral das Nações Unidas. E sei também que o senhor Kurt Waldheim ficou com uma excelente impressão do presidente Agostinho Neto!"

ENCANTADOS!

Donald Mc Henry foi mais longe, ainda, no reconhecimento da acção do presidente angolano: "O Governo dos Estados Unidos da América do Norte considera muito a acção construtiva do dr. Neto, relativamente à resolução do problema da Namíbia. Sem essa ajuda angolana a resolução seria, certamente, impossível!". E o alto funcionário da Casa Branca não se dispensou sequer de vaticinar: "Desejo que, entretanto, Angola ultrapasse os seus problemas internos, para que o seu presidente possa, enfim, dedicar-se profundamente à reconstrução económica e social do país". McHenry quis reconhecer, também, por outro lado, que o presidente Neto "falara grosso" para a SWAPO ter mais cuidado com as suas "movimentações no território namibiano".
No final das conversações, era ainda McHenry a dizer para Arménio Ferreira: "O presidente Carter e o secretário de Estado, Cyrus Vance, estão ao corrente de todas estas conversações e apreciam muito a colaboração que o dr. Arménio Ferreira tem prestado nesse sentido". E, depois, de regresso à "intimidade", McHenry deixou escapar: "Eu tenho um fraco por Angola. Provavelmente, eu sou o americano que mais vezes foi a Angola depois da independência. Já causa inveja a minha resistência de "globetrotter" aéreo... mas, do que eu realmente gostaria, se entretanto não morrer, era de ver normalizadas as relações entre o meu país e Angola"!
Num gesto fagueiro e cortês, Donald McHenry e Richard Moose enviaram telegramas e ramos de flores à esposa de Arménio Ferreira, entretanto internada numa clínica norte-americana.

 

(Dossier do JORNAL DE NOTÍCIAS)