20-6-2001
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ANGOLA, 20 ANOS DEPOIS
O 25 de Abril surpreendeu tudo e todos em Angola. Luanda vivia a vida cosmopolita de uma capital colonial, e só uma meia-dúzia de dias depois, em princípios de Maio, no Zaire e na Zâmbia, os movimentos de libertação reagem ao golpe militar em Portugal, com proclamações de continuação da luta até à independência total. Ironicamente, o golpe em Portugal haveria de conceder-lhes um protagonismo que estavam longe de ter conquistado.
As promessas de continuação da
guerra com que o MPLA, a FNLA a a UNITA reagiram ao golpe em Portugal, diga-se
em boa verdade, não tiravam o sono a ninguém.
Em 1974, a luta de libertação atravessava um período crítico: o Exército
português controlava militarmente todo o território - as operações tinham
cessado em 1972 e a livre circulação era um facto.
Após o surgimento, em meados dos anos 60, de actividade militar no interior - O
MPLA abre em 66 a Frente Leste, a UNITA ataca Vila Teixeira de Sousa, na
fronteira catanguesa, em fins de 65 -, os movimentos encontravam-se minados por
profundas crises internas.
Neto mandara fuzilar, dois anos antes, vários comandantes no Leste, após a
revolta dos Bundas, e o movimento está recuado na Zâmbia, envolvido num debate
interno para a revitalização daquela frente. Chipenda proclamara no ano
anterior a cisão, em protesto contra a assinatura, por Neto e Holden Roberto,
do inesperado acordo para a criação do Conselho Supremo para a Libertação de
Angola.
Mais tarde, já em 74, mas ainda antes do 25 de Abril, virá a surgir uma outra
facção, a Revolta Activa, propondo amplo debate para a redefinição da estratégia
da luta de libertação.
Pelo lado da FNLA, as coisas não estavam melhores. Apesar de se saber que o
movimento, com apoio de Mobutu, estava a formar no Zaire um exército de 9.000
homens, treinado por instrutores chineses e bem armado, Holden Roberto estava
precisado de quadros dirigentes. Mandara fuzilar, após a revolta de Kinkuzo, no
Zaire, em princípios de 72, dezenas de oficiais do seu Estado-Maior, e vários
outros haviam fugido para Brazzaville.
A UNITA encontra-se no interior, abaixo da linha do caminho-de-ferro de
Benguela, sem actividade militar conhecida.
Em Luanda, em 74, os combates
eram uma coisa longínqua, que a cosmopolita vida na capital fazia ainda mais
remota.
"À medida que as pessoas se integravam, a ideia da guerra era uma ideia
longínqua", recorda o pró-reitor da Universidade do Porto, professor Nuno
Grande, na altura vice-reitor da Universidade de Luanda.
"Como as pessoas estavam longe dos focos de guerra, adormeciam um pouco em
relação à situação em que se vivia", conta.
O professor recorda no entanto que a capital angolana por pouco não foi abalada
por uma operação da guerrilha. "No Natal de 73, foi desactivada uma operação
de guerrilha urbana que estava a ser preparada por gente da FNLA, dentro da
cidade de Luanda. As pessoas não tiveram muita consciência disso, mas eu,
porque estava ligado à Universidade, tive conhecimento pelos canais oficiais
que uma das acções seria contra o próprio hospital universitário".
A preparação dessa acção foi contudo descoberta.
No geral, o dispositivo militar da administração colonial era na verdade muito
eficaz, reconhecem hoje alguns dos que naquela altura estavam do outro lado.
O Exército, as tropas especiais africanas treinadas pela PIDE/DGS, os Flechas,
a polícia política, forças militarizadas e as milícias da Organização
Popular de Vigilância e Defesa Civil de Angola estabeleciam no terreno um
controlo a que dificilmente escapavam os movimentos da guerrilha.
Estes faziam contudo incursões através das fronteiras de Brazzaville e da Zâmbia,
e havia zonas perfeitamente demarcadas onde já se sabia que tudo podia
acontecer.
Aí por volta de 1965, conta Nuno Grande, nos Dembos e no Moxico a guerrilha fez
muita mossa. "Cabinda e o Leste eram sítios de onde nós, os médicos do
Hospital Militar, sabíamos que os feridos vinham sempre muito
maltratados".
Em Cabinda, onde foi enviado para investigar um surto de febre amarela,
"havia muitos focos, com grande número de mortos. Lembro-me que, numa distância
de 200 quilómetros, os comandantes das companhias que estavam ali aquarteladas
diziam-me: "Temos um morto por quilómetro". Havia 200 mortos entre as
duas companhias, o que era um número considerável.
"Bem sei que estavam ali dois anos, mas a guerrilha era muito mais efectiva
em Cabinda, porque as fronteiras com o Congo-Brazzaville eram muito permeáveis.
Eles faziam as operações, deixavam as coisas armadilhadas, e iam embora, nem
sequer assistiam aos efeitos. E dava-se conta, no Hospital Militar de Luanda,
quando alguém vinha de Cabinda, pelos maus tratos...", conta.
Por cá, era ler os comunicados militares que diariamente o Ministério da
Guerra mandava publicar nos jornais. "O Serviço de Informações Públicas
das Forças Armadas comunica que morreram em combate, na Província de Angola,
os seguintes militares:" e seguiam-se os nomes de mais uns tantos que,
naquele ano, entre a noite de Natal e a de fim de ano, não iriam aparecer na
TV, a desejar festas felizes.
Na capital, muita gente conhecia pessoas ligadas ao MPLA. "A FNLA tinha
também alguma implantação, a UNITA não me recordo de ter grande impacto em
Luanda - teria provavelmente mais para leste, mas em Luanda não", recorda
o professor.
"Eles trabalhavam em Luanda, tinham frequentado as escolas. As pessoas
lembravam-se de alguns que tinham saído de lá nos anos 50 e 60. Desde o dr.
Agostinho Neto, que tinha saído de Luanda, onde era enfermeiro, para estudar
Medicina, e depois não voltou, até àquele que havia de dar o nome ao hospital
universitário, o irmão do Miguel Boavida, o Américo Boavida, que foi
estudante, aqui no Porto, no meu tempo. Era ginecologista em Luanda, e,
portanto, muitas pessoas o conheciam".
"Referiam-se a eles com simpatia, curiosamente. Mas, ao mesmo tempo, eles
representavam as forças que lutavam contra Portugal, e havia uma certa
ambiguidade - as pessoas lembravam-se de quem eram conhecidas e amigas, mas ao
mesmo tempo tinham a reserva inerente a alguém que sabe que em algum momento
eles poderiam desestabilizar tudo", recorda Nuno Grande.
A 25 de Abril de 1974, Agostinho
Neto encontrava-se no Canadá, mantendo contactos com a companhia petrolífera
norte-americana Gulf Oil, em busca de apoio ocidental para o MPLA. Não hesitou
em classificar o golpe em Portugal como um ajuste de contas entre facções do
regime.
Os três movimentos, aliás, em comunicados tornados públicos nos dias
imediatos, não escondiam as suas reservas.
A FNLA, em comunicado publicado a 30 de Abril, apelava à continuação da luta
do povo angolano até que "a justiça universalmente reconhecida, o
bom-senso e o direito à livre determinação" saíssem vitoriosos.
No mês seguinte, o líder do movimento, Holden Roberto, admitia já negociações
com Portugal, com uma condição: o reconhecimento do direito à autodeterminação
e à independência.
Pela mesma altura, já Agostinho Neto ajustara a opinião sobre o golpe militar
em Portugal, mas mantinha a determinação de lutar até que Portugal se
comprometesse a conceder a independência, a partir do que poderia ser iniciada
a negociação sobre a transferência do poder. Pelo caminho, rejeitava
categoricamente qualquer federação com a antiga metrópole.
A 21 de Maio, a UNITA alinha pelo mesmo tom. Mas, segundo o jornal "Província
de Angola", Jonas Savimbi teria já acordado com as autoridades portuguesas
um cessar-fogo. A 13 de Junho, Savimbi tornava públicas, no mesmo jornal, as
suas posições sobre a questão, propondo um período de preparação política
do povo para a independência, com a participação dos três movimentos, e a
realização de eleições.
De Portugal, a Junta de Salvação
Nacional ordenara o regresso do então governador de Angola, Santos e Castro, e
nomeara em seu lugar o então tenente-coronel Soares Carneiro.
Da prisão de Luanda são libertados 85 presos políticos, e da de São Nicolau,
em Moçâmedes, 1.200. A PIDE é formalmente extinta, mas os agentes integrados
num novo serviço de informações, o Comando da Polícia de Informação
Militar.
O general Costa Gomes chega na primeira semana de Maio a Luanda, e afirma em
conferência de imprensa que o combate contra os movimentos de libertação
continua, até que estes deponham as armas e aceitem uma solução política.
"Nenhuma província, nenhum grupo, nenhuma raça, terão permissão para
impor uma solução que não tenha passado pelo crivo de um teste democrático",
disse o general, acrescentando, em resposta a dúvidas manifestadas pelos
jornalistas, que "é nossa intenção continuar a luta contra as
guerrilhas, e essa posição manter-se-á até que os guerrilheiros aceitem a
nossa oferta para depor as armas e se apresentem como um partido político
legal".
De regresso a Lisboa, Costa Gomes, que em Luanda manifesta muitas e públicas dúvidas
quanto ao que "muita gente pensa e tem propagado" sobre o apoio da
população angolana aos movimentos de libertação, afirma que "todos os
grupos humanos dessa sociedade luso-tropical" lhe haviam dado uma grande
alegria, a da "esperança da realidade efectiva da autodeterminação autêntica
num quadro variável dum portuguesismo pluricontinental".
Três dias após o 25 de Abril, o general Spínola já fazia questão de separar
as águas entre autodeterminação e independência: a autodeterminação é o
direito de um povo livremente escolher o seu destino, a independência imediata
a aceitação duma vontade que não seria a desse povo.
Mário Soares, recém-regressado do exílio e já de viagem a Bona, considera
"importantes" as palavras do general, mas quando lhe perguntam se é
favor de uma federação ou da independência, responde: "Sou abertamente
pela independência, e, na minha opinião e na do meu partido, é necessário
negociar urgentemente com os movimentos de libertação".
Ao tomar o lugar de que o almirante Tomás fora apeado, duas semanas depois, a
15 de Maio, Spínola diz para a rua, que berra pelo fim da guerra colonial e a
independência imediata para as colónias: "Os nossos esforços centrar-se-ão
no restabelecimento da paz no Ultramar, mas o destino do Ultramar Português terá
de ser decidido por todos os que àquela terra chamaram sua".
Mais tarde, num encontro com o
presidente do Zaire, Mobutu, na ilha cabo-verdiana do Sal, discute esse destino.
A conversa foi rodeada do maior segredo, e o jornal "República"
haveria muito mais tarde, em Outubro de 75, já depois da queda em desgraça do
general, de noticiar que fora discutido um complexo acordo de mútuos benefícios
para os interesses portugueses e zairenses, nos quais se incluiria uma inédita
Federação Zaire-Angola-Cabinda, com Mobutu a presidente e o líder da FNLA a
vice-presidente.
Na notícia, é difícil distinguir entre a verdade e a propaganda da época,
mas não se andará longe da verdade se se disser que dos planos do general
constava a aposta em Holden Roberto, o homem dos americanos, de Mobutu e, noutro
tabuleiro, dos chineses, para contrariar o MPLA.
Na falta de uma política clara para o problema colonial, a incerteza dominava
mesmo os sectores mais informados da sociedade luandense. Os telexes das agências
noticiosas dão conta desse estado de espírito, como um despacho da Reuter
publicado pelos jornais portugueses a 4 de Maio, segundo o qual brancos e
africanos moderados se manifestavam favoráveis à criação de um Estado
multirracial e à ideia de uma qualquer federação com a metrópole.
Em Junho, o general Silvino Silvério Marques, que fora já governador de Angola
entre 1962 e 1966, os anos imediatamente seguintes ao início da luta armada, é
nomeado de novo para o cargo. Quando o avião aterra em Luanda, há manifestações
no aeroporto contra o general, que permanecerá no entanto na capital angolana
até fins de Julho, altura em que, após o assassínio de um taxista branco num
musseque, ocorrem os primeiros distúrbios.
Na tarde do dia 10 de Novembro de
1975, a bandeira portuguesa foi pela última vez arreada no Palácio do Governo
e na fortaleza, dobrada e redobrada. O alto-comissário, almirante Leonel
Cardoso, ao qual coube a ingrata tarefa, proclamara horas antes a independência
de Angola.
Quatrocentos e noventa e dois anos depois das naus portuguesas ali terem largado
ferros, o último representante da soberania portuguesa abandonava a jóia do
ex-Império, e partia, "sem cerimonial, mas de cara levantada", rumo
à base naval da ilha de Luanda.
Ao largo, na baía já abandonada por barcos carregados até à borda de multidões
e contentores, a fragata "Roberto Ivens" escoltava o "Uíge"
e o "Niassa", com as máquinas prontas para, pela última vez,
zarparem para Lisboa.
Uma semana antes, a cidade branca acabara de esvaziar-se. A ponte aérea,
organizada com o apoio de países estrangeiros, retirara de Angola, no meio de
indescritíveis cenas de pânico e confusão, quase meio milhão de portugueses.
As estátuas dos imortais portugueses jaziam apeadas, no sítio havia só os
pedestais, já pintados com o vermelho-negro do MPLA.
Para trás ficara a companhia de pára-quedistas, o almirante e uma meia-dúzia
de funcionários que agora, no meio de grande e inútil aparato militar, se
dirigiam para o porto.
Polícias angolanos, de farda azul, ganharam de imediato as posições
desocupadas. Às janelas do palácio, alguns criados negros assistiram à saída
de blindados e "Berliets".
Na baixa luandense, nem isso. Cortadas por fuzileiros, as ruas estavam desertas.
No imponente Salão Nobre do Palácio,
o alto-comissário fizera de manhã, perante um batalhão de jornalistas, um
breve deve e haver daqueles meses de brasa.
"E assim Portugal entrega Angola aos angolanos, depois de quase 500 anos de
presença, durante os quais se foram cimentando amizades e caldeando culturas,
com ingredientes que nada poderá destruir. Os homens desaparecem, mas a obra
fica. Portugal parte sem sentimentos de culpa e sem ter de que se envergonhar.
Deixa um país que está na vanguarda dos estados africanos, deixa um país de
que se orgulha e de que todos os angolanos podem orgulhar-se".
E arrematou responsabilidades: "A única recriminação que poderá aceitar
é a de ter dado provas de extrema ingenuidade política quando concordou com
certas cláusulas do acordo do Alvor".
Para o almirante ingenuidade, para Neto, que à custa de sangue e suor
conseguiria proclamar-se no dia seguinte presidente em Luanda, outra coisa.
"Quanto a Portugal, o desrespeito dos acordos do Alvor é manifesto, entre
outros, no facto de sempre ter silenciado a invasão de que o nosso país é vítima
por parte de exércitos regulares e de forças reaccionárias (...) que teimou
em considerar como movimentos de libertação, tentando empurrar o MPLA para
soluções que significariam uma alta traição ao povo angolano".
Leonel Cardoso não pode responder, não estava presente no palanque de Neto,
cumprira a promessa feita em confidência um mês antes a Cáceres Monteiro,
enviado de "O Jornal": "Se um movimento não quiser vir, ainda
aceito que se faça a cerimónia com os outros dois. Só com um, eu não tomo
parte nas cerimónias. A um, eu não entrego o poder. Não vou às cerimónias
de posse desse movimento".
No Campo da Revolução, no Sambizanga, o povo, na véspera, condenara ao
enforcamento os espantalhos dos presidentes da FNLA, Holden Roberto, e da UNITA,
Jonas Savimbi. Mas nessa noite, as palavras do líder do MPLA, agora presidente
de Angola, perdiam-se no barulho dos disparos de faplas festejando, e, mais ao
longe, de um fragor de explosões.
Ao largo de Cabo Ledo, um submarino soviético estava para o que desse e viesse,
pronto para dar fuga a Neto.
A FNLA estava a 25 quilómetros, no Caxito e Quifangondo, e Holden Roberto, que
celebrava a independência em Carmona, hoje Uíge, encerrara o discurso às
tropas com um "até logo, em Luanda". Vinte e quatro horas depois, à
meia-noite do dia 11, não em Luanda, mas em Ambriz, proclamava a República
Popular e Democrática de Angola.
No Sul, o MPLA acabara de perder Sá da Bandeira, Moçâmedes, Porto Alexandre,
Benguela e o Lobito, e a UNITA celebrava naquela que viria a ser a sua capital,
Nova Lisboa, depois crismada Huambo.
Em Lisboa, ao Verão Quente
sucedia um Outono escaldante, o 25 de Novembro estava à vista. O ministro da
Cooperação, Vítor Crespo, cancelara na madrugada de dia 10 a partida para
Luanda. Um longo e polémico Conselho de Ministros, terminado a altas horas
dessa noite, para que tinham sido convocados, a título excepcional, os secretários-gerais
dos três partidos com assento no Governo - PS, PPD e PCP -, acabaria por
reafirmar apenas o espírito do acordo do Alvor, e a não ingerência de
Portugal nos assuntos internos do povo angolano, defendida pelo PS e o PPD,
contra a posição do PCP, segundo o qual o MPLA era o único representante legítimo
do povo angolano.
Convocado o Conselho da Revolução pelo presidente da República, general Costa
Gomes, as divergências mantiveram-se.
Otelo faltou, zangado com os moderados, e Rosa Coutinho, ex-alto-comissário em
Angola, num telegrama de felicitações a Neto, pedia desculpa por só mandar o
coração a Luanda, que o resto era preciso aqui.
O avião da TAP, que levantara para a capital angolana com Palma Inácio, da
LUAR, Carlos Antunes, do PRP, José Manuel Tengarrinha, do MDP/CDE, Pereira de
Moura, do Conselho Mundial para a Paz, e delegações de vários partidos
comunistas estrangeiros, foi mandado regressar a 30 minutos de Luanda.
Ao aterrar na Portela, às 5,30 horas, soube-se que a ordem de regresso fora do
ministro dos Transportes, Valter Rosa, e o argumento que Luanda estava a ser
bombardeada. Horas mais tarde, o aparelho, fretado pelos Transportes Aéreos de
Angola, levantava de novo com o mesmo destino.
Às seis da manhã de 22 de Fevereiro do ano seguinte, Melo Antunes anunciava o
reconhecimento por Portugal do Governo angolano. O Brasil fora o primeiro país
a reconhecê-lo, no próprio 11 de Novembro, Portugal era o 88.o.
Não há dinheiro, mas o
projecto, ambicioso e chamativo, já embalou e começa a convencer: a URBANIZAÇÃO
DE LUANDA-SUL. Nem Banco Mundial, nem BAD (Banco Africano de Desenvolvimento),
nem UNESCO - nada! Este programa de desenvolvimento urbanístico de Luanda
nutre-se do seu próprio lenho: vende os terrenos que lhe são afectos (para
casas de renda alta) e desse modo agiliza outras duas vertentes de grande urgência:
as casas "económicas" e as casas "sociais". Ao cabo de 20
anos de independência, Luanda tenta revitalizar os pulmões e lavar a cara. Mas,
claro, não vai ser fácil. E não é trabalho para cardíacos...
Luanda, sabiam?, tem cerca de três
milhões de habitantes!!!
A partir de 1975, semana a semana, dia a dia, a capital de Angola viu crescer,
de modo avassalador, o número de utentes das suas, hoje, devassadas e corroídas
infra-estruturas. Montadas para servir pouco mais de 400 mil pessoas. Hoje,
positivamente a rebentar pelas costuras, a cidade de Luanda é vítima de todas
as erosões possíveis. Sempre são 20 anos velozes e dilacerantes. Desde a
proclamação da independência, com o saudoso presidente Neto na tribuna do
Largo 1.o de Maio. Ele, o dr. Agostinho Neto, aí por alturas de 1977, 78, 79,
ano em que morreu, usava deslocar-se, por vezes, discreto e sorrateiro, a certos
recantos de Luanda, para ver e crer. Quando começaram a manifestar-se, na pele
da grande cidade africana, as primeiras feridas preocupantes. Já passaram,
pois, cinco lustros - durante os quais Luanda não cessou de crescer e de
receber gente, gente, mais gente, sempre mais gente. Um fenómeno visceral da
guerra. Em vários capítulos. Depois de 1975, uma onda imparável, num gotejar
sincopado. Depois das eleições de 1992, nova onda de deslocados, refugiados,
mutilados - homens e mulheres, com as suas crianças, camponeses, operários,
funcionários, militares tresmalhados, do Norte, do Centro e do Sul.
Luanda aguentou tudo isso e hoje, exausta, reconhece-se em tudo isso. Guerra de
libertação, independência, guerras pontuais fratricidas. É uma cidade,
apesar de tudo, estoica, lutadora, perseverante. Uma cidade rara. Ulcerada e
destruída ali, refeita e repintada acolá. E a gente reconhece-a, sempre, até
nos inesperados labirintos, nos esconsos de terra batida do bairro dos
Coqueiros. As infraestruturas de Luanda, estripadas, são ainda as mesmas de
1974, quando a cidade acolhia cerca de 400 mil almas. As mesmas! E os novos
muceques, nas imediatas periferias são, agora, de betão! Construções ao Deus
dará, numa impressionante sequência de sofreguidões, improvisos e
clandestinidades sem clandestinidade nenhuma.
Há edifícios de apartamentos, noutras áreas de Luanda, cuja infraestrutura
comporta, na totalidade, fossas sépticas! Edifícios com uma média de 20
apartamentos por cada andar. Os rebentamentos em canalizações agudizam, no
quotidiano luandense, o problema da rede de esgotos, talvez o mais sério de
todos. O governador provincial de Luanda, Justino Fernandes, disse ao JN que a
maior preocupação, neste momento, incide no esforço a realizar antes da eclosão
das próximas chuvas. A malha de drenagem está a ser objecto de obras
estrategicamente definidas, em vários pontos de Luanda. São obras avulsas,
mediante contratos severamente estabelecidos.
É que, francamente, não há dinheiro, confessa Justino Fernandes. E, por isso,
tudo é negociado palmo a palmo, discutido com a Direcção de Economia.
"Se der uma volta por Luanda", sugere o governador provincial,
"vai certamente poder observar pequenas obras em curso, um pouco por toda a
cidade". Por exemplo, estão a ser desobstruídas as mais de três mil
sarjetas da capital. Obras encaixadas num "sistema" de programa a
programa, passo a passo. Tem de ser assim porque, de facto, não há, no
verdadeiro sentido do termo, um orçamento próprio. O grande programa
"Vamos salvar Luanda", desenhado, em tempos, com algum entusiasmo,
chocou com a barreira impeditiva da falta de meios financeiros. Para recuperar
Luanda, segundo cálculos de 1992-1993 (na altura revelados, também, ao JN),
seriam necessários cerca de 400 milhões de dólares. Agora, a política do
governo provincial é mesmo arregaçar as mangas e caçar com gato, como
sentencia o povo português. Programa... caderno de encargos... Programa...
caderno de encargos... E Luanda lá vai cuidando das suas feridas profundas.
Justino Fernandes não tem, de
facto, mãos a medir, nem tempo para ir à varanda e contemplar a algazarra
popular dos transportes colectivos no Largo da Mutamba, lá mais em baixo. O
governo provincial de Luanda está instalado no belo e histórico edifício da
antiga Câmara Municipal. O imóvel, diz Justino Fernandes ao enviado do JN, é
"património mundial". Nada mais atinado. A estrutura de ferro foi,
reitera o governador de Luanda, concebida por Gustavo Eiffel, o mesmíssimo que
ofereceu engenho à ponte de D. Maria Pia, no Porto. Bem, e "Luanda-Sul"?
O que vem a ser, afinal, esse projecto de que tanto se fala na capital?
JUSTINO FERNANDES - Luanda-Sul é um programa de desenvolvimento urbanístico
que visa descongestionar o casco urbano da província. Um programa que criará
condições para a implantação de novos bairros residenciais. Como pode ver,
Luanda está hoje prensada por uma grande rede de muceques de betão: não
houve, nestes anos todos, a possibilidade de acompanhar de uma forma organizada
a construção de moradias. O resultado é este: muceques de betão! Quando,
noutras partes do mundo, são bairros de lata - chaparias, entabuados e outros
materiais, facilmente removíveis. Mas, se fizermos as contas, concluimos que a
construção clandestina, em betão, fica tão onerosa como se a obra surgisse
em terrenos urbanizados a rigor. Com o programa Luanda-Sul vamos, pois, começar
a fazer casas de uma forma ordenada. Vamos meter na ordem a construção, em
Luanda. Isto é fundamental numa metrópole com qusse 3 milhões de almas!
JN - Por onde se estende essa nova urbanização?
JF - Estende-se para sul da cidade de Luanda. O programa está dividido em três
partes, três segmentos onde os novos bairros serão implantados. O primeiro
segmento é a plataforma que sai do Futungo para a Barra do Quanza e vai, por
Benfica, até à zona alta do Golfe. Será a vertente das casas de renda alta.
Para gente com recursos. Vendemos os terrenos, aí, em direito de superfície. E
o horizonte temporal é de noventa anos.
JN - Varre-se qualquer possibilidade de especulação imobiliária...
JF - De forma absoluta. Veja: com o dinheiro que vamos arrecadar (na venda dos
direitos de superfície), criamos infraestruturas nessa vertente (casas de renda
alta) e também nas zonas destinadas aos bairros económicos e aos bairros
sociais. Respectivamente: na zona frontal ao Golfe (bairro emblemático da
macrocefalia luandense), ou seja, na vertente Camama-Sepú, e na zona de
Viana-2.
JN - A água, em Luanda, é outro dos bicos de obra tormentosos. Isso não vai
"amordaçar" o projecto Luanda-Sul?
JF - Já estamos a instalar uma conduta de cerca de 25 quilómetros que abarcará
os três segmentos de casas habitacionais.
JN - Calculo as expectativas da população de Luanda em relação às
"casas sociais"...
JF - Ao princípio, as pessoas pensavam que o projecto de urbanização iria
contemplar, simplesmente, as pessoas com dinheiro, só casas de renda alta. De
facto, não é assim. Empregámos o dinheiro, das pessoas que podem comprar em
direito de superfície, na criação de infraestruturas para as casas e bairros
destinados às pessoas de menos recursos. Começámos, já, a construção das
2.500 casas que, no projecto Luanda-Sul, figuram como expressão de um
"compromisso assumido".
Portanto, em Luanda, 400 mil
habitantes em 1974 e quase 3 milhões em 1995! Uma improcedência
"fatal" para os equilíbrios em jogo: urbano-arquitectónico,
ambiental, funcional e cívico. Ao longo destes últimos 20 anos, os anos de
independência, este enviado do JN esteve em Angola tantas vezes quantas
redondeiam o dobro desses cinco lustros do exercício da soberania angolana.
Muitas, muitíssimas coisas mudaram em Luanda nestes 20 anos. Para pior, a maior
parte. Para melhor, muito melhor, a parcela menos vultosa. Vamos ver o que é
que mexe na caleidoscópica cidade de Luanda.
A muito pré-jacente deterioração
dos edifícios comerciais e residenciais do centro de Luanda ilustrou, desde
1977, os relatos dos jornalistas que visitam Angola. A "baixa" foi
(prelúdio de sobressalto em 1975), rapidamente invadida por gente fugida dos
muceques periféricos ou mesmo de outros pontos do país. Aos poucos, este cenário
altera-se. Porém, edifícios como o do velho Hotel Luanda, o da velha "fábrica
do gelo", e outros, residenciais, na fundamental Rua de Avelino Dias, estão
irreconhecíveis. Outros imóveis, entretanto, conheceram cuidados de manutenção
ou foram beneficiados. Nem tudo está mal, portanto. A Avenida Marginal (manutenção
e higiene) está muitíssimo bem. A Cidade Alta, o Maculusso, alguns trechos da
Maianga, o Bairro de Alvalade, souberam ou puderam defender-se. Seja como for, a
recuperação do parque imobiliário de Luanda irá, sempre, traduzir-se num
grandioso investimento financeiro, tecnológico e humano!
Durante a entrevista que nos
concede, em Luanda, o governador provincial põe o acento tónico na momentosa
questão dos velhos edifícios da "tipologia" urbana. Justino
Fernandes continua esperançado em obter, no estrangeiro, talvez nomeadamente em
Portugal, os apoios indispensáveis. Empresários angolanos e estrangeiros já
se disponibilizaram. O que, por enquanto, é pouca coisa. O governador inclui,
entre as prioridades, a recuperação e manutenção da histórica Fortaleza de
S. Miguel. E, entretanto, vai requerer, nas altas instâncias angolanas, que a
velha Rua Direita de Luanda volte a chamar-se assim. "Faz parte do acervo
histórico da cidade", diz Justino Fernandes, ao JN, a propósito da
localização, na Rua Direita, de edifícios carismáticos: o singular "palácio
de ferro" e o palácio de dona Ana Joaquina. "Património
mundial", sublinha o governador provincial de Luanda. Estatuto revigorante
que deveria atribuir-se também a toda a zona da Cidade Alta e aos edifícios da
velha matriz familiar do Bairro dos Coqueiros, do Bungo, do Casuno e da Rua da
Pedreira.
É o tema central da conversa que
o governador provincial sustenta com o enviado do JN: Luanda vai crescer para
sul, com os novos bairros, mais casas para habitação. A Empresa Provincial de
Projectos, em conjunto com uma multinacional, será o embrião de uma empresa
mista (dotada de regime especial aduaneiro, fiscal e cambial) que deverá
acompanhar outras iniciativas da "revitalização" urbana de Luanda.
Entretanto, nos terrenos da nova urbanização "Luanda-Sul", uma inovação
se desenha: na construção das "casas sociais" vão participar (mão
de obra) os futuros utentes das novas urbanizações. Muitos jovens, prevê o
governador de Luanda, poderão iniciar-se, deste modo, como operários ou artífices
no ramo da construção civil. E no tocante às "casas económicas":
"Com base no programa distribuímos o talhão, entregamos o projecto e o
usufrutuário passa, imediatamente, à construção da casa", sintetiza,
também, o governador provincial.
Os aviões que, saídos de
Lisboa, pousam no aeroporto "4 de Fevereiro", em Luanda, despejam
constantemente médios e pequenos comerciantes em busca de negócios rápidos.
Em Luanda, hoje, praticamente, pode comercializar-se um pouco de tudo, de muitíssimas
coisas. E, como a necessidade, em qualquer parte, aguça o engenho, não há
"negócios" que em Luanda se não façam. Mesmo assim, o tradicional
comércio geral, com pequenas lojas, outrora espalhadas pela cidade, está longe
de um regresso em força. Lojas de vestuário há algumas, sim. De porta aberta
e no coração de Luanda. Abundam, isso sim, as lanchonetes. E os pequenos
restaurantes. Como quer que seja, há uma grande distância ética entre os que
fazem negócios a pensar, também, no que é importante para a nutrição e a saúde
das pessoas, e os que simplesmente chegam a Luanda dispostos a sacudir a "árvore
das patacas" da nova era. Sem, claro está, olharem a meios. Nesse aspecto,
Luanda é um verdadeiro lodaçal.
Luanda é uma cidade particularmente perigosa. O repórter avança com um episódio sintomático. Ao terminar, por volta das 19 e 30, no Bairro Azul, uma longa entrevista com Miguel N'Zau Puna, antigo secretário-geral da UNITA, proponho-me agarrar nos equipamentos e dirigir-me, se possível em corrida, para os acessos à Avenida Neves Ferreira, de ligação à "baixa" luandense. O entrevistado, e anfitrião, lança as mãos à cabeça, horrorizado: "Vai a pé e sozinho? Por favor! Não pense que o deixo sair daqui nessas condições, os meus auxiliares vão conduzi-lo até ao hotel...". E o deputado N'Zau Puna explicava o que eu, com efeito, já ouvira de outros luandenses: "Aqui, desaparecem pessoas sem deixar rasto. Não se trata somente de serem despojadas dos seus bens, até da própria roupa: as pessoas desaparecem, pura e simplesmente!" Enfim, o que é preciso, em Luanda como em toda a parte, é ter sorte. Umas vezes com "escolta" armada, outras vezes sozinho, aventurei pela cidade passos que me permitiram matar saudades e recolher elementos de reportagem.
Nos primeiros dias de Julho de
74, dão-se os primeiros incidentes violentos em Luanda, provocando ainda mais
apreensão numa população branca que via já muitas nuvens no horizonte. Meia
centena de negros é morta em confrontos provocados por "ultras"
brancos. No mês seguinte, os primeiros 30 mil portugueses viajam para a metrópole.
O Verão de 74 é vivido com
enorme expectativa pela população branca. "Angola é nossa",
insistira o antigo regime contra ventos que sopravam de outras antigas metrópoles
europeias, e muitos tinham acreditado.
Era, mas certamente ia deixar de ser, e é uma cidade cheia de dúvidas quanto
ao futuro que é abalada, nos primeiros dias do mês de Julho, por violentos
confrontos - que constituiriam também a mais importante tentativa dos
extremistas brancos para terem um papel naquele jogo.
O episódio - a descoberta, num musseque, às primeiras horas da madrugada de 11
de Julho, do corpo de um taxista branco estrangulado - "desencadeou um
grande levantamento, tiros para um lado, tiros para o outro, e, durante um mês
ou dois, a situação foi de grande tensão", recorda o professor Nuno
Grande.
As circunstâncias do crime não são esclarecidas, mas poucas horas depois, ao
princípio da manhã, na Avenida do Brasil, o ponto de passagem obrigatório
para os negros que vinham dos musseques trabalhar na cidade, extremistas brancos
concentram-se e agridem, insultam e ameaçam quem por ali passe.
Os tumultos não se ficam por ali. Cerca de meio milhar de manifestantes
dirige-se ao palácio do governador, agredindo pelo caminho os negros que
apanhavam à mão. Um guarda negro da Polícia de Segurança Pública foi
espancado, a crer num comunicado da Casa de Angola a propósito dos
acontecimentos.
Face à passividade das autoridades, que se limitam a apelar à calma, a agitação
continua. Em grupos de cinco, exibindo as armas, fazendo-se transportar em táxis,
os extremistas interceptam ao fim da tarde um autocarro, atacando-o a tiro. Várias
pessoas são mortas, e uma manifestação silenciosa de negros é dispersada
pela polícia de choque frente ao Palácio do Governador, à vista do general
Silvino Silvério Marques.
A violência prossegue até ao fim da manhã do dia seguinte, quando é
decretada a proibição de circulação de veículos motorizados, e o recolher
obrigatório. O balanço é de pelo menos 50 mortos e 200 feridos.
A intenção dos "ultras" de passarem à acção era já conhecida.
Corriam rumores que partidos brancos criados em Angola após o 25 de Abril, como
a Frente de Resistência Angolana, o Exército Secreto de Intervenção Nacional
e a Resistência Unida Angolana, que preconizavam a declaração unilateral de
independência, baseada na supremacia branca, contavam com o apoio dos Flechas,
as tropas negras treinadas pela PIDE, e de cerca de meis centena de mercenários
catangueses, que tinham servido na guerra colonial e se encontravam ainda num
quartel no Luso, hoje Luena.
Agostinho Neto, por seu lado, acusara o Partido Cristão-Democrata de Angola,
liderado por Fernando Falcão, a Frente de Unidade Angolana e a FRA de
financiarem o treino militar, por instrutores sul-africanos, em campos no Sul do
país, de colonos portugueses para combaterem os movimentos de libertação.
Tudo indica que o assassínio do
taxista obecedeu a um plano preparado com antecedência.
"Em Junho, exactamente no dia 10 de Junho, houve uma reunião de pessoas,
escolhidas segundo algum critério, que desconheço, no que era o Colégio
Lisboa, perto do Hospital Militar", lembra Nuno Grande.
Aí, "um representante do dr. Agostinho Neto - recordo-me que era africano,
mas tinha um nome holandês - alertou-nos para a possibilidade de um grande
conflito armado na cidade de Luanda. Estava a preparar-se a realização do
Campeonato do Mundo de hóquei em patins, já havia muitos estrangeiros na
cidade. Ele anunciou que haveria um movimento, a partir de homens radicais de
direita, brancos e negros, no sentido de desencadear a violência, denunciando
um conjunto de operações que tinham sido detectadas".
"Então nós, os que estávamos nessa reunião, decidimos juntar um grupo e
falar com o arcebispo de Luanda, para que nas missas fosse feito um apelo à
tranquilidade e à paz", recorda o professor.
"Algumas das tais operações anunciadas aconteceram. Só que não tiveram
o impacto que as pessoas esperavam. Houve uma, que desencadeou depois toda a
confusão em Luanda, o assassínio do taxista, que fora também prenunciada pelo
enviado de Agostinho Neto. Quando nos procurou, avisou que poderia ser
assassinado um branco, pessoa indiscutivelmente aceite pela sociedade luandense.
E foi assassinado o taxista, duma maneira estranha, num musseque", conclui.
A partir daí, conta o professor, "a cidade entrou num grande desequilíbrio,
e quando eu vim (a Portugal), em Julho, já havia um êxodo muito grande, as
pessoas já estavam todas amedrontadas com a confusão. Estabeleceu-se um clima
de pânico, já havia a sensação que aquilo podia dar origem a um grande êxodo".
No mês seguinte, Agosto, 30 mil brancos viajam para Portugal.
Após os incidentes, a 22 de Julho, o general Silvino Silvério Marques é
mandado regressar a Lisboa, e nomeada uma junta militar, encabeçada por Rosa
Coutinho. As tropas portuguesas tomam o controlo da situação.
Dois dias mais tarde, a 24 de
Julho, é aprovada a Lei 7/74, proclamada pelo general Spínola, a qual
finalmente reconhecia "o direito à autodeterminação, com todas as suas
consequências", incluindo a "independência dos territórios
ultramarinos".
A lei é publicada a 27 de Julho, e, considerando "conveniente esclarecer o
alcance" do ponto do Programa do Movimento das Forças Armadas segundo o
qual "a solução das guerras no Ultramar é política e não
militar", refere que esse princípio "implica, de acordo com a Carta
das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à
autodeterminação".
No artigo 2ho, a lei diz que "o reconhecimento do direito à autodeterminação,
com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos
territórios ultramarinos e a derrogação da parte correspondente do artigo
1.ho" da Constituição de 1933, que considerava aqueles territórios parte
integrante de Portugal.
A 9 de Agosto, a Junta de Salvação Nacional anuncia o primeiro programa formal
para a descolonização de Angola.
Era prevista a formação de um Governo provisório de coligação, após a
assinatura de um cessar-fogo com os movimentos de libertação, que integrariam
um Gabinete em condições de igualdade com representantes dos grupos étnicos
mais significativos, entre os quais o dos "brancos" é referido
explicitamente.
No prazo de dois anos, após um recenseamento, seriam realizadas eleições para
uma Assembleia Constituinte, segundo o princípio de um homem, um voto, e, após
a elaboração da Constituição, seriam realizadas eleições para o Parlamento
e o Governo, cujos resultados Portugal se comprometia a respeitar. Era
igualmente admitida a possibilidade de verificação, pelas Nações Unidas, das
eleições.
O anúncio, que tinha por objectivo tranquilizar a população branca, acaba por
ter algum efeito contrário.
O MPLA e a FNLA rejeitam o programa, devido à proposta de representação dos
maiores grupos étnicos.
Dá-se o 28 de Setembro em Portugal, Spínola é afastado, e o novo presidente
da República, general Costa Gomes, toma em mãos o processo de descolonização.
Pouco mais de uma semana depois, a 10 de Outubro, uma delegação portuguesa,
chefiada pelo general Fontes Pereira de Melo, viaja para a capital zairense,
Kinshasa, para conversações com Mobutu, encontrando-se com representantes da
FNLA e do MPLA.
Em Novembro, Portugal assina acordos formais de cessar-fogo com os três
movimentos.
Savimbi fora o primeiro a comprometer-se, em Junho, a cessar as hostilidades no
mês de Outubro, e a UNITA abre a sua sede em Luanda a 10 desse mês.
Segue-se-lhe a FNLA, no dia 16, e o MPLA, no dia 8 de Novembro.
A entrada dos movimentos de libertação em Luanda é uma supresa para muitos.
"A chegada dos movimentos de libertação é uma supresa para muita gente,
porque são grupos mal armados, mal preparados", recorda Vasco Vieira de
Almeida, que viria a integrar, mais tarde, em Fevereiro, o Governo de transição.
Em fins de Outubro, Rosa Coutinho, que viera a Lisboa para assistir a uma reunião
da Comissão de Descolonização, anuncia que Portugal está a realizar negociações
com os líderes de cada um dos três movimentos de libertação para a formação
de um Governo de transição.
O que era para ser o Instituto de
Biomédicas do Huambo acabou por vir pegar de estaca no Porto, quando o
professor Nuno Grande, que chegara a ir escolher o terreno na capital do
Planalto Central, voltou para Portugal.
Foi com pena, mas sem azedume, que Nuno Grande deixou Angola. Veio de lá em
Outubro de 1974, quando era vice-reitor da Universidade de Luanda, responsável
pelo Instituto de Investigação Científica.
Viera a Portugal em Junho, de férias, e, quando estava para voltar, em
Setembro, recebera um convite. "Tive a informação que se estava aqui a
organizar o Instituto de Biomédicas, e um convite do ministro Magalhães
Godinho". Mas as obrigações em Angola levaram-no de volta.
O projecto de um Instituto de Biomédicas para o Huambo tinha tido início no
Carnaval de 1974, com os dr. Fernando Real e Rui Vaz Osório, com os quais Nuno
Grande chegou a deslocar-se à então Nova Lisboa para escolher o local.
Porquê o Huambo? "Primeiro, porque havia muitos alunos. Angola tinha
naquele altura no primeiro ano de Medicina 500 alunos, e já não comportava em
Luanda esse número. Depois, porque este modelo interessava a Angola, era um
modelo moderno de ensino da Medicina, e de aproveitamento dos recursos locais,
e, ainda porque havia o Instituto de Ciências Veterinárias, o Instituto de
Agronomia, e o Instituto de Investigação Médica. Estavam portanto criadas as
condições para se lançar o Instituto de Ciências Biomédicas. Fomos lá
escolher o terreno, mas depois aconteceu o 25 de Abril...", recorda o
professor.
A partir da altura em que foi anunciado que Angola iria ser um país
independente, Nuno Grande começa a organizar o regresso. "Era cidadão
português, teria de vir participar na reorganização da sociedade
portuguesa".
Regressa a Angola em Setembro, para os exames de segunda época, e fica até
fins de Outubro, quando volta, definitivamente.
O professor conhecera Angola em 1965, como médico militar. "Fiz serviço
militar até 67, e regressei a Portugal. Depois fui em comissão de serviço
pela Faculdade de Medicina, e decidi radicar-me lá, porque as oportunidades
para uma pessoa da minha idade eram muito grandes, mais do que as que tinha
aqui. E aquela terra é atractiva, quer do ponto de vista da beleza natural,
quer da afabilidade das pessoas. Era profundamente atractiva. Vivi nove anos e
meio em Luanda, com grande intensidade e muita felicidade".
Como médico militar, recorda uma operação em Cabinda, numa altura em que se
admitia a possibilidade de um surto de febre amarela. "Fui a Cabinda, tive
de visitar o enclave todo, de uma ponta à outra, ver os militares aquartelados
em todos os pontos, e concluí que não havia qualquer surto de febre. Mas
quando houve um foco de febre amarela na cidade de Luanda, tive grandes
dificuldades para mobilizar as autoridades, em nome da Ordem dos Médicos - eu
era o presidente do Conselho Regional -, sofri muitas pressões das autoridades
da época. Tentaram escamotear o surto, que ainda teve 600 mortos".
Quanto à descolonização, o pró-reitor da Universidade do Porto acha que
dificilmente poderia ter sido diferente. "Tenho lido muita coisa sobre as
descolonizações, portuguesa e outras. Estou convencido que não poderia ter
sido de outra maneira. Se olharmos, por exemplo, para a descolonização da Índia,
feita pelos ingleses - a primeira sugestão de descolonização da Índia é
feita o século passado, pela rainha Vitória, passaram aquele tempo todo a
preparar a independência, e veja como estão as coisas. Os processos de
descolonização são sempre muito traumatizantes. Estou convencido que no caso
de Portugal não podia ser diferente. Primeiro, porque é um processo agudo: está-se
em guerra, e na semana seguinte já se está a tentar negociar. Segundo,
Portugal é um país muito frágil, e ali cruzam-se conflitos de muita espécie,
interesses internacionais. Veja que eles não conseguiram ainda encontrar um
caminho para a paz, matam-se com armas extremamente poderosas, e que eu saiba não
há fábricas de armas em Angola. Alguém as vende. Angola tem uma característica
que a torna aptecível: é muito rica, e portanto os países poderosos e os
ambiciosos não vão deixá-la em paz muito tempo, a não ser que disso tirem
proveito".
Mas Nuno Grande compreende a mágoa que ainda sentem muitos dos que vieram.
"Eu lembro-me das circunstâncias que se viviam em Portugal nos primeiros
anos após o 25 de Abril, não só em relação aos que então eram chamados
retornados, como em relação ao mundo produtivo, ao capital. Eram circunstâncias
complexas. Em todo o caso, compreendo a mágoa das pessoas, porque eu próprio
encontrei, à chegada a Lisboa, o que entendi como alguma frieza relativamente
aos nossos problemas. Fiz um esforço no sentido de compreender. Admito que cada
um tenha as suas próprias razões de queixa, mas se nos lembrarmos da confusão
social que se vivia em Portugal nesse período, talvez se possa entender que não
era simples organizar a evacuação de 500 mil pessoas sem que houvesse
atropelos, que de facto houve".
O próprio professor foi vítima desse processo. "Vim com tranquilidade -
acabei por chegar definitivamente a Portugal em Novembro de 74 - mas as minhas
coisas, o meu património, ficaram lá. Aconteceu até uma coisa: tive de mandar
dinheiro daqui para que as minhas mobílias viessem. Normalmente, as pessoas
tinham muito dinheiro cá, mas eu não tinha - estava para comprar uma casa em
Luanda, já depois do 25 de Abril. Cheguei a ir vê-la, pois acreditava, a longo
prazo, que houvesse possibilidade de uma transição, admitia eu, ingenuamente.
Só à última hora é que o negócio se gorou. Como disse, ainda tive de mandar
dinheiro daqui, e as mobílias só vieram no ano seguinte. E fiquei em casa dos
meus sogros até meados de 75".
Desse período, e da maneira como os portugueses se relacionaram com as colónias,
guarda uma curiosa recordação: "Recordo-me que esteve nessa altura lá,
em visita, um redactor do "Monde", que fez uma reportagem sobre
Angola, e ele estava espantado com a relação entre o colonizador e o
colonizado no terreno. Tinha ido ao Uíge, e vinha espantado: "Vocês são
um povo estranho. Então agora é que estão a investir?". Havia pessoas
que tinham vindo a Portugal buscar dinheiro para investir lá. "Vocês são
completamente loucos!", concluiu ele".
Advogada, antiga combatente,
Luzia Sebastião abre o "livro" de uma nova geografia social
Num terreno de imensas perspectivas como é o da mulher, a voz da advogada e
activista Luzia Sebastião é simbolizante, em Angola, de grandes combates no
interior da sociedade. Em declarações ao JN, na capital angolana, a antiga
deputada do MPLA, em plena fogueira de uma oratória especialmente
desassombrada, diz assim da sua convicção: "Poucos países no mundo de
hoje, muito poucos mesmo, terão, como em Angola, uma tão forte panóplia de
textos legais (Constituição, Lei da Família, Lei do Trabalho), consagrante
dos direitos da mulher!".
JORNAL DE NOTÍCIAS - Nestes terríveis
20 anos de longas e penosas caravanas de problemas, no solo angolano, dir-se-ia
que os níveis de resistência da mulher excederam, verdadeiramente, as
expectativas...?
LUZIA SEBASTIÃO - Não excederam, antes corresponderam, plenamente, ao que dela
seria de esperar. Basta ler a história, a história "total", de
Angola, para compreender isso. A história remota e a história recente. Toda
feita, esmaltada de sacrifícios e estoicismos da mulher angolana.
JN - Em todo o caso, abundam, na história destes 20 anos de independência, os
sinais absolutos de que a mulher angolana se sobrepujou, se transcendeu a si própria.
LS - Tem razão quando diz que, ao longo de todos estes anos de vicissitudes
vividos em Angola, a mulher foi dos elementos mais penalizados. Certamente, o
mais penalizado. Mas, repare: nós, aqui, quando falamos da mulher,
imediatamente a associamos à criança. Em Angola não podemos, nunca, deixar de
aludir, muito objectivamente, às crianças, quando falamos das mulheres. As
mulheres estão sempre ligadas às crianças. E o sofrimento das mulheres,
naturalmente, acaba sempre por transmitir-se às crianças. Mesmo quando as
mulheres, numa atitude que é uma constante, tudo façam para que o sofrimento
chegue minimamente às crianças.
JN - Quais são os cenários de vida em que situa, na Angola destes últimos 20
anos, as vicissitudes enfrentadas e sofridas pela mulher? A guerra alterou ou
afectou a noção dos valores. Mas, em certa medida, a mulher angolana parece
ter permanecido imutável, igual a si própria.
LS - Ela foi um elemento duramente penalizado. A mulher teve que ficar a gerir a
família, a maior parte das vezes em condições infra-humanas, ou desumanas.
Porque os homens, os seus companheiros, tinham de estar nas frentes de combate.
Numa primeira fase, em muitos casos, elas também iam para as frentes de
combate. Porém, à medida que a guerra se foi desenvolvendo, concluiu-se que
essa não era a melhor solução. E a mulher passou, então, a permanecer à
frente da família, a ficar em casa. Digo "ficar em casa", mas não
significa que ela permanecesse, só e simplesmente, entre as paredes domésticas.
Pelo contrário, foi chamada a intervir em todas as frentes da vida familiar.
Inclusivamente naqueles casos em que o marido regressava da guerra ferido ou
doente, ou mutilado: ela tinha de trabalhar, também, fora de portas, e as
parcas economias por ela angariadas estiveram, de facto, durante anos, na base
da manutenção do agregado familiar.
JN - E, entretanto, os desenvolvimentos da guerra, com todo o seu séquito de
violências, foram abrindo outros horizontes de sofrimento...
LS - Sofrimento, por vezes, estarrecedor! Quantas vezes a mulher angolana perdeu
filhos, perdeu o marido, quantas?
JN - Consegue imaginar, ou
reproduzir, o quadro físico e psíquico da vida das mulheres que acompanharam
os homens na odisseia da luta armada de libertação, antes da independência?
LS - Certamente que consigo, eu própria participei na luta armada de libertação
e até foi mesmo lá que eu conheci o homem com quem casei e que é, hoje, o meu
marido. Em muitos casos, de facto, a mulher angolana acompanhou o homem, ela foi
para a mata. E, muitas vezes, ela própria esteve na frente de combate. Numa
vigorosa duplicidade de funções. Mas, evidentemente, houve momentos em que se
tornou difícil às mulheres angolanas conciliar essas duplas missões. A frente
de combate e a família. As crianças e a gestão dos assuntos correntes da família,
no dia a dia.
JN - O regresso aos centros urbanos, nomeadamente nos casos de Luanda, Benguela
e Huambo, arrastou consigo, entretanto, uma nova problemática. Lembro-me de várias
situações, nesse domínio: a atitude da mulher perante o discurso ideológico
do poder, a nível das instituições, e o seu papel na defesa de valores
tradicionais e básicos no mundo das relações humanas.
LS - Antes de mais seria de toda a utilidade referir que a mulher angolana - e
isto, se me permite, não significa, de maneira nenhuma, ser imodesta - é uma
heroína. Uma heroína, sim! Heroína no mais nobre, mais profundo, sentido da
palavra. (Sorrisos de emoção deslizam no semblante de Luzia Sebastião). Ao
longo destes vinte anos de independência, a mulher angolana, fundamentalmente,
procurou, pelos meios ao seu alcance, acompanhar os novos desenvolvimentos no país.
Portanto: nunca se colocar à margem desse processo. É evidente que a presença
da mulher angolana na maior parte das situações, e em termos globais, pode
ainda ser considerada diminuta. Em quantidade e, talvez, também, em qualidade.
Se bem que, se formos ver com atenção, já hoje, em Angola, nós temos muitas
mulheres com formação superior, mulheres licenciadas. E outras, igualmente,
com excelente nível de preparação.
JN - Considera que a mulher está significativamente representada na administração
angolana?
LS - Até mesmo no elenco governamental. O número de mulheres ultimamente
chamadas a ocupar lugares no Governo de Angola pode ser, já, considerado aceitável.
Mulheres à frente de ministérios e secretarias de Estado. É uma constante na
Angola de hoje. Além disso: temos muitas mulheres na Saúde. Como médicas,
como enfermeiras, como técnicas, como administrativas, como auxiliares. Um número
verdadeiramente vultoso. E, outro exemplo; na advocacia. A jurisprudência, em
Angola, encontra-se principalmente servida por mulheres. Representada por
mulheres. Portanto, a mulher angolana, sustida embora por determinadas restrições,
ou limitações, dentro de muitíssimos condicionalismos, conseguiu intervir. E
contribuir, efectivamente, para o desenvolvimento que hoje se regista em
diferentes níveis da vida angolana.
JN - É a resultante de um propósito
firme, naturalmente. Para ir até onde? Qual é a fasquia?
LS - O que a mulher angolana, fundamentalmente, pretende, é poder participar,
directamente, na resolução dos problemas mais sérios. Até porque ela
continua a ser o verdadeiro suporte da família. Da estrutura familiar. Cá
estamos nós, portanto, a voltar ao coração do tema inicial desta nossa
conversa. A mulher, em Angola, tem de gerir os assuntos centrais da família.
Mesmo quando ela é ministra, quando desempenha um cargo na administração
central. E esta duplicidade de desempenhos, em Angola, não se processa como
acontece em países organizados e sem os problemas extremamente complexos que
aqui enfrentamos. A mulher, aqui, é a pessoa mais interessada no bom
funcionamento dos serviços, das instituições, de tudo. Para que a sua tarefa
seja, minimamente, facilitada.
JN - Refere-se, certamente, às múltiplas questões do dia a dia: transportes,
abastecimentos, segurança...
LS - Naturalmente. Repare: se a escola estiver a funcionar bem, se o professor
estiver lá motivado e com o seu salário em dia e compatível, a mulher está
sossegada porque sabe que vai largar o filho na escola e o filho vai receber uma
boa educação. E, em casa, ela já não terá tanto trabalho na educação do
filho, ou na sua instrução. E mais: se o hospital estiver a funcionar como
deve ser, se o médico e os medicamentos estiverem lá, a mulher está mais
sossegada porque não vai gastar tanto tempo cada vez que precisar de levar a
criança ao médico. Porque, na verdade, continua a ser ela quem terá de levar
a criança ao médico, apesar de ser ministra ou secretária de estado. Se o comércio
estiver organizado... se os bens essenciais não faltarem... se os transportes
colectivos...
JN - Há uma demissão "estratégica" do homem angolano nestas
"frentes de combate" quotidiano?
LS - Eu não creio que isso seja o resultado de uma atitude machista do homem
angolano. Claro que a mentalidade do homem angolano ainda não mudou. Ou, pelo
menos, não mudou completamente. Mas, enfim, também não exageremos: eu
cruzo-me com muitos pais que vão levar os seus filhos à escola... não é ?
Constituição, Lei da Família e
Lei do Trabalho "escoltam" o universo da condição feminina
O regresso dos combatentes angolanos a Luanda, Benguela, Huambo e outros centros
urbanos deu lugar a alguns fenómenos hiperbólicos do foro social. Mormente, no
campo afectivo: os homens que, olvidados os tempos e as peripécias nas matas do
Norte, do Leste, de Cabinda, abandonaram as antigas companheiras e elegeram
"raparigas mais evoluídas". Ou "raparigas mais
estilizadas". Mais "pomposas". (Em 1976, em Luanda, este enviado
do JN ouviu relatar um episódio em que, alegadamente, ter-se-ia envolvido, como
"juiz", o próprio presidente Agostinho Neto. Convidado para padrinho
de casamento de um destacado oficial das FAPLA, o líder angolano não gostou de
constatar que "afinal a noiva não era a companheira das guerrilhas na
mata, já era outra, mais nova, mais atraente!!!").
LUZIA SEBASTIÃO - Claro que nos demos conta desse fenómeno. Eu, por exemplo,
que tive o privilégio de viver, por dentro, a luta de libertação; eu, que lá
conheci o meu marido e lá casei, não poderia ter ignorado tal fenómeno.
Houve, de facto, companheiros que, por determinados circunstancialismos da vida,
mudaram. Digamos, entre aspas, "encontraram coisa melhor". Olhe que não
foram só os maridos a abandonar as mulheres, também houve mulheres que
elegeram outros homens. Uma situação, ao fim e ao cabo, natural. Algumas situações
foram, de facto, bastante dolorosas. Principalmente quando se tratou de senhoras
que, do ponto de vista cultural, eram de nível mais modesto.
JORNAL DE NOTÍCIAS - Um pulso incerto e desigual para as mulheres angolanas
menos "sofisticadas", no fim de contas.
LS - Pode, talvez, dizer-se assim. Em muitos casos, eram mulheres que, num
quadro perfeitamente normal nas relações humanas, foram ultrapassadas por
factores próprios de uma sociedade nova. Nova e num meio urbano como aquele que
a gente encontrou, por exemplo, aqui, em Luanda, depois dos tempos da mata.
Situações perfeitamente normais no relacionamento entre pessoas. Casos muito
concretos de mulheres que tiveram dificuldade em encontrar emprego, em obter uma
nova inserção no conjunto da sociedade.
JN - A letra, os postulados da Constituição angolana contemplam todas as
vertentes da condição feminina?
LS - Note: eu não sei se haverá, no mundo dos nossos dias, muitos países, ou
algum país, onde as mulheres já conseguiram que as leis contemplem as suas
mais importantes reivindicações. Os textos existem, a prática é que já será
outra coisa, em Angola. Nós, angolanos, costumamos dizer: "Do texto da lei
para a prática vão outros quinhentos!". Mas, a verdade é que nós já
conseguimos transcrever, para os textos legais, mesmo a partir da própria
Constituição, verdadeiras vitórias. Da emancipação da mulher angolana. E,
sobretudo, da concretização do princípio da igualdade de direitos que vem no
artigo número 18 da Constituição.
JN - Essa importante legislação esgota-se no texto da Lei Constitucional?
LS - Há outras leis avulsas que desenvolvem, ainda, todos esses articulados.
Sem dúvida: nós temos muito bons textos. Não é em todo o mundo que a mulher
consegue cinco meses de licença de parto, como acontece aqui em Angola. Onde a
mulher, todos os meses, tem direito a um dia de dispensa para se dedicar a
assuntos da família. Há leis avulsas do trabalho que asseguram essa regalia.
Que é um dia que tanto pode ser gozado pela mãe como pelo pai! Não abundam,
por esse mundo, os textos legais que contemplam, numa Lei da Família, o princípio
da igualdade entre marido e mulher. Não está no texto da Constituição, mas
está na Lei da Família. Quantos textos constitucionais no mundo reconhecem, à
mulher casada, o direito de, por si só, registar um filho nascido fora do
casamento e sem se ter divorciado?
JN - Portanto, todas as condições, em Angola, para que a mulher consiga o
salto qualitativo para uma emancipação completa?
LS - Todas as condições. Inegavelmente. Podemos, felizmente, proclamar: a
mulher angolana regista, já, verdadeiras vitórias no campo da igualdade
social!
"Histórico" da UNITA
revela ao JN as contradições entre os principais protagonistas da luta armada
Miguel Maria N'Zau Puna, durante 24 anos secretário-geral da UNITA, afastou-se,
dramaticamente, de Jonas Savimbi, pouco antes das eleições angolanas, em 1992.
Hoje, deputado na bancada do Fórum Democrático Angolano (FDA), N'Zau Puna
reflecte, em Luanda, sobre a evolução do país.
Quais os passos madrugadores da
UPA-FNLA e do MPLA? Quem, de facto, convenceu Jonas Savimbi a ingressar na
UPA-FNLA? Que antecedentes tapizaram a decantada ruptura entre Savimbi, secretário-geral,
e Holden Roberto, presidente da UPA-FNLA? Savimbi "namorou", de facto,
o MPLA? E, por isso, Holden Roberto quis eliminar Savimbi?
Miguel N'Zau Puna responde ao JN sem rodeios e sem calar convicções. Como quer
que seja, a retrospectiva só parcialmente desvenda o que terá sido
determinante e unívoco na criação da UNITA.
No peristilo da entrevista, que decorre, num entardecer cacimboso, no Bairro
Azul (Samba), em Luanda, Miguel N'Zau Puna assegura que, em 1961, "muitos
angolanos", ele próprio, "apoiaram o 4 de Fevereiro sem
verdadeiramente saber quem era o partido ou movimento que liderava a sublevação
nacionalista".
JORNAL DE NOTÍCIAS - A UNITA não existia, ainda, em 1961, mas certamente que,
no interior do movimento, mais tarde, não subsistiram dúvidas quanto à
autoria intelectual e material do 4 de Fevereiro em Luanda...
N'ZAU PUNA - Nenhumas dúvidas. Foi o MPLA quem desencadeou, em Luanda, o 4 de
Fevereiro. As primeiras acções armadas contra o colonialismo começaram aqui
mesmo, em Luanda. Com o 4 de Fevereiro. E as polícias coloniais, com a PIDE ao
centro, iniciaram logo a repressão. Abafaram, praticamente, o movimento. Não
havia condições para a revolução, nas cidades. É assim que começa a
clandestinidade. A UPA, futura FNLA, de Holden Roberto, entra em acção no mês
de Março, no norte de Angola. E torna-se mais conhecida. Ouve-se falar da UPA
até na Namíbia, no Botswana e na Zâmbia... E de Luanda fogem para Kinshasa,
via Cabinda, muitos angolanos.
JN - Onde estava Jonas Savimbi?
NP - Em Portugal, de onde foge para a Suíça, via Paris. Savimbi dá, então,
início a uma digressão por países africanos. Vai a uma conferência em
Kampala e segue dali para Nairobi, onde o "velho" nacionalista
queniano Jomo Kenyatta se encontrava em regime de residência vigiada. Por
imposição das autoridades (coloniais) britânicas. Foi o "velho"
Kenyatta quem convenceu Savimbi a ingressar na UPA-FNLA, de Holden Roberto.
JN - Holden conhecia Jonas Savimbi?
NP - Holden Roberto tinha-se deslocado, anteriormente, à Suíça, para
convencer Savimbi a aceitar o cargo de secretário-geral da UPA, mais tarde FNLA.
Savimbi pediu-lhe que desse a conhecer o programa do movimento em todas as suas
vertentes. E não gostou do que viu. Convincente foi, em Nairobi, Jomo Kenyatta.
Ele convenceu Savimbi com os seguintes argumentos: "Se você, Savimbi, acha
que a UPA-FNLA está mal estruturada, junte-se a ela, junte-se a Holden Roberto
e mostre aquilo que aprendeu na Europa, nomeadamente em Portugal e na Suíça. Só
assim você poderá participar na revolução". Jonas Savimbi rende-se aos
argumentos de Kenyatta, vai para Kinshasa e ingressa na UPA-FNLA. Holden é o
presidente e ele é o secretário-geral!
JN - Savimbi ajudou a UPA a
organizar a luta armada, como lhe recomendou o líder queniano?
NP - Savimbi e Holden trabalham juntos, inicialmente Savimbi faz viagens, missões
diplomáticas em vários pontos da África e do Mundo. Ele testemunha a fusão
da UPA com o PDA (Partido Democrático Angolano), de que resulta, finalmente, a
FNLA. Está-se em 1962 e Savimbi conclui, tal como Holden Roberto, que é
preciso evoluir para outros patamares na luta armada de libertação. Que a própria
UPA tinha, já, em Março de 1961, desencadeado no norte de Angola, mormente na
região de São Salvador. Constituída a FNLA, decide-se logo a formação de um
"governo". O GRAE, Governo Revolucionário de Angola no Exílio.
JN - Isto, portanto, em 1962. Que cargo atribuiram a Savimbi nesse
"governo", o GRAE?
NP - O cargo de ministro das Relações Exteriores. Savimbi participa amplamente
na divulgação do GRAE, que recebe em África múltiplos apoios. E quando se dá
o processo de formação da OUA, Jonas Savimbi é escolhido para a direcção do
Comité dos Movimentos de Libertação. Corria o ano de 1963. Prepara-se um
documento sobre os movimentos de libertação que deve ser apresentado aos
chefes de Estado africanos, no âmbito da OUA. Mário Pinto de Andrade, do MPLA,
faz parte da respectiva comissão redactorial. Surge a primeira fricção, entre
Savimbi e Holden, por uma questão "hierárquica": Savimbi entende que
a leitura do documento deve ser feita pelo histórico queniano Oginga Odinga.
Holden, contudo, argumenta que ele próprio, presidente da FNLA, deve proceder
à leitura do texto. A preferência acaba por recair em Oginga Odinga...
JN - Foi um primeiro sinal público das diferenças entre Holden e Savimbi, na
UPA-FNLA. Mas o "tapete" do quotidiano,em Kinshasa, era escorregadio:
cresciam as clivagens, na FNLA, entre as duas tendências...
NP - A "francófona", de Holden Roberto, e a "lusófona", de
Jonas Savimbi. Sim, o problema existia. Definem-se grupos no interior da FNLA,
em Kinshasa. Mesmo no seio do GRAE (Governo Revolucionário de Angola no Exílio)
as clivagens notavam-se. Os mais novos apreciavam o dinamismo de Jonas Savimbi.
Mas houve quem conseguisse influenciar Holden Roberto. Convencê-lo de que
Savimbi estaria a ir longe de mais na estratégia da luta de libertação. Claro
que os quadros "francófonos" da FNLA estavam, em Kinshasa, num
"habitat" familiar. Tinham estudado, esses angolanos, com Holden
Roberto e com indivíduos zairenses.
JN - Jonas Savimbi sentia-se,
portanto, na FNLA, numa situação incómoda, tanto mais que, para chegar à
presidência, teria de desbancar Holden Roberto, instalado de pedra e cal... até
hoje. Savimbi voltou-se, então, para o MPLA?
NP - Quando o dr. Agostinho Neto chega a Kinshasa, fugido de Portugal, e ocupa a
presidência do MPLA, nós (eu, o dr. Savimbi e outros) já lá estávamos.
Havia, necessariamente, certas afinidades. Dizia-se: "Nós todos viemos de
Angola..." Éramos os "lusófonos" da FNLA, os "lusófonos"
do MPLA... No interior da FNLA, congratulamo-nos com a fuga de Agostinho Neto.
JN - Mas, na FNLA, em 1963, era a "tendência Savimbi" quem assumia,
no concreto, as aproximações ao MPLA?
NP - O próprio Savimbi. Lembremos que ele, em Portugal, quando estudante,
convive com angolanos que, depois, militam no MPLA em Kinshasa. A aproximação
entre Savimbi e o MPLA tornou-se inevitável, até porque Savimbi se sentia incómodo
e hostilizado pelos "francófonos", na FNLA.
JN - E Savimbi acabou mesmo por ir a Moscovo. Em que contexto pretendeu Jonas
Savimbi a ajuda dos soviéticos?
NP - Ao desenhar-se a ruptura com Holden Roberto e a FNLA; Savimbi diligenciou
enviar guerrilheiros para a União Soviética, para serem treinados. O próprio
Savimbi foi, então, a Moscovo. E registou-se um impasse. Os soviéticos queriam
que Jonas Savimbi, em vez de meter ombros à criação da UNITA, aceitasse o
lugar de vice-presidente do MPLA. Savimbi recusou a proposta.
O futuro líder da UNITA
"deu a entender" ao dr. Neto que acarinhava
a hipótese de mudar para o MPLA
"Eu não sei se a ideia chegou mesmo a dominá-lo, mas é verdade que
Savimbi deu a entender ao MPLA que encarava a hipótese de se juntar ao dr.
Agostinho Neto", disse também, ao JN, Miguel N'Zau Puna.
O antigo secretário-geral da UNITA pensa que os soviéticos, quando
"propuseram" ao dr. Savimbi a mudança (da UPA-FNLA) para o MPLA, onde
ocuparia a vice-presidência, pretendiam esta simples coisa: concentrar, à
volta de Agostinho Neto, o maior número possível de nacionalistas angolanos.
Miguel NZau Puna evita, contudo, cair na assertiva de que o dr. Neto estaria
totalmente receptivo à iniciativa ou pretensão dos russos. Ele admite,
simplesmente, que Agostinho Neto iria, talvez, compreender que a vice-presidência
(do MPLA) para Savimbi constituiria uma "acomodação", que poderia até
ser meramente transitória.
NZAU PUNA - Uma coisa é certa: numa reunião de quadros "lusófonos"
da UPA-FNLA, efectuada em Kinshasa, Jonas Savimbi advertiu-nos: "Nem a FNLA,
nem o MPLA; não servem. Eles têm os escritórios aqui, no Congo, fora de
Angola, portanto. Estão bem instalados e deixam os camponeses angolanos
entregues a si próprios". Savimbi teorizava sobre a urgência de criar um
movimento cuja direcção deveria lutar, ao lado do povo, no interior de Angola.
JORNAL DE NOTÍCIAS - Quando foi que Holden Roberto se deu conta das aproximações
de Savimbi ao dr. Neto e ao MPLA? Miguel NZau Puna acompanhou, presencialmente,
esses desenvolvimentos?
NP - Eu mantinha, com Savimbi, uma colaboração estreita. Foi em 1963 que o
presidente da FNLA, Holden Roberto, soube dos contactos Savimbi/MPLA. Holden
dirige-se à capital da Tanzânia para participar numa reunião da OUA. Ali
descobre tudo. Ele não estava preparado, em 1963, para dar cobertura a
semelhante coisa: contactos com Agostinho Neto e o MPLA. Havia, como há pouco
disse, na UPA-FNLA, um clima discriminante adverso não só para Savimbi e seus
companheiros mas, também, para o MPLA. Holden, praticamente, mal falava o
português. Era um puro "francófono".
JN - Holden, depois da reunião da OUA em Dar-es-Salam, quis romper com Savimbi
por este ter contactos com Agostinho Neto?
NP - Pior do que isso. Holden Roberto anunciou, na Tanzânia, a sua intenção
de, mal chegado a Kinshasa, mandar prender Savimbi. Eu próprio seria,
igualmente, encarcerado, mas as coisas não tiveram esse desfecho. Porque,
entretanto, agudizaram-se as dificuldades que o MPLA experimentava em Kinshasa,
onde o regime se tornava intratável para Agostinho Neto e seus homens. O MPLA
acabou por ter de se transferir para a vizinha Brazaville, na outra margem do
rio Zaire.
Acabava a Organização da
Unidade Africana, OUA, de reconhecer o MPLA e a FNLA como "os únicos
movimentos de libertação de Angola". De súbito, conta Miguel N'Zau Puna
ao JN, uma comissão da OUA desloca-se a Kinshasa. O MPLA estava em dificuldades
operativas. A UPA-FNLA, dividida. E os enviados da OUA verificam, no terreno,
que é a FNLA quem tem, de facto, homens a combater. Face a tal constatação, a
Organização Africana "ordena", em medida talvez insidiosa: que o
MPLA seja, com os seus quadros, absorvido pela FNLA, de Holden Roberto!
"A título individual", recorda Miguel N'Zau Puna, segundo o argumento
da OUA, cuja comissão incluia elementos da Nigéria, Congo-Brazaville, Argélia
e Guiné-Conakri.
JN - O MPLA não tinha, em 1962/63, guerrilheiros no terreno?
N'ZAU PUNA - Não tinha. Porque, uma vez retirado, obrigado a retirar-se do
Congo-Kinshasa para o Congo-Brazaville, ficou quase mutilado. Mas, num rasgo de
firmeza, o dr. Agostinho Neto recusou a integração na FNLA, mesmo "a título
individual", como pretendia a OUA. A quem Neto mandou recado: "Se nós,
MPLA, trabalhamos agora oito horas, diariamente, vamos passar a trabalhar
dezoito!". Foi assim que o MPLA meteu mãos à abertura da sua
"segunda região", nas matas de Cabinda.
JN - Que apreciação fez Jonas Savimbi deste caso?
NP - Achou coerente a postura do dr. Neto. Savimbi tinha por Neto uma confessa
admiração. Admirava-lhe a coragem e a criação poética revolucionária.
Admirava o facto de Agostinho Neto ter desafiado, em Portugal, o aparelho
colonial-fascista. Savimbi discordava das posições de alguns elementos do MPLA,
mas mantinha com Neto um certo entendimento.
Miguel N'Zau Puna prevê que o líder
do movimento do "Galo Negro" exija o máximo para evitar represálias
dos seus próprios soldados...
Só mesmo quem conheça muito bem Jonas Savimbi pode expressar-se com a precisão,
e o desenfado, de Miguel N'Zau Puna. Um dos fundadores da UNITA. E, por certo,
também, um dos beneficiários intelectuais dos cerca de 4000 títulos que
Savimbi acarinhava na sua biblioteca multidisciplinar da Jamba. N'Zau Puna, que
reconhece "a espantosa capacidade de trabalho" de Jonas Savimbi,
entende que ele "não vai renunciar ao partido, nem à força
militar". Logo, muito dificilmente o líder da UNITA aceitará uma das
(duas) vice-presidências da República angolana.
Savimbi, um homem que "não aceita conselhos de ninguém", no partido,
"deve estar a preparar qualquer coisa diferente", admite, também,
Miguel N'Zau Puna. O "Galo Negro" pode estar à espera da
"consolidação" de Jacques Chirac e da "queda" de BilL
Clinton a favor dos republicanos...
O repórter do JN faz, em Luanda, o que lhe compete: além de revisitar, com
protagonistas de carne e osso, os caminhos da história remota, tenta convencer
políticos e militares da utilidade de uma avaliação do processo de paz. Isaías
Samakuva, da UNITA, abandona subitamente Luanda. Rumo ao Bailundo,
quartel-general do "Galo Negro". O general Ben-Ben também se encontra
no Bailundo: queixa-se de ter sido vítima, em Luanda, de um atentado; as
autoridades referem-se a uma bala perdida, presumivelmente disparada para o
interior da casa do carismático general da UNITA.
Na capital, elementos próximos do Governo e do MPLA sussurram, junto do enviado
do JN: "Até agora, a UNITA mandou para os acantonamentos, somente, uma
garotada, que não tem nada a ver com os seus guerrilheiros".
É a desconfiança reinstalada. O representante especial das Nações Unidas
farta-se de levar as mãos à cabeça e, quando pode, vibra alguns murros na
mesa.
Miguel Maria NZau Puna, o antigo secretário-geral da UNITA, está disponível
para falar, também, do presente. E nem sequer se demite de arriscar algumas
previsões: "Jonas Savimbi não se considera derrotado!", avisa. Ele
conhece bem o líder da UNITA, com quem trabalhou desde a fundação do
movimento.
JORNAL DE NOTÍCIAS - Mudaram os dados, no terreno. A África do Sul já não é
a mesma. Mobutu não tem sossego. E o general João de Matos, do Exército
governamental, chegou a pensar numa vitória esmagadora e definitiva sobre as
FALA. Face a estes indicadores: a UNITA poderia, ainda, reacender a guerra em
Angola?
N'ZAU PUNA - O material que a UNITA tem, ainda, escondido em parte incerta, pode
não proporcionar acções militares de vulto, mas será o suficiente para,
durante algum tempo, causar danos. Com isso, voltaria a crescer a insegurança.
E os investidores fugiriam, mais uma vez.
JN - Quais serão, nesta altura,
os verdadeiros propósitos de Savimbi?
NP - Savimbi está a querer ver o que é que ganham, ele e os seus homens. Qual
é a contrapartida. Savimbi não vai limitar-se a ocupar um posto relevante na
nova hierarquia do poder em Angola. Ele pretende obter, também, cargos para os
seus homens. Para que se sintam recompensados. Se o não conseguir, o próprio
Savimbi corre sérios riscos na UNITA. Iriam verificar-se represálias. Savimbi
deve ter por aí, ainda, muito armamento escondido. Que o Governo e as Nações
Unidas não controlam. Enquanto não houver uma clarificação total, ele poderá,
sempre, dizer que não autorizou nem tem nada a ver com esta ou aquela fustigação
efectuada pelos seus soldados. "Foi sem o meu conhecimento", dirá
ele. Porém, no caso de haver entendimento com o MPLA, com o Governo, Savimbi já
terá de assumir concretamente as suas responsabilidades. Porque, na UNITA,
ninguém desobedece ao Savimbi.
JN - Recentemente, Savimbi confessou-se arrependido do comportamento que
assumiu, em Luanda, em 1992, depois das eleições. E também já reconheceu o
que sempre negara obstinadamente: ter pactuado com o exército colonial português.
Estes rasgos vão beneficiar ou prejudicar a imagem de Savimbi junto do povo
angolano?
NP - De uma coisa estou seguro: com estas jogadas todas, Savimbi quererá tudo,
tudo, menos queimar a sua própria imagem. Estas confissões, estes
arrependimentos, o "perdão" que ele anda a suplicar, não é nada
daquilo que ele diz ou propõe no seu comité restrito, na UNITA. Savimbi é
assim: dentro de casa, uma linguagem. Fora, outra linguagem. Ele sabe muito bem
que não é cómodo aceitar determinadas indulgências. Isso pode levá-lo,
ainda, à barra dos tribunais. Só com fortíssimas garantias de ser amnistiado
o Savimbi aceitaria determinados "consensos".
JN - E quanto à opinião pública angolana?
NP - Depois de tantos anos, o povo angolano está saturado, já não aguenta
mais guerras. Se o Savimbi cumprir em aspectos realmente construtivos para
Angola, ele poderá, ainda, conquistar muita popularidade junto dos vários
grupos sociais.
JN - Para si, Miguel NZau Puna,
que tão bem conhece Jonas Savimbi, é um dado adquirido que ele poderá aceitar
a vice-presidência adjutória de José Eduardo dos Santos?
NP - São duas vice-presidências. Se fosse apenas uma, é possível que Savimbi
"vergasse" um pouco. Mas, duas vice-presidências...? A UNITA é bem
capaz de indigitar alguém, um outro dos seus dirigentes, quando no seio do
partido terminarem os debates sobre o assunto. É preciso ver, também, que
Jonas Savimbi não vai querer abandonar o partido e a força militar. São duas
coisas importantes para o Savimbi. Ele é um político, mas a força armada,
para Savimbi, é uma forma de implementar a política partidária. Savimbi
prefere continuar no partido e preparar-se, assim, para as futuras eleições. E
ele também calcula que os acantonamentos irão, em parte, debilitá-lo.
JN - Uma leitura em termos absolutos: por que é que Jonas Savimbi não se
modera? Ambição? Complexos? Ressentimentos?
NP - Há, pelo menos, dois estigmas nucleares. Primeiro: Savimbi sempre dizia,
desde os tempos de Kinshasa, que os angolanos do Norte sempre nutrem um complexo
de superioridade; porque os angolanos do Sul, nomeadamente os ovimbundos, foram
levados para as plantações de café do Norte. Eu tive de lembrar-lhe, um dia,
que isso não está certo. Quem arrastou para as plantações do Norte os
angolanos do Sul foi o colonialismo português. Segundo: Savimbi costuma dizer:
"Eu lutei contra os portugueses, contra os russos, contra os cubanos, e
agora vou ficar sem o poder em Angola?!". Savimbi, quem sabe, talvez se
torne um pouco moderado. Mas essa moderação, por aquilo que eu conheço dele,
não deve significar uma mudança!.
Na presença de Miguel N'Zau
Puna, em Pretória, durante uma recepção oficial, Peter Botha, então
presidente sul-africano, voltou-se para Jonas Savimbi e justificou-se:
"Tirarmos o Nelson Mandela da prisão? Se o fizermos, não tarda muito
estaremos nós próprios no lugar dele. Atrás das grades!".
Savimbi teria sugerido a Peter Botha, durante a conversa, a libertação
"imediata" de Mandela. O episódio, naturalmente, ocorreu há alguns
anos. N'Zau Puna tentava, assim, convencer o enviado do JN da bondade
"ideológica" das relações de Savimbi com o regime do "apartheid".
O que, deveras, não conseguiu. Bastaria reflectir sobre o que o antigo secretário-geral
da UNITA nos disse sobre o "carácter" das relações de Savimbi com
os americanos: "Ele está muito agradecido aos Estados Unidos porque foi
deles que recebeu as armas para se opor aos aviões e aos tanques do MPLA. Não
esquece os grandes investimentos dos americanos. E, agora, ele espera que os
seus amigos republicanos reapareçam no poder, voltem à Casa Branca!".
Para Savimbi, os "bons" são sempre, e só, aqueles que o ajudam.
Savimbi, como quer que seja, desde muito cedo evidencia uma considerável
desenvoltura nas relações internacionais, dentro e fora do Continente
Africano.
Aprisionado na Zâmbia (pelo regime de Kaunda) no tempo da guerra colonial,
Savimbi contou com os bons ofícios de Nasser, que lhe deu assistência no
Cairo. Entretanto, na Tanzânia, regressado da China, Savimbi conhece o pessoal
da SWAPO (Namíbia).
A SWAPO tinha escritórios em Dar-es-Salam. Era o início de um
"processo" colaboracional que, hoje, leva Miguel N'Zau Puna a
garantir-nos que "a UNITA se antecipou ao MPLA nas relações factuais com
a SWAPO de Sam Nujoma".
JORNAL DE NOTÍCIAS - Mas não é também um facto que a maior carga referencial
na região contempla o binómio MPLA-SWAPO?
NZAU PUNA - Está certo. Mas muito antes de se formar esse cenário MPLA-SWAPO,
quando o Savimbi era secretário-geral da UPA-FNLA, e ministro das Relações
Exteriores do "governo" do GRAE, já ele tinha entendimentos com a
SWAPO. E, durante a luta de libertação nacional, na área do Cuando Cubango,
praticamente os acampamentos dos guerrilheiros da UNITA e da SWAPO estavam
geminados. Os homens da SWAPO iam combater nas envolventes da Namíbia e,
depois, regressavam para junto da UNITA. A SWAPO recebia armas da OUA, a UNITA
chegou a utilizá-las, quando precisou dessas armas como de pão para a boca. A
tal ponto que os homens da SWAPO, o general Dimo, por exemplo, nos rotularam de
gatunos!
JN - Mas, posteriormente, o MPLA monopolizou essas relações com a SWAPO e
desempenhou, até, um papel histórico notável na independência da Namíbia.
NP - Das movimentações conjuntas UNITA-SWAPO em Luiana, Mucusso, Mutumbo,
Chitembo, em corta-mato até Caiundo, cerca do Cunene, passou-se para outros cenários,
outros tempos. Sem esquecer, ainda, que foi com a ajuda da SWAPO que o dr.
Savimbi, regressado do "exílio" no Cairo, em 1968, conseguiu passar,
através da Tanzânia e da Zâmbia, para o interior de Angola. Mas, enfim, as
coisas mudaram. Depois do 25 de Abril em Portugal, fomos nós, UNITA, foi o próprio
Savimbi quem levou os comandantes (da SWAPO) da Zâmbia para o Huambo (de avião).
E eu próprio os levei para as zonas da Huila e Cunene. Quando o MPLA tomou as
cidades e a UNITA voltou, em 1976, para as matas, a SWAPO naturalmente não pôde
acompanhar-nos. Ficou lá e consolidou as suas relações com o MPLA.
Finalmente: o corte de relações entre as partes foi quando a SWAPO verificou
que a UNITA tinha relações com a África do Sul!
"As ideologias que nós
aprendemos", em Angola, sublinha Miguel N'Zau Puna, "são ideologias
importadas". Um juizo-timbre que o antigo secretário-geral da UNITA
aplica, sem distinções, aos históricos movimentos de libertação angolanos.
Para concluir: "Então, é necessário voltarmos a ser nós próprios,
empregarmos uma nova filosofia agregativa, no essencial, de todos os
angolanos".
A UNITA, recorda N'Zau Puna, "lutou contra aquilo que nós chamávamos o
social-imperialismo de russos e cubanos". Porém, já depois de se
reconhecer numa organização forte, o movimento de Jonas Savimbi começou a ser
percorrido, internamente, por sentimentos "divisionistas".
Questões "regionalistas", talvez diferenças etnoculturais - os
bienos, os umbundos, etc, etc. Savimbi e outros, como ele, naturais do Bié,
detinham o poder. "Havia uma clara rivalidade entre os do Bié e os do
Huambo", diz ao JN o "histórico" Miguel N'Zau Puna.
Corria, no seio da UNITA, que os do Huambo "tinham a presunção de se
destacarem como intelectuais". O mais importante, porém, é que Jonas
Savimbi ficou com as mãos suficientemente livres para vender, no exterior, a
imagem de um anti-comunismo inabalável. A palavra de ordem: "Nós somos
contra os comunistas do MPLA!".
JORNAL DE NOTÍCIAS - Savimbi convenceu, com o "slogan", os
sul-africanos?
N'ZAU PUNA - Não só os sul-africanos como, também, os americanos. Mas, no
interior da UNITA, preponderavam de facto as práticas maoístas. Jonas Savimbi
tinha sido bem recebido na China, onde treinou alguns quadros em técnicas de
guerrilha. E logo irrompeu uma máxima no funcionamento interno da UNITA:
"Não se pode combater os marxistas sem conhecer a teoria marxista!".
O próprio Savimbi dava aulas num centro de formação que ele mesmo implantou.
Aprendíamos o marxismo-leninismo em coabitação com o maoísmo.
JN - Savimbi cultivava isso com fervor?
NP - Além dos livros, em quantidade e qualidade, Savimbi tinha, bem à vista de
toda a gente, grandes fotografias de Karl Marx, Estaline, Lenine, Engels e Mao
Tsé Tung. E o Savimbi mesmo dava aulas, era o professor: marxismo-leninismo, o
marxismo dialéctico, o marxismo histórico. A nós, companheiros, ele dizia:
"Eu sou comunista, mas se algum de vocês for lá para fora divulgar, eu
vou gritar que é tudo mentira!". E o mesmo Savimbi afiançava-nos:
"Quando vou à África do Sul, isto é ouro! Quando vou para os Estados
Unidos, é ouro, também!".
JN - Se eu questionasse, agora, Jonas Savimbi, como é que ele se definia?
NP - Ah, neste momento Savimbi não aceitaria identificar-se como maoísta,
marxista-leninista, ou simplesmente comunista... Ele diria que é
social-democrata. Savimbi iria utilizar consigo a mesma linguagem que o MPLA
utiliza agora.
A 15 de Janeiro de 1975, no Hotel
da Penina, sob a chuva miudinha que caía no Algarve, representantes dos três
movimentos de libertação assinavam no Alvor os acordos para a independência
de Angola. Mas, do que foi assinado no Alvor, aos três só interessava a
independência, o que significava, para cada um, e sozinho, o exercício do
Poder. O que ainda hoje se revela impossível.
Na Guiné e em Moçambique,
Portugal tinha sabido exactamente com quem iria negociar os acertos para a
independência: do outro lado da mesa iriam estar só o PAIGC e a FRELIMO. Mas a
existência de três movimentos de libertação no caso de Angola tornava impossível
qualquer tentativa de uma rápida solução negociada.
Foram necessários meses de cuidadosas negociações. Primeiro, a Organização
de Unidade Africana reconheceu a UNITA como parte tão legítima como o MPLA ou
a FNLA. Depois, em Mombaça, no Quénia, os líderes dos três movimentos
prepararam o terreno para as negociações com os representantes de Portugal.
Finalmente, no Alvor, os três concertaram com o Governo português um acordo
sobre a fórmula pela qual Angola se tornaria indepedente.
No Alvor, os três movimentos foram reconhecidos como únicos e legítimos
representantes do povo angolano, e Angola como país indivisível, incluindo o
enclave de Cabinda.
Seria estabelecido um governo de transição, baseado numa fórmula de coligação.
Um alto-comissário seria nomeado por Portugal, sob ordens directas do
presidente da República, Costa Gomes, e o Governo de transição seria constituído
por 12 ministros, três portugueses e os restantes nove distribuídos igualmente
pelos movimentos de libertação.
Um conselho presidencial, constituído por um representante de cada movimento,
presidiria ao Governo, rotativamente, até à data marcada para a independência,
11 de Novembro.
O Governo devia tomar posse até ao fim de Janeiro, marcar eleições no prazo
de nove meses, e deveria ser constituído um exército unificado. Na altura da
independência, essas forças militares unificadas deveriam ter 48 mil homens -
24 mil efectivos portugueses e oito mil de cada um dos movimentos. Os militares
portugueses em excesso seriam evacuados até 30 de Abril, e todas as tropas
portuguesas deveriam deixar Angola até Fevereiro de 76.
Os interesses dos portugueses residentes eram assegurados, e os movimentos
comprometiam-se a considerar angolanos todos os que tivessem nascido em Angola,
ou os que ali vivessem e se declarassem angolanos por opção. Contudo, a
concessão de cidadania aos não nascidos em Angola era remetida para o que
fosse estabelecido na futura Constituição.
Assinaram por baixo, por Portugal, o ministro sem pasta major Melo Antunes, o
ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, o ministro da Coordenação
Interterritorial, Almeida Santos, e, por Angola, os líderes do MPLA, da FNLA e
da UNITA.
O problema não foram os acordos,
pois, se havia alguma possibilidade de paz e estabilidade em Angola, ela teria
de ser resultado de um acordo entre os três movimentos. Nenhum teria força
para, sozinho, exercer o Poder no país inteiro, sem o acordo ou a aceitação
dos outros dois.
A questão é que, como nos meses seguintes viria a ficar amplamente provado,
cada um dos três era exactamente para isso que se preparava - para se instalar
no Poder, excluindo os outros dois.
"No Alvor, discute-se a independência, e nada mais que a independência",
deixavam bem claro os membros das delegações angolanas na Penina, e uma, a do
MPLA, adiantaria mesmo que "não há unidade dos movimentos. Apenas um
programa comum".
"A grande ironia do acordo do Alvor é que, quando nós, em Portugal, já
estávamos a ver que o processo democrático ia ser complicado, mesmo num país
europeu que já tinha tido uma experiência democrática no passado, fomos
tentar impor uma situação perfeitamente surrealista, a de criar um governo de
transição com os três movimentos, como se isso fosse suficiente para
acreditar na sua acção", recorda Vasco Vieira de Almeida, que viria a
ocupar o cargo de ministro da Economia no Governo de transição.
"Foi exactamente o contrário: o Governo passou a funcionar como
legitimador das acções no terreno e, por outro lado, como uma entidade que
pairava sobre a realidade, já que era no terreno, e conforme a relação de forças,
que os acontecimentos se iam produzindo", comenta.
"Não houve, quanto a mim, da parte de nenhum dos movimentos, em momento
algum, a ideia de que ia estabelecer-se qualquer forma de consenso para uma
governação a três".
Os meses seguintes iriam provar a
total ineficácia do Governo. "Lembro-me, por exemplo, que quando, em 1975,
foi preciso fazer a colheita do café - que é feita por trabalhadores do Sul -,
nessa altura a UNITA não deixou vir os trabalhadores", recorda Vasco
Vieira de Almeida.
As fábricas deixam de funcionar, pois os trabalhadores nem em transportes
militares se sentem seguros, os portos paralisam, refugiados do interior enchem
as ruas Luanda.
A situação em Portugal teve também, segundo o então responsável pela
economia de Angola, uma enorme influência no desenrolar dos acontecimentos.
"A enorme agitação, aqui, em Portugal, tornava impossível estabelecer
uma política coerente. Não havia instruções por parte do Governo português,
havia apenas algum consenso entre as forças políticas portuguesas - havia
desde forças que defendiam a independência imediata a outras que ainda
pensavam que era possível fazer uma espécie de Comunidade Portuguesa. Perante
um leque de posições destas, havia uma paralisação total do Governo,
aqui".
"Se, não alterando em nada a nossa posição, tivesse havido um mínimo de
capacidade de orientação a partir de Lisboa, teríamos tido força para impor,
não uma alteração do esquema - a independência era um caso definido -, mas
alguma ordem na forma como as coisas se passaram", admite.
Mas as tropas portuguesas também não estavam dispostas a bater-se a partir do
momento em que sabiam que a independência era inevitável. "Esse facto
levou praticamente à desmobilização da tropa, apesar da situação militar
estar longe de ser dominada pelos movimentos de libertação. Em termos
estritamente objectivos, a tropa normal teria chegado perfeitamente para dominar
a situação".
António M. chegou a Angola em
Dezembro de 1974. Tinha acabado de licenciar-se em Engenharia Mecânica, no
princípio do ano, e fora mobilizado para a Guiné, mas acabou por não ir.
Depois, acaba também por não embarcar para Moçambique. Com o 25 de Abril,
nasce a esperança de não ir para lado nenhum. Mas, finalmente, recebe guia de
marcha para Angola.
Antes, em Outubro, vai à Madeira, conhecer o batalhão de caçadores que lhe
calhara em sorte.
"Desde o princípio que havia forte contestação aos embarques",
recorda. "Não aos embarques" era uma das palavras de ordem mais
ouvidas na altura. Quando o batalhão se apresta a embarcar, há incidentes com
uma manifestação.
Quando chega a Angola, vai para Quibaxe, Malanje. "Uma zona muito
bonita", lembra-se. Já na altura as tropas confraternizavam com os
guerrilheiros. "Sobretudo do MPLA, que eram os que havia na zona".
A chegada dos primeiros da FNLA é, para António M., inesquecível. "Eram
três. Chegam à porta de armas, entram pelo quartel dentro de arma aperrada, o
sentinela abriu logo. O sargento veio chamar-me, lá falei com eles, os gajos
pedem em francês para falar com o comandante".
Pouco depois, começa a haver as patrulhas mistas.
Em Março de 75, há um levantamento de rancho no quartel, António M. é detido
e enviado para a Casa de Reclusão de Luanda. "Aquilo até não teve nada a
ver com a comida, era só agitação. Aliás, como se passou em vários sítios.
Mais tarde, em Luanda, na Casa de Reclusão, vim a encontrar vários outros
companheiros de "aventura". Tinha havido em Cabinda, em Fevereiro, um
batalhão de Artilharia que se tinha amotinado e prendido os oficiais na messe.
Tomaram conta do quartel e exigiam regressar. Penso que foi também uma coisa
organizada, havia aquela confusão toda".
"Como sabe, havia quem quisesse que a gente fosse para lá fazer aquilo que
muita gente fez, entregar as armas ao MPLA. Em Quibaxe, muita gente fez isso. No
nosso batalhão, tudo foi praticamente entregue ao MPLA".
Detido em Luanda, obtém ao fim de algum tempo autorização para saídas precárias,
ao fim-de-semana.
"Em Quibaxe, enquanto lá estive não houve confrontos. Mas depois vim a
encontrar em Luanda algumas pessoas, brancos, que até eram simpatizantes do
MPLA, e queriam ficar lá, mas tinham fugido quando começaram os
bombardeamentos", conta.
Da guerra de Luanda, só lhe chegavam os ecos. "Na Casa de reclusão, ouvíamos
os estouros ao longe, os tiros, as granadas". Veio de avião, na véspera
da independência. "Do que me lembro mais é das pessoas quererem vir-se
embora, de qualquer maneira. Lembro-me que começou a especulação: com mil
escudos portugueses compravam-se dez ou 12 contos angolanos".
Além do grande receio que o obcecava na altura, que se esquecessem de o trazer
para Portugal - onde haveria de penar dois anos, até ser condenado, depois de
novamente preso, desta vez em Caxias, a seis meses de prisão, já cumpridos em
prisão preventiva -, recorda que, durante o caminho para o aeroporto, Luanda não
parecia ainda muito degradada, e o MPLA dominava. "Os outros chegaram a
atacar a cidade, mas não entraram, pararam no Caxito".
Por essa altura, já Vasco Vieira
de Almeida batera com a porta, e regressara a Lisboa. "Tinha tomado várias
posições sobre a maneira como tudo se estava a passar em Angola, e tinha
falado, inclusivamente, com os presidentes dos movimentos de libertação. Disse
várias coisas: em primeiro lugar, que estava ali para procurar ajudar a fazer
uma descolonização, para permitir que os portugueses que lá quisessem ficar
em condições normais ficassem e os que quisessem vir pudessem vir. Por outro
lado, considerei completamente impossível fazer prosseguir uma política com
princípio, meio e fim no plano económico, porque a incapacidade, a rivalidade,
tornavam impossível qualquer acção nesse sentido. A certa altura, tomei a
posição de dizer que, ou havia um mínimo de entendimento no Governo para que
se pudesse, naquele prazo, agir, ou vinha-me embora, pois não queria ser cúmplice
numa situação que não era nem de protecção dos interesses portugueses, nem
de desenvolvimento de Angola, nem de colaboração... não era nada".
Ainda vem a Lisboa, a uma reunião do Conselho dos 20 - onde estava o presidente
da República, o primeiro-ministro, os chefes dos estados-maiores das três
armas, o embaixador na ONU, entre outros - para explicar a sua posição. Mas,
diz, "essa reunião foi absolutamente inconclusiva, porque não era possível
obter aqui um consenso mínimo entre as forças políticas. Voltei para Angola e
escrevi uma carta aos três movimentos de libertação, e essa carta causou
grande agitação porque era uma denúncia total do que se estava a fazer".
Nessa carta, Vasco Vieira de Almeida refere que aceitara integrar o Governo de
transição por julgar possível contribuir para reforçar o entendimento
"aparentemente" alcançado no Alvor. Não contara, escreve adiante,
"com a miopia política daqueles que, não contentes com precipitar o
conflito no tempo, provocaram uma luta militar suicida de que a única vítima
é o povo que também dizem representar, correndo o risco de aniquilar à
partida o projecto pelo qual tantos se bateram e morreram durante 14 anos de
luta contra compatriotas meus".
Constata que "quem abate milhares de velhos, mulheres e crianças, em todo
o país, são angolanos", bem como aqueles que "espalham a fome, o
terror, a violência e o pânico em todo o território", e interroga-se:
"Que fez o Governo durante este período? Praticamente nada, excepto
revelar a sua absoluta incapacidade e irresponsabilidade. O Governo não detém
qualquer parcela do Poder, é um simples espelho reflector das lutas políticas
mais profundas (...)".
A 12 de Julho, Vasco Vieira de Almeida abandona o Governo de transição e
regressa. "Não foi por me vir embora, obviamente, mas julgo que é a
altura em que fica marcado que as coisas não têm já mais solução".
Não é só o já então ex-ministro a reconhecer o fracasso. Cinco dias antes,
Melo Antunes estivera em Luanda para uma última tentativa de entendimento com
os movimentos de libertação, e no dia 11 a própria Comissão Nacional de
Descolonização, reunida em Lisboa, reconhece que não fora atingida nenhuma
das grandes metas dos acordos assinados seis meses antes no Alvor.
Agostinho Neto assinou no fim de
72 um acordo com Holden Roberto para a criação de um Conselho Supremo para a
Libertação de Angola, que pretenderia unificar a luta dos dois movimentos
contra Portugal.
O acordo foi uma surpresa, pois as tentativas de unificação dos nacionalistas
tinham, até aí, sido sempre frustradas pela tentação da hegemonia do mais
forte, e, nessa altura, era o MPLA que reaparecia em cena, após o reajustamento
na Frente Leste.
A FNLA estava enfraquecida pela repressão da revolta de Kinkuzo, em que Holden
mandou fuzilar dezenas de oficiais do seu Estado-Maior.
Segundo o acordo, a Holden Roberto caberia a direcção política, e a Neto o
Comando Militar Unificado.
No MPLA, após a surpresa, concluiu-se que Neto acabara de entregar a direcção
da luta nacionalista ao líder da FNLA. Chipenda cinde mesmo, com a Revolta do
Leste.
Sabia-se que a Primeira Região Militar do MPLA (Dembos e Catete) pressionava
Neto para mandar mais armas para a região. O MPLA tinha o grande problema de não
ter qualquer base no Zaire, o que dificultava a logística numa grande parte das
fronteiras norte e leste de Angola.
Holden Roberto, à parte os argumentos ideológicos - a FNLA considerava o MPLA
um movimento de orientação comunista, e este acusava a FNLA de ser um
movimento fantoche, ao serviço de interesses imperialistas - opôs-se sempre à
concessão dessa base ao MPLA.
O acordo acabaria por revelar-se uma hábil manobra do presidente zairense,
Mobutu, para levantar do chão Holden Roberto, na qual Neto embarcara na miragem
de uma base do outro lado da fronteira.
Após o acordo, o líder da FNLA parte numa ronda por capitais africanas,
admitindo a possibilidade de negociações com Portugal. E como chefe do
Conselho Supremo, seria ele a liderar o processo.
Neto chama então Gentil Viana para seu conselheiro, e este inicia uma operação
diplomática em várias capitais africanas, para reabilitar a imagem de Neto e
evitar que o acordo fosse sancionado, argumentando que a primazia da luta de
libertação devia ser dada à acção armada, e não a negociações.
Uma grande ironia do acordo do
Alvor foi Portugal, quando já estava a ver que o próprio processo democrático
era complicado, ter tentado impor em Angola uma solução "perfeitamente
surrealista", a de um Governo de transição com os três movimentos lá
representados, disse ao JN Vasco Vieira de Almeida, que foi durante cinco meses
o ministro da Economia desse Executivo.
Jornal de Notícias - O que recorda dos tempos que esteve no Governo de Transição
em Angola?
Vasco Vieira de Almeida - Estive em Angola numa época particularmente difícil.
Cheguei pouco antes de ter rebentado a chamada Guerra de Luanda, um período
extremamente complicado porque tinha de preparar-se a saída dos militares
portugueses de Angola e a passagem da Administração portuguesa para as novas
autoridades saídas dos acordos de Alvor. Foi também o período em que rebentou
a guerra, e todas estruturas, por se saber que a administração portuguesa ia
cessar, foram completamente desestabilizadas. O que recordo é, principalmente,
o esforço de alguns, entre os quais eu me contava, para tentar dar um mínimo
de normalidade ao funcionamento da sociedade angolana, numa situação de
conflito que tornava isso praticamente impossível.
JN - Era uma batalha perdida...
VVA - Foi um período de enorme agitação, de situações de enorme violência.
Para quem, como eu, que toda a minha vida fora anticolonialista, foi uma enorme
pena ver destruir inevitavelmente um país. É isso que me leva a escrever uma
carta aos três movimentos de libertação, dizendo qual era a minha opinião
sobre o que se estava a passar e o que ia acontecer a Angola. Infelizmente, essa
carta revelou-se profética.
JN - Teria havido maneira de mudar isso?
VVA - Não, não tenho qualquer dúvida. Havia dois tipos de problemas
fundamentais. O primeiro é que, quando se faz o 25 de Abril, os movimentos de
libertação dizem que não aceitam nenhuma forma de negociação, só aceitam
conversar desde que seja assente o princípio da independência...
JN - Mas, no terreno, a situação não era assim tão má...
VVA - Sim, mas tínhamos uma situação que levou praticamente à desmobilização
da tropa portuguesa, apesar da situação militar estar longe de ser dominada
pelos movimentos de libertação. Mas havia esse princípio capital, o da
independência, sem o qual não seria sequer possível conversar-se com os
movimentos de libertação, e a falta de disposição das tropas portuguesas
para se baterem a partir do momento em que sabiam que a independência era
inevitável. E havia depois outra coisa óbvia: a enorme agitação, aqui, em
Portugal, que tornava impossível estabelecer uma política coerente. Não havia
instruções por parte do Governo português, havia apenas algum consenso entre
as forças políticas em Portugal - desde as que defendiam a independência
imediata às que ainda pensavam que era possível fazer uma espécie de
Comunidade Portuguesa. Perante um leque de posições destas, havia uma paralisação
total do Governo.
JN - E lá?
VVA - Lá, era a total insegurança de um Governo assente na estrutura que tinha
sido definida no Alvor. Havia, no mesmo Governo, três tipos de movimentos de
libertação, três primeiros-ministros... Se juntar a tudo isto o clima de
Guerra Fria em que a coisa se passava, com os Estados Unidos e a União Soviética
interessados numa solução do problema angolano, é evidente que era uma tarefa
impossível.
JN - As autoridades de Lisboa terão até dito, apesar dos avisos de Luanda, que
as coisas eram o que eram, e não adiantaria tentar mudá-las...?
VVA - Devo dizer que não sou muito favorável a esse tipo de argumento, que as
coisas teriam sempre de passar-se como se passaram. É uma espécie de desculpa
automática para todos os erros que se fazem. E fizeram-se erros enormes do
nosso lado! Mas uma coisa é terem-se feito erros, outra é supor que em
Portugal havia condições objectivas para impor uma solução unificada. O Melo
Antunes, naquela altura, tentou uma solução de equilíbrio, e falou com os
movimentos de libertação todos. Mas o MPLA estava então numa posição
extremamente dura, porque tinha uma força militar importante, e sabia que tinha
o apoio da União Soviética. Essa tentativa do Melo Antunes gorou-se por causa
da atitude dos movimentos de libertação, em especial do MPLA, porque era de
longe o movimento mais estruturado, o que estava mais próximo de nós, os
dirigentes tinham estudado nas nossas universidades, tinha uma visão dos
acontecimentos históricos e uma perspectiva política que não andaria muito
longe das posições políticas de Portugal. Aliás, houve vários erros nessa
altura: lembro-me, por exemplo, de um discurso de Agostinho Neto - de quem era
amigo pessoal e por quem tinha muita admiração - em que praticamente dava a
entender que os funcionários administrativos portugueses tinham que vir-se
embora. Lembro-me que me meti no carro e fui a casa dele dizer-lhe que me
parecia um disparate monumental. É importante também não esquecer que o MPLA
não era uma força única, e a linha que tinha mais força na altura era uma
linha dura, legitimada pelas pessoas que tinham estado na luta contra Portugal,
e não compreenderam que uma certa flexibilidade abria a possibilidade de uma
colaboração mais estreita com as forças que, do nosso lado, também
representavam alguma moderação.
JN - No Alvor, os movimentos de libertação afirmaram que apenas estavam de
acordo quanto à independência, e além disso não havia qualquer tipo de
acordo ou cooperação. Mesmo assim...
VVA - Acho que uma grande ironia do acordo do Alvor é nós, quando em Portugal
já estávamos a ver que o processo democrático era complicado, irmos tentar
impor uma situação perfeitamente surrealista, a de criar um Governo de transição
com os três movimentos lá representados, como se isso fosse suficiente para
acreditar na sua acção.
JN - No processo angolano houve uma originalidade: creio que em nenhum outro
processo de descolonização cidadãos do país colonizador se increveram em
partidos do do país colonizado. Havia portugueses inscritos no MPLA, na UNITA...
VVA - Havia. A questão aí foi que Angola teve uma colonização muito
especial. Não tinha nada a ver com Moçambique, em Angola a colonização foi
feita por gente muito pobre. Aliás, é isso que explica, em parte, a nossa
pseudocapacidade de lidar com povos africanos...Muita gente que saía daqui
vivia em condições praticamente iguais às que viviam as populações em África.
Lembro-me de ter encontrado brancos a viver nos musseques, o que era uma coisa
inacreditável, como engraxadores nas ruas. Quer dizer, gente do país
colonizador, que exerce o poder, ser engraxador em Luanda da mesma maneira que
era engraxador no Rossio, é uma coisa inacreditável. O que se verifica, de
repente, quando aparecem os três movimentos, e esses movimentos são
legitimados pelo acordo de Alvor, é que as pessoas tentaram obter protecção a
qualquer preço. O que se passou aqui também - a seguir ao 25 de Abril, eram
raras as pessoas que não se inscreveram num partido, porque achavam que isso
lhes dava alguma forma de protecção. E as clivagens foram feitas um bocado de
acordo com o que era a posição social das pessoas - as que tinham interesses
económicos achavam que o MPLA era marxista e portanto procuravam aproximar-se
da UNITA, e muita gente que achava que era preciso uma mudança, que se
reconhecia nas ideias difusas da época do MPLA. Outra gente aproximou-se da
UNITA. Simplesmente, não tinha qualquer espécie de voz, porque se filiaram nos
partidos mas não queriam ver-se envolvidos naquele vendaval. E havia muita
gente, mesmo muita gente, com menos preparação, menos acesso a informação,
que ficava varada porque descobria que aquilo, afinal, não era Portugal.
Fizeram-nos descobrir que não eram angolanos, e o próprio MPLA, que a princípio
tinha uma grande abertura, começou a fechar-se por força das pressões
daqueles que tinham estado na guerrilha e que queriam ter acesso às posições
que eram ocupadas por portugueses.
JN - A questão da cidadania dos angolanos por nacionalidade ou por opção - não
ficou resolvida no Alvor, ficou para depois...
VVA - No fundo, o que veio ao de cima é que tinha havido um processo de
colonização menos elitista, mas há uma coisa que é preciso não esquecer: é
que havia uma sobreposição clara - havia dois povos, duas culturas, tipos de
interesses diferentes, um domínio completo pelos portugueses da população
angolana. Embora houvesse - e isto é um fenómeno diferente em Angola -, uma
burguesia negra, escritores, poetas... Essa burguesia negra, que inicialmente
tinha estado de alguma forma culturalmente próxima de nós, até em termos políticos
- alguns tinham-se batido aqui o salazarismo - acaba por ser submergida, quer
por aqueles que conduziram a guerra, quer por camadas novas que vão aparecendo
e que cada vez têm menos que ver connosco. Aliás, não tenho ilusões que, à
medida que o tempo for passando, o que vai haver é afastamento afectivo e
emocional.
JN - Sai do Governo por iniciativa sua ou por pressões? Foi, como se disse,
intimado a sair?
VVA - Não, não fui nada intimado. Eu tinha tomado várias posições sobre a
maneira como tudo se estava a passar em Angola, e tinha falado, inclusivamente,
com os presidentes dos movimentos de libertação. Eu tinha um plano económico
para a recuperação de Angola, foi exposto publicamente, tinha o acordo de
princípio dos três movimentos - é claro que isso para eles não tinha
qualquer espécie de importância, mas era minha obrigação -, e ainda vim aqui
a uma reunião duma coisa que se chamava o Conselho dos 20. Essa reunião foi
absolutamente inconclusiva, porque não era possível aqui obter um consenso mínimo
entre as forças políticas. Voltei para Angola e escrevi uma carta aos três
movimentos de libertação. Lembro-me que nessa altura tive uma conversa com o
Agostinho Neto, e ele disse-me: "És muito duro também connosco", e
eu respondi-lhe: "Não sou mais duro convosco do que com os outros, a vocês
o que eu exigia era mais, e nessa medida vocês têm mais
responsabilidades". Como não obtive resposta à carta, nem daqui, nem de lá,
vim a Lisboa e disse ao Presidente da República que não continuava. Devo dizer
que houve um momento em que a mim me parecia que a posição de Portugal devia
ter sido a de claramente apoiar um movimento, e esse movimento só poderia ter
sido o MPLA, quanto a mim. Ao fazê-lo, talvez tornasse possível um
entendimento, talvez tornasse desnecessário o recurso do MPLA aos cubanos, que
foram um elemento de perturbação, e teria permitido a Portugal ter moderado de
alguma maneira muitas das coisas. Porque, como disse, havia várias alas dentro
do MPLA. O Agostinho Neto foi uma espécie de bissectriz entre todas as tendências.
Havia nessa altura um grupo de pessoas lúcidas, como as que integravam a
Revolta Activa, que eram vistas na altura pelo MPLA como um grupo terrível. A
Revolta Activa era constituída por homens muito inteligentes, com uma
capacidade de perspectiva interessante. Mas aquele grupo de pessoas válidas a
certa altura foi marginalizado pela ala mais radical e mais ignorante do MPLA.
JN - Quanto à ponte aérea. Pensa que as coisas podiam ter sido mais bem
organizadas?
VVA - Inicialmente, as pessoas aqui não se aperceberam da gravidade da situação
em Angola. Lá, havia uma comissão militar que estava consciente disso, e, no
momento em que se estabelece o pânico, o então tenente-coronel Gonçalves
Ribeiro, que era o homem que dirigia o que restava da Administração
portuguesa, fez o que era possível, e penso que, apesar de tudo, a ponte aérea
e a vinda das pessoas é um feito fora do vulgar.
Em Fevereiro, nem um mês após a
tomada de posse do Governo de Transição, tornou-se óbvio que o que parecia
desconfiança entre os movimentos estava longe de diminuir. O poder residia, de
facto, nos exércitos que cada movimento não cessava de armar. Na cimeira de
Nakuru, em Junho, os três reconhecem culpas, e prometem pôr fim à violência.
Era mentira.
As forças armadas conjuntas
acordadas um mês antes no Alvor não passaram de uma miragem, e os confrontos
esporádicos iniciados em Fevereiro rapidamente se transformam em renhidos
combates, com milhares de mortos, ao fim dos quais, em princípios de Julho, o
MPLA estava sozinho em Luanda.
Pelo meio, a 21 de Julho, ficou a cimeira de Nakuru, no Quénia, promovida pelo
presidente Kenyatta, na qual os três movimentos juraram a pés juntos que
pretendiam pôr fim à violência.
Raul M. chegara a Luanda em fins de 74. Depois de meia-dúzia de anos em Argel,
nos anos 60, é criado numa base da guerrilha no Congo. E é com a memória da
adolescência que recorda os combates de Luanda.
"Uma das casas onde estive era na Praia do Bispo, uma estrada marginal com
vivendas. Numa dessas vivendas, havia uma sede do MPLA. Por trás, havia um
monte, e lá em cima havia uma sede da FNLA. De repente, começaram a entrar em
"makas". Desataram aos tiros, e tudo o que estava na rua
desapareceu", conta.
Outra casa para onde depois
passou ficava na Avenida Brasil, que dá para o musseque do Rangel. "Ali ao
pé havia uma sede da FNLA, até era considerada uma das sedes mais importantes.
Ali é que houve mesmo grandes porradas".
Os combates começaram com trocas de tiros de armas ligeiras entre a sede do
MPLA e a da FNLA. "Cheguei a ter 46 buracos de bala na parede do quarto. Não
percebia como, morava num sexto andar. Até que um dia espreitei: eles nem
sequer levantavam a cabeça para ver onde atiravam. Levantavam a arma acima do
muro e despejavam o carregador".
Um dia, a FNLA montou antiaéreas no terraço do prédio, e virou-as para baixo,
em direcção à sede do MPLA. "Avisaram o pessoal do prédio que era
melhor ir embora, não se responsabilizavam pelo que acontecesse. E nós fomos
mesmo embora, para casa de família na baixa. Quando o MPLA descobrisse donde
estavam a atirar...".
No dia seguinte, quando voltam ao sítio, o apartamento já tinha sido atingido
por um roquete. Nos dias seguintes, o prédio iria ficar completamente destruído.
Nessa altura, já os três movimentos de libertação tinham muitas forças em
Luanda. A FNLA havia, desde Junho do ano anterior, mesmo antes da assinatura
formal do cessar-fogo com o Exército português, metido muita gente na capital,
vinda de Kinshasa. Quadros políticos e tropa. Eram conhecidos por não falarem
português, apenas francês com sotaque carregado, e pelo comportamento,
arrogante, mais próprio de um exército de ocupação.
Mas quem ganhou a Batalha de
Luanda para o MPLA não foi a gente do mato, foi o povo dos musseques,
enquadrado por ex-militares negros do Exército colonial. Em Junho de 74, cerca
de nove mil militares angolanos do Exército português tinham-se manifestado
publicamente, exigindo a desmobilização imediata.
"Uma das figuras paradigmáticas, uma das figuras emblemáticas, era um
tipo chamado Sabata, que era um antigo ladrão do tempo colonial, mas que era
muito popular nos musseques. Era uma espécie de figura mítica, porque era um
indivíduo que fazia raides contra os da FNLA, e depois refugiava-se nos
musseques. Dizia-se que andava com duas G3, de canos serrados", recorda
Raul.
A FNLA também tinha o seu herói, um vadio branco de apelido Passarão. Conta a
lenda que Passarão morreu abatido por Sabata em duelo singular. "Como se
tivesse parado a guerra civil, os dois encontram-se no musseque, Sabata saca da
arma, o outro estremece...".
Na verdade, não foi isso que aconteceu. De Sabata, mais tarde promovido a
comandante, sabe-se que foi morto mais tarde, no 27 de Maio, em 77, durante o
golpe de Nito Alves. Quanto a Passarão, diz-se que terá morrido em combate
quando a FNLA foi empurrada até à fronteira.
Na batalha por Luanda o MPLA perde vários heróis populares. "Outra das vítimas
da guerra foi um que eu tinha conhecido no Congo, o Valódia. O Valódia morreu
durante um assalto à sede da Revolta de Leste, do Chipenda". Chipenda é
expulso de Luanda logo em Fevereiro, e alia-se à FNLA.
Morre também Nelito Soares, um dos autores do desvio de um avião que voava de
Luanda para o Congo, nos últimos anos da década de 60. É morto durante uma -
a única? - operação de comandos portugueses em Vila Alice, bastião do MPLA.
Vários portugueses, como passou a tornar-se comum, tinham sido raptados e
levados para Vila Alice.
O Exército português exigiu a libertação dos reféns e a entrega dos responsáveis
pela sequestro. Os responsáveis locais do MPLA fizeram orelhas moucas, e foi
ordenada a intervenção dos comandos.
Nelito Soares, que nessa altura saía da sede do MPLA para negociar, é abatido,
e os comandos fazem uma razia.
Ao fim de algum tempo, a guerra
em Luanda era uma coisa que se tinha tornado normal. "Para nós, que éramos
miúdos, aquilo já era banal. Às três, quatro da manhã, íamos para a bicha
comprar o pão. Às vezes, rebentava tiroteio, e toda a gente fugia. Mas depois
havia discussões por causa do lugar em que estavam na bicha, e morria mais
gente nessa discussão que propriamente nos combates. A guerra era uma coisa tão
banal que a gente brincava aos beligerantes. Construíamos umas armas, em
madeira, e andávamos para ali a disparar".
Mais. "A gente até ficava contente com a guerra civil, porque depois não
havia aulas. Uma vez, à frente do colégio onde eu andava, apareceu uma
manifestação do pessoal dos musseques...Ficou tudo tão aflito que as aulas
tiveram de acabar e nós pronto, ficámos todos contentes".
Às tantas, começou a faltar comida em Luanda. "No sítio onde eu estava,
não houve grandes carências. A gente ainda apanhava pão, mas tínhamos de
fazer bichas de madrugada. E depois as pessoas tinham os seus esquemas, as suas
relações... A mim nunca faltou de comer", recorda Raul.
"Por isso, para nós, miúdos, a guerra civil não foi aquela coisa
hedionda... Só ouvíamos certos relatos, de gente que era morta de maneira bárbara,
dizia-se que a FNLA matava com certos requintes, praticava antropofagia".
"Na Batalha da FNLA, aquela na sede na Avenida Brasil, contava-se de boca
em boca, foi um grande acontecimento. Dizia-se que descobriram lá corações".
E sabia-se também da caça ao homem, do racismo. "A FNLA caçava tudo,
quimbundos, mas sobretudo mulatos. Lembro-me que houve um mulato, que apareceu
numa das casas onde eu estava, que tinha vindo lá de Carmona, do Uíge, e tinha
sido apanhado. Levou porrada, e o fnla, o soldado, olhou para ele e disse-lhe:
Seu mulato, passarinho sem ninho, seu filho da p.... E havia também aquele
ditado: o branco vai embora de barco ou de avião, o mulato vai a nado".
A 11 de Junho, Savimbi, que
entrara em Luanda a 25 de Abril de 75, vê o pequeno quartel da UNITA na capital
angolana ser atacado pelas FAPLA.
A situação deteriora-se tão seriamente que o presidente do Quénia, Jomo
Kenyatta, convoca para Nakuru uma cimeira de emergência. Após quase uma semana
de discussões - para as quais Portugal não é convidado -, a 21 de Junho, os
três movimentos fazem uma autocrítica, reconhecem ter dificultado a actuação
do Governo de Transição, ter apelado ao tribalismo e ao racismo, armado a
população civil, e comprometem-se a acabar com a violência e a intimidação,
a integrar os seus exércitos numa força armada única e a desarmar os civis.
Poucos dias depois, a 9 de Julho, após três semanas de violentos combates, a
FNLA é expulsa de Luanda, e Savimbi pede protecção ao Exército português e
ordena aos seus apoiantes que deixem a capital.
Raul M. tem depois uma última recordação. "Quando já tinha mudado para
uma casa no Bairro Salazar, lembro-me que houve uma altura em que só se ouvia
martelar: pá, pá, pá". E do porto, cheio de caixotes.
O general Constand Viljoen,
reformado desde 1985, já foi o "herói da Guerra de Angola" entre os
soldados da África do Sul do antigo regime. Mas a sua personalidade não é a
de um militarista no sentido convencional e o título assenta-lhe mal. Todavia,
aceitou com prazer recordar e explicar os porquês teóricos da sua campanha de
Angola.
"Na década de 60 começaram
as guerras em África pela descolonização. Foi uma pena que todos os
movimentos de libertação se virassem para a URSS, para pedir assistência,
treino e armas. Acreditavam que a melhor maneira de se libertarem era a
guerra" - diz Viljoen. "E a URSS estava na fase de expandir a
ideologia comunista na África Austral. Isto condicionou tudo e foi pena porque
se podiam ter encontrado soluções e as coisas não terem tomado o caminho que
tomaram" - diz Viljoen, comedido nas palavras, referindo-se à guerra de três
décadas que rodeou a descolonização em Angola e fez do povo angolano o mais
sofredor da história moderna.
Mas havia alternativa, na altura, para os povos colonizados em África?
"Infelizmente, por causa das nossas relações com os colonialistas
ingleses e portugueses, a África do Sul adquiriu a reputação de ser uma espécie
da nação semi-colonialista", diz Viljoen.
Para o general, a África do Sul poderia ter sido aliada dos movimentos
emancipalistas na África Austral. Sem a aliança com a URSS, a independência
aconteceria "sem guerra" - acredita o ex-general, que virou político.
"Qualquer outra solução que não fosse a da guerra teria sido
melhor".
"A independência de Angola foi a 11 de Novembro de 1975. Antes dessa data,
com a assistência dos cubanos e da logística soviética, o MPLA tinha
capturado vastas porções do país anteriormente controlados pela FNLA e pela
UNITA. Foram estes que nos contactaram e como comandante general das operações
recebi a missão de dar assistência à UNITA e à FNLA e, mais tarde, ao grupo
de Daniel Chipenda, para retomarem as suas áreas tradicionais, de modo a que, a
11 de Novembro, a Organização de Unidade Africana estivesse em posição de
obrigar à formação de um Governo de Unidade Nacional em Angola" - é
como o general vê os acontecimentos de 75, que levaram uma poderosa coluna
militar sul-africana em marcha desde o Cunene até Cela, a pouco mais de 100
quilómetros a sul de Luanda.
"Instalar um governo de unidade nacional, em Luanda, era o nosso único
objectivo, mas a OUA não conseguiu chegar a essa decisão" - insiste o
general.
O que lucrou a África do Sul com esta intervenção? O general resume:
"Estávamos a lutar ao lado das forças anti-comunistas na África Austral.
Contribuímos para a destruição dos regimes comunistas totalitários no
mundo". É claro que o general Viljoen, dados os acontecimentos
posteriores, que levaram à queda dos regimes comunistas, considera que
participou numa cruzada ideológica e que o Mundo devia agradecer à África do
Sul.
E, indo mais longe: "Conseguimos adiar as mudanças na África do Sul até
uma altura em que elas se puderam fazer sem interferência comunista
exterior".
E porque é que uma boa parte do Mundo, especialmente a África, não vê as
coisas dessa maneira? "É tudo uma questão de propaganda, não temos os
meios de controlo da propaganda que o resto do Mundo tem" - diz o general.
O general Viljoen retirou-se das Forças de Defesa e Segurança em 1985 e ainda
participou, em Março de 1984, na celebração do Acordo de Inkomati, entre a África
do Sul e Moçambique, depois de ter dirigido pelo menos uma operação em que as
SADF atacaram a Matola, nos arredores de Maputo, para desalojar um comando do
ANC instalado numa vivenda.
Nesse ataque, morreram moçambicanos inocentes e instalações sociais de valor
foram destruídas. Mas, como homem de paz, este acordo é-lhe caro,
considerando-o uma tentativa sincera de Samora Machel de acabar com a guerra que
destruía Moçambique.
Mas como explica que depois disso as SADF continuassem a apoiar a Renamo?
"Não as minhas SADF", diz secamente Viljoen. "Talvez privados,
ou os CCB (unidade secreta, constituída por ex-militares)".
A conversa com Viljoen passa depois para a política e fala agora o líder da
Frente da Liberdade, um partido africaner que nas eleições locais acaba de
confirmou os seus quatro por cento de votos.
"O Partido Nacional (de De Klerk) não tem futuro, porque não tem visão
nem alternativa. É apenas um partido contra o ANC e isso não é um programa
político. Eu tenho visão de futuro, pretendo defender a preservação da nação
africaner e cooperar positivamente com o ANC no desenvolvimento económico da África
do Sul e da região".
O general Viljoen, que dirige o projecto de assistência dos agricultores
africaneres que querem investir em Moçambique e está a negociar a ida do
primeiro grupo de agricultores para o Niassa, diz que já foi contactado por
Angola para um projecto semelhante. "Mas em Angola a situação ainda não
é clara" - conclui.
O presidente Mário Soares vem brevemente fazer uma visita à África do Sul e o
que é que o general Viljoen lhe vai dizer sobre estes projectos nas antigas colónias
portuguesas? "Os portugueses fizeram muito pelo desenvolvimento económico
das suas colónias em África. O que eu vou dizer ao presidente Soares é que
foi uma pena que os portugueses tivesem fugido a correr de Moçambique e Angola
em 1975, e que nós vamos fazer os possíveis por continuar a fazer o trabalho
que eles deixaram".
Paulo Teixeira Jorge, "histórico"
da Revolução Angolana, assegura ao JN que a consulta aos soviéticos partiu do
próprio MPLA
Paulo Teixeira Jorge é, actualmente, o homem-forte das Relações Exteriores do
MPLA. Um "homem de partido" que, no desempenho de tais funções,
contribui de modo inequívoco para o nobrecimento, no estrangeiro, da própria
imagem de Angola.
Durante anos ministro dos Negócios
Estrangeiros, Paulo Jorge, dos mais inteligentes, dos mais cultos, dos mais
respeitados (até mesmo entre os homens relevantes da UNITA) dirigentes
angolanos, guarda uma invejável experiência no domínio das mais complexas
relações internacionais. Washington, Moscovo, Havana, Kinshasa, Pretória,
Brazaville, desfilam na ardósia da entrevista que Paulo Jorge acaba de conceder
ao JN, em Luanda, a propósito da efeméride que, nestas colunas, tem vindo a
ser objecto de um amplo registo.
JORNAL DE NOTÍCIAS - Estes 20 anos de independência trouxeram algumas mudanças
"qualitativas" no quadro das relações de Angola com os países
imediatamente fronteiriços. O Congo-Brazaville, por exemplo. Que, no tempo do
presidente Agostinho Neto, era governado pelo saudoso Marien Nguabi. E que,
hoje, parece apoiar, veladamente, os independentistas de Cabinda...
PAULO JORGE - As relações entre os dois estados foram bastante amistosas. Tal
como as relações entre o MPLA e o Partido Congolês do Trabalho. Isto,
evidentemente, sem esquecer os altíssimos níveis de solidariedade dos
congoleses durante a própria luta de libertação nacional. Foi uma espécie de
compensação para os desgostos e a aspereza da experiência vivida pelo Estado
angolano, e pelo MPLA, nas relações com a actual e também vizinha República
do Zaire. A morte de Marien Nguabi, a própria evolução situacional na República
do Congo e na África Austral, modificaram esse quadro. O estado de graça,
digamos assim, foi-se esbatendo depois dos bons ofícios do regime presidido por
Nguesso. Provavelmente, uma consequência dos fenómenos registados (o
multipartidarismo, por exemplo) tanto no Congo como em Angola. Estamos a
restabelecer, de há uns tempos a esta parte, sobretudo a níveis de partido,
certas formas convivenciais com o Congo-Brazaville.
JN - É um dado adquirido, para Angola e para o MPLA, que o Congo-Brazaville se
esforça por "intervir" no caso de Cabinda?
PJ - Eu não creio que se possa dizer, rotundamente, que o Congo procura
influenciar, está implicado ou tem "interesses" nas movimentações
sobre Cabinda. O que nós sabemos é que há, de facto, alguns congoleses, deste
ou daquele partido, alegadamente interessados na questão. Eu admito que esses
congoleses sejam instigados por potênciais alheias ao Continente Africano. E
também admito que, mais do que no Congo, haja no Zaire grande apetência
desestabilizadora de Cabinda, igualmente em subordinação a interesses e
instigações de fora do Continente. Tendo em apreço as potencialidades de
Cabinda.
JN - A Nigéria, verdadeira potência
africana, agora novamente nas bocas do mundo: é possível clarificar se a Nigéria
chegou a disponibilizar-se, ou não, para intervir, militarmente, no passado,
solidarizada com o MPLA?
PJ - O apoio da Nigéria, nessa conjuntura, cifrou-se em meios materiais. Não
em tropas. Contudo, até mesmo a esse nível, o do envio de tropas e
equipamentos respectivos, a Nigéria chegou a manifestar a sua firme disposição
de impedir que um certo leque de forças periféricas realizassem os seus desígnios.
A Nigéria foi, sem dúvida, dos países africanos de maior disponibilidade para
Angola. Não vieram tropas da Nigéria para Angola porque, na oportunidade, se
considerou desnecessário. Mas vieram, por exemplo, da Guiné-Conakri, alguns
homens e algum equipamento; vieram também da Guiné-Bissau alguns homens e
algum equipamento militar. Como é de todos sabido, preparava-se uma dupla invasão
de Angola.
JN - Poderá supor-se, ou insinuar-se, que a Nigéria, com umas Forças Armadas
numerosíssimas e bem equipadas, terá funcionado como elemento dissuasor de
maiores ambições intervencionistas da "antiga" África do Sul?
PJ - O problema da participação de forças africanas em conflitos no nosso
continente foi discutido, várias vezes, a nível da OUA. Nos anos da década de
80 discutia-se muito a constituição e composição de um Exército Africano e
o respectivo comando, orçamentos, etc. A ideia, porém, face às diferenças
conceptuais, nunca chegou a tomar corpo. Mas, indubitavelmente, a Nigéria, num
tal projecto de Exército Africano, teria uma participação bastante
expressiva!
JN - A distância de, precisamente, 20 anos: é firme a reiteração de que
Angola, na altura da independência, esteve debaixo de uma grande ameaça?
PJ - Absolutamente. Uma acção combinada para atingir Luanda. A África do Sul
viria, com as suas unidades militares, em apoio à UNITA. E a congénere
zairense viria, por seu turno, em apoio à FNLA. Com um objectivo central:
impedir a proclamação da independência, pelo MPLA, em 11 de Novembro. A
resposta enérgica das FAPLA impediu o êxito dessa operação. Até porque,
entretanto, tinham chegado a Angola os contingentes das forças
internacionalistas cubanas, em resposta a um apelo do presidente Agostinho Neto.
Ajudaram-nos a enfrentar dois exércitos regulares! O dos sul-africanos, na província
do Cuanza-Sul, a nível do Rio Queve, que eles não conseguiram atravessar. E o
dos zairenses, aqui a norte de Luanda, em Kifangondo.
JN - Os ventos da História determinaram, depois, que Angola, sob a direcção
do MPLA, fosse um elemento de peso no próximo destino da Namíbia e da própria
África do Sul...?
PJ - Fizemos simplesmente o mesmo exercício. Competia-nos retribuir a
solidariedade recebida. A SWAPO passou a actuar a partir do território
angolano, tal como os combatentes do ANC fizeram, em Angola, a preparação das
suas incursões. Lembro-me de uma frase do presidente Agostinho Neto: "Na
Namíbia e na África do Sul está a continuação da nossa luta". Uma
frase legendária que o povo angolano assumiu, paralelamente ao seu sentir
nacionalista.
JN - Foi aqui sublinhado o papel
internacionalista dos cubanos. É possível, já, à distância de 20 anos, uma
avaliação profunda do papel dos cubanos em Angola?
PJ - Eu penso que Angola contraiu, perante os internacionalistas cubanos (é
assim que nós os designamos), uma dívida impagável. Há sangue de Cuba
vertido em solo angolano. Para que nós conservássemos a nossa independência.
Isto é um facto, de grande inteireza, não é uma figura de retórica. Sangue
cubano vertido em nome de um só valor: a solidariedade. Porém, às vezes, as
pessoas, quando se referem a essa presença dos cubanos em Angola, somente a
analisam em termos militares. Quando, de facto, essa presença excedeu,
largamente, os termos militares. Os internacionalistas cubanos desenvolveram acções
que se reflectiram em sectores importantes como o da saúde, o da educação, o
das obras públicas. Vieram centenas de médicos, centenas de professores,
centenas de técnicos constituídos em brigadas para acções de conjunto ou
pontuais. É possível encontrar, hoje, em várias províncias de Angola, sinais
da acção multiforme e extremamente válida dos internacionalistas cubanos. Daí
que a participação cubana continue a ser, em Angola, vivamente referida não só
pela direcção do MPLA mas, também, pela população em geral.
JN - Lá fora, contudo, não falta quem diga que "os angolanos nem podem
ouvir falar dos cubanos"...
PJ - Completamente falso. Temos hoje, em Angola, centenas e centenas de quadros
que estudaram em Cuba, que se formaram em Cuba sem que o Estado angolano
cobrisse os respectivos encargos. Essa foi, sem dúvida, outra das valiosíssimas
contribuições do internacionalismo cubano. O povo angolano não se manifestou,
jamais, indiferente, ou hostil a essa ajuda multiforme.
JN - Até que ponto Moscovo influenciou a vontade política e internacionalista
de Cuba em Angola?
PJ - A reacção de Havana, dos cubanos, após o apelo do presidente Agostinho
Neto, foi, posso dizê-lo, imediata.
JN - Não houve sequer um compasso de espera que fizesse pressupor alguma prévia
diligência junto da antiga URSS?
PJ - Não houve. Porque, repare: quando os exércitos zairense e sul-africano
começam a invasão do nosso território, estamos em Outubro de 1975. A cerca de
um mês da proclamação da independência. Até à vinda dos cubanos decorre,
pois, um estreitíssimo lapso de tempo. Entretanto, nós, angolanos, isso sim,
conhecedores da situação de Cuba, conversámos com os soviéticos. Do que
resultou, contrariamente ao que se disse, uma participação da antiga URSS
traduzida em equipamentos e instrutores militares, nunca em soldados! Também se
disse, e era completamente falso, que em Angola combatiam, a nosso lado, forças
da antiga RDA...
Durante algum tempo, a aposta do
MPLA nas capacidades de Paulo Jorge incidiu na vertente da administração
regional. Vertente incómoda, a dos governos provinciais. Paulo Teixeira Jorge
foi governador de duas importantes províncias estratégicas: o Cuanza-Sul e
Benguela. E ele não perde, de facto, a noção do tempo e... do espaço.
Ao longo da entrevista que nos concede, em Luanda, na sede nacional do partido,
Paulo Jorge procura demonstrar que o MPLA está, de modo realista, preparado
para os corredores e tribunas da política internacional. Menos loquaz numas
questões do que noutras, Paulo Jorge não se furta, porém, a tudo considerar.
Savimbi nunca fará uma apreciação minimamente dúctil do papel que Cuba teve
em Angola? Ora, entende Teixeira Jorge, não é coisa que entre nas preocupações
mínimas do MPLA. Ou dos cubanos. Porém, note-se, Paulo Jorge não minimiza as
"pressões exteriores que levaram a UNITA a hostilizar os cubanos".
Nomeadamente por banda da Administração (republicana) dos Estados Unidos. E,
claro, do regime sul-africano já felizmente derrubado.
Para Savimbi, diz Paulo Jorge, essa animosidade a Cuba funcionou como bandeira
chamativa de apoios de toda a ordem. Nomeadamente, dos seus
"padrinhos". Bandeira-psicose-paranoia.
JORNAL DE NOTÍCIAS - Quando sobraçou a pasta das Relações Exteriores (Negócios
Estrangeiros), travou, certamente, incontáveis "batalhas"
conversacionais com os homens da Casa Branca. O que é que disse aos americanos
sobre a ajuda cubana? Lembra-se de algum argumento básico?
PAULO JORGE - Lembro-me. Eu tive ensejo, no decurso de encontros com autoridades
americanas, de lhes dizer, muito claramente, que o "conflito" entre os
Estados Unidos e Cuba não era um "problema" de Angola! Nós, Angola,
frisei, rejeitávamos categoricamente que a actuação dos Estados Unidos,
relativamente ao problema angolano, se transformasse num prolongamento do seu
"conflito" com Cuba. E a verdade é que Angola, de facto, foi palco
para as mais diversas reproduções desse "conflito". E disso é
indicador o facto de somente o ano passado os Estados Unidos terem reconhecido a
República de Angola.
JN - Ouviu, directamente, dos norte-americanos, tentativas de cristalização e
imposição do chamado "linkage"?
PJ - Sim, nos encontros que tivemos foi-me dado a entender, pelos
norte-americanos, que o reconhecimento de Angola e a normalização de relações,
segundo os Estados Unidos, subordinavam-se a um condicionalismo: a "presença
de tropas estrangeiras em Angola", ou seja, os cubanos. Claro, os cubanos.
Que não tinha lógica nenhuma, entendíamos nós. Porque os Estados Unidos,
afinal, tinham relações diplomáticas com vários países africanos onde
existiam tropas estrangeiras. Em Junho de 1977, os Estados Unidos da América do
Norte estabeleceram relações diplomáticas com a República do Djibuti; e
havia, nesse preciso momento, em Djibuti, 2.500 militares franceses! Então, as
tropas francesas, no território do Djibuti, não são tropas estrangeiras? E não
havia, também, tropas francesas na República Centro-Africana e no Senegal?!!!
"És irmão ou
camarada?" - a pergunta gelava o sangue. Do acerto da resposta dependia a
sorte de quempor esses dias do fim do Verão de 75 se atrevia a andarpelas
estradas de Angola. Houve gente espancada, emblemas engolidos,alguns ali mesmo
traçadosà bala.
Nesse fim de tarde de Setembro de
75, eram esperados no aeroporto da então ainda Nova Lisboa dois aviões para
evacuar portugueses em fuga à guerra civil em Angola. Os primeiros 200 a partir
já tinham passado do hangar à sala de embarque, pela ordem do costume:
doentes, feridos e deficientes, crianças e casais.
Quando o primeiro avião, um enorme "Boeing 747", está prestes a
tocar a pista, rebenta grande tiroteio, vindo não se sabe de onde. O "Jumbo"
aborta a aterragem, ganha de novo altura e afasta-se.
Américo Martins, que tinha ficado a coordenar as operações da ponte aérea
repara que um carro de baterias, que arrancara para a pista à aproximação do
avião, ficara no sítio, de luzes acesas. Um chamariz para as balas. Vira-se
para o condutor, e ordena-lhe que vá lá buscar o carro. "Vá você!",
obtém por resposta. E foi mesmo.
Pouco depois, é abordado por um oficial pára-quedista. "O que se
passa?", pergunta o militar. "Vocês é que devem saber!",
responde Américo Martins. "Deixe estar, vou já tratar disto",
garante o outro.
As balas tracejantes deixam realmente pouco depois de riscar os céus por cima
do aeroporto. O "747" volta a aproximar-se e finalmente aterra.
Américo Martins sobe a bordo, vai à cabina falar com o comandante do avião,
um brasileiro, para saber quantos pode embarcar. "O que é que você
precisa?" pergunta o comandante. "De tudo!", responde o português,
que ele próprio já só tinha que comer quando a governanta negra que um amigo
deixara para trás, por artimanhas que só Deus sabia, lhe desencantava algo que
mastigar.
"Comida não tinha, mas deu-me dois pacotes de tabaco, Marlboro",
conta Américo Martins, que ainda hoje abençoa os benditos volumes, que horas
depois haviam de lhe salvar a vida.
Passadas as cortesias, o coordenador da ponte aérea quer saber quantos pode
embarcar. "Mande entrar até eu dizer", responde o comandante. Américo
Martins esfregou as mãos de contente, não sabia quando viria o próximo avião,
e embarcou quase 300 pessoas - mais que o costume, que aquele voo ainda ia meter
mais gente em Luanda antes de partir rumo a Lisboa.
"E malas?, ainda perguntou, com a leve suspeita que estava a abusar da
sorte. "Vim salvar vidas, não vim salvar malas", veta o brasileiro. E
toca de se fazer de novo à pista.
"Correu-a toda, estava a ver que não conseguia alçar-se", recorda.
Por pouco. Ao fim do asfalto, o "Jumbo" afocinha para o barranco, mas
lá começa a ganhar altura.
Já eram dez da noite, Américo Martins resolve ir a casa antes do outro avião.
No caminho, é parado. À luz dos faróis, vê um civil, armado e completamente
bêbado, no meio da estrada. "És irmão ou camarada?", pergunta-lhe,
cambaleante, o cano da metralhadora apoiado na beira da janela do carro.
"Nem uma coisa nem outra. Deixa-me passar, venho do meu trabalho!",
tenta Américo Martins. "Mas és irmão ou camarada?" insiste o outro,
o cano a escorregar cada vez mais para dentro, o dedo no gatilho a aproximar-se
cada vez mais do aro da janela.
Achar a resposta certa era difícil. Camarada era como se tratava a gente do
MPLA, irmãos eram os da FNLA, e o homem que tinha na frente tanto podia ser de
uns como dos outros.
Américo Martins sabia que havia gente que tinha cartões do MPLA, da FNLA ou da
UNITA, para mostrar conforme as circunstâncias, mas não era o seu caso, nem
ali lhe tinha servido para nada. O negro estava vestido de farrapos, que não
eram farda de partido nenhum. Por respostas erradas, gente em Luanda foi
obrigada a engolir distintivos, levou pancada com mangueira. "Eu próprio
vi no Huambo gente encostada ao volante, traçada à bala", lembra o antigo
industrial do Porto, que partiu para Angola quando a fábrica que o pai lhe
deixara, onde tinha fabricado os aros da cúpula do Palácio, lhe foi tirada a
seguir ao 25 de Abril.
Américo Martins puxa de um cigarro, ganha tempo, acende-o. "Tens
tabaco?", pergunta o negro. "Tenho", e saca, de debaixo do banco,
um dos dois pacotes de "Marlboro" que lhe dera o comandante do "Jumbo".
Parte-o em dois, dá 10 maços. "Deixa passar, que este é irmão!",
grita o homem para outro, escondido com a arma nos arbustos mais à frente.
Américo Martins passara já por muitas situações do género. Era há meses
encarregado da coordenação das operações da ponte aérea, depois que o
engenheiro Alberto Marques Pinto partira, por causa de perseguições.
O engenheiro encabeçara o movimento das forças vivas da cidade na criação do
comité local da Comissão Nacional de Apoio aos Desalojados, quando Nova Lisboa
foi invadida, em meados de 75, por 200 mil pessoas em fuga do Norte de Angola.
"Viviam nas ruas e nas praças, dormiam, cozinhavam, faziam tudo na
rua", recorda.
Às tantas, Marques Pinto manda perguntar para Portugal como ia ser resolvido o
problema dos refugiados. De Lisboa respondem que a TAP resolvia o assunto.
"Como, ninguém sabia. Só havia um voo por semana, quando havia...",
diz Américo Martins.
Em Luanda, os dias de barco enchiam o cais, as manifestações em frente ao Palácio
do Governador eram diárias. "Queremos sair daqui. Ajudem-nos", diziam
os panos estendidos, escritos em inglês e francês.
Vários tentam a fuga por estrada, para sul, em direcção à fronteira do então
Sudoeste Africano, sob administração da África do Sul. No caminho, são
assaltados, as mulheres violadas. Quando conseguem chegar à fronteira, muitos
perdem-se no território desértico. Às vezes, são localizados por aviões de
reconhecimento sul-africanos.
No Huambo, decidem contactar consulados de países ocidentais. O Consulado dos
Estados Unidos responde que está pronto a auxiliar a comissão, desde que haja
um pedido formal por parte de Portugal.
É por essa altura que, em desespero de causa, o general Gonçalves Ribeiro, em
Lisboa, faz um telefonema para o embaixador norte-americano, Frank Carlucci.
Este promete o auxílio americano para a ponte aérea desde que seja efectuado
um pedido oficial do Governo português. Nessa mesma noite, o Presidente da República,
general Costa Gomes, entrega o pedido formal.
"Até ao início da ponte aérea, os portugueses não eram perseguidos, mas
depois começa a haver problemas", recorda Américo Martins. Marques Pinto
é suspeito de simpatias pela UNITA, começa a ser perseguido, e resolve fazer
as malas.
Passa as braçadeiras da Cruz Vermelha e da CNAD a Américo Martins, que fica
encarregado das listas de embarque, da guarda das bagagens e da passagem dos
comprovativos das entregas em dinheiro. E cada vez mais sozinho, que o
oportunismo não tem cor nem nação: "Vim a descobrir que alguns se
inscreviam no CNAD só para garantirem o lugar no avião", conta.
Com o aproximar da data da independência, começa a ficar inquieto com a própria
sorte. "O comandante militar da zona veio ter comigo, pedir-me que
continuasse a coordenar o auxílio". A. Martins tenta explicar que a situação
está a tornar-se insustentável, que já não há sequer gasolina para o carro.
"Então ordenou-me que ficasse. E eu disse-lhe que só lhe obedecia se me
desse umas divisas!".
Combina com o técnico das operações de terra destacado no aeroporto sair no
mesmo dia. "Ele ia saber com antecedência quando a ponte aérea fosse
terminar", explica.
Dito e feito. Regressa no último voo, na primeira semana de Novembro. Hoje, com
70 anos, perdida a esperança de recuperar a fábrica, tenta que lhe seja
contado todo o tempo de trabalho, e que a pensão passe a ser decente, que 27
contos...
Quando os ricochetes das balas do
princípio da guerra de Luanda começaram a faiscar nas paredes, o general Gonçalves
Ribeiro achou que era altura de pôr a família a salvo.
"Parecia uma festa. Os miúdos iam para a janela, ver aquilo", recorda
o general, que ainda se mexe na cadeira, vinte anos volvidos sobre os
acontecimentos daqueles meses dramáticos em Luanda.
"Eu também estava a acabar a comissão, mas resolvi ficar". E ainda
bem, que hoje Gonçalves Ribeiro, que viria mais tarde a ser alto-comissário
para os Refugiados, é lembrado com admiração e reconhecimento por aqueles que
com ele lidaram, por ter sido o homem de uma evacuação que, apesar de todas as
dificuldades, conseguiu tirar de Angola quase meio milhão de portugueses.
São tempos que o general preferiria, por pudor, não relembrar. Hoje, é a
construção de uma outra ponte, ou, como diz, "um outro pilar da mesma
ponte", que lhe ocupa os dias: a cooperação militar portuguesa com as
antigas colónias. "É notável que hoje isso se possa fazer sem
ressentimentos. Os meus interlocutores são homens que naqueles tempos estava do
outro lado. Há anos, em Maputo, encontrei o general Chipande (Alberto Chipande,
antigo ministro da Defesa de Moçambique), e ele mostrou-me um dedo a que
faltava uma falangeta. "Foi um desgraçado de um soldado português que ma
arrancou, com um tiro", disse-me. E eu respondi: "Ainda bem que era
mesmo um desgraçado, senão não estava hoje aqui a contar-me isso...".
Não quis contar o telefonema feito para o então embaixador norte-americano em
Portugal, Frank Carlucci, que, em desespero de causa, acabaria por fazer numa
noite de Julho de 75, e por onde havia de começar a ponte aérea para a
retirada dos portugueses de Angola.
Nem o que teve de aturar dos que fugiam como o diabo da cruz quando se levantava
o problema dos refugiados.
"Fiz nessa altura coisas que nunca imaginara vir a ver-me fazer",
acaba por lembrar, a custo, e sem dizer nomes. "Quantas vezes, acabadas as
reuniões, ia pelos corredores a dizer "Mas, meu tenente-coronel, é
preciso fazer isto e isto", e acabava a empurrar as portas de gabinetes
para que não lhas fechassem na cara.
"Era tabu. O problema dos portugueses em Angola não existia. Ninguém aqui
queria ouvir falar disso", conta.
Em Angola, era o salve-se quem puder, o cada um por si. "Lembro-me de ter
visto juízes, professores universitários, a manobrar guindastes no porto de
Luanda. Quando os guindastes deixaram de funcionar, era com os paus de carga dos
navios. Punham o que era seu a salvo, como podiam, e partiam para o aeroporto.
As pessoas tinham perdido todo o sentido de sociedade, só existiam elas próprias".
Lembra com mágoa a política de meter a cabeça na areia que era regra em
Lisboa, mas não tem dúvidas que fazer melhor era impossível.
"Catorze anos foram tempo mais que suficiente para os políticos terem
pensado numa solução para a guerra em África. Repare que Portugal foi a única
metrópole a manter uma guerra nas colónias por tanto tempo. Os franceses e os
ingleses tiveram problemas nas colónias, mas resolveram-nos rapidamente.
Portugal foi o único país que aguentou guerras daquele tipo durante tanto
tempo. Ainda hoje na OTAN há quem se admire de termos conseguido, nós, um país
tão pequeno, manter forças em três teatros de guerra durante tanto
tempo".
E com algo êxito, diga-se. "Na Guiné, a situação era má, em Moçambique,
o general Kaulza de Arriaga não estava a ter os resultados que tinha pensado,
mas em Angola a situação estava controlada. O Exército tinha parado as operações
em 1972. O governador podia viajar por todo o território. Mesmo de comboio,
podia ir de Vila Teixeira de Sousa, na fronteira, até Benguela".
Esses 14 anos de guerra são o triste recorde que, para o general, haveria de
estar na base do 25 de Abril.
"O país estava exangue. Repare, aos 18 anos, um jovem era mobilizado. Se
tivesse um irmão com 10 anos, oito anos depois a família ia viver o mesmo
problema". Problema que era a angústia de nunca se saber em que acabavam
as coisas, se era um dos que voltavam, direito ou como uma perna amputada, ou se
ficava por lá, com uma bala no corpo.
A 25 de Abril, foi como se um dique se tivesse rompido. E rapidamente houve quem
pretendesse ocupar o vácuo de poder em Angola. Estava-se em plena Guerra Fria,
e "os Estados Unidos, a Rússia, a África do Sul tentaram logo preencher
aquele espaço".
A Portugal, perdido naquele tabuleiro de parada alta de mais, restou tentar
manter-se à tona.
No meio do vendaval, o general assume perante si próprio um compromisso.
"Quem quisesse ficar ficava, mas era preciso que, quem quisesse vir,
pudesse vir". E ele próprio viria, por fim, a consciência mais tranquila.
Aqui, foi o que se sabe. Gente metida em tudo o que era sítio, hotéis a
abarrotar, com pouco mais que a roupa que traziam vestida, com uns trocos no
bolso. Como sempre, o mal de uns é o bem de outros, e, quem para tanto teve
artes, compôs a vida.
No fim da ponte aérea, os números oficiais registavam 228.471 pessoas trazidas
de Angola. De barco, mais 5.794. Ao todo, 234.265 pessoas. Esse número viria
depois a subir mais umas dezenas de milhar, quando foram recenseados todos os
regressados. Diminuídos uns quantos, que África só conheciam de fotografia,
mas aproveitaram para ter cama e roupa lavada durante uns tempos.
De trafulhices falou-se, à volta de uma centena de milhar de contos - coisa
pouca comparada com os 50 milhões de contos gastos, a maioria donativos
estrangeiros -, a Polícia Judiciária foi metida no IARN, mas não achou ponta
por onde pegasse.
Quando teve notícia do 25 de
Abril, António Conceição ficou satisfeito. Era tempo de Angola se
desenvolver, de as oportunidades serem para todos, e não apenas para as grandes
companhias do algodão e do café, protegidas pelo Estado. "O regime tinha
medo que Angola se desenvolvesse e acontecesse como ao Brasil, que se tornou
independente", explica.
Os negócios corriam bem, a empresa-mãe do Huambo já abrira delegações em
Luanda e Sá da Bandeira, hoje Lubango. Ali começara a trabalhar quando fora
para Angola, ido de Mansores, Arouca, em 47, terminado o seminário mas adiada a
ordenação, que para outras coisas o puxava a vida.
O sonho era o Brasil, mas sem serviço militar feito, nada feito. Para Angola,
era outra história, até empurravam, se fosse preciso.
Feita a tropa, emprega-se como agente de empresas de fornecimento e assistência
de máquinas para a indústria ligeira, coisa de padarias, serrações,
carpintarias, cerâmica. Depois, abre o próprio negócio, expande-o, que aquela
era terra de oportunidades.
Uma manhã de fins de Abril de 74 encontra-o à porta de um dos armazéns que
tinha no Huambo. No primeiro andar, morava um exilado checoslovaco. A tomada do
poder, após a II Grande Guerra, pelos comunistas, levara-lhe o pequeno
rendimento de uma herança, e à decisão de mudar de ares.
"Então, já sabe o que aconteceu em Lisboa?", pergunta, ansioso de
dar a novidade. O outro desencanta-o: "Não sabe o que é o comunismo! Não
aguento aquilo tudo outra vez! Ainda me suicido".
Mas António Conceição não desanima, era grande a esperança que o golpe em
Portugal resultasse em Angola em mais liberdade para trabalhar, para investir.
"Mas sempre brancos e negros irmanados", concluiu, após reunir o
pessoal (chegou a ter à volta de 400 trabalhadores). "Pus o problema
claramente, e a resposta que eles davam era: Patrão, nós queremos progresso
para Angola, melhores condições para os nossos filhos, mas sempre ligados com
vocês".
"Da maioria era essa a ideia. Não quer dizer que não houvesse uma minoria
que pensasse de maneira diferente", ressalva.
Com a assinatura, em Janeiro de
75, dos acordos do Alvor, começa o calvário de António Conceição.
"Houve o Alvor, Portugal reconheceu os três partidos, infelizmente cada um
com seu exército - não podia dar bom resultado - e nós tínhamos de os tratar
todos com respeito. Eu fui procurado por uns e por outros, para os ajudar, por
vezes até com mobílias, que também fabricava mobílias, ou com donativos, e
atendi-os a todos por igual".
Mas às tantas começa a ser apontado com o apoiante da UNITA. "Sabe porquê?
A certa altura, o comité da UNITA abordou-me, se eu deixava o dr. Savimbi
instalar-se na minha propriedade e na minha casa, que eu nessa altura já vivia
mais na cidade, tinha a casa disponível. Eu disse que sim, como diria a outro
movimento qualquer. E assim foi. O dr. Savimbi, com toda a delicadeza, veio com
o seu Estado-Maior ver as instalações, conversou comigo, perguntou de rendas,
como é que era... Eu disse que queria nada, não seria por muito tempo. Deixei
telefones, posto de rádio, instalações, mobílias. Instalou-se lá com o
secretário, o Nzau Puna, e eu tinha absoluta liberdade de trânsito quando
queria tratar dos assuntos da fazenda. Fui sempre respeitado, tanto por ele como
pelas tropas, e ainda aconteceu salvar a vida a outras pessoas nos controlos por
saberem da minha amizade com o dr. Savimbi".
Tudo muito bem, e assim continuou durante algum tempo. "Mesmo depois disso,
continuei a ajudar o MPLA e a FNLA quando me solicitavam qualquer coisa. Até o
Chipenda, veio uma vez pedir-me uma ajuda financeira e eu dei-a. Portanto, não
tinha partido, porque eram todos angolanos".
Mas não há bem que sempre dure. Chegam os cubanos, e António Pereira Conceição
passa a ser considerado apoiante da UNITA. "A Nova Lisboa, os cubanos ainda
não tinham chegado. Mas já estavam a desembarcar quando isto sucedeu. E tive
de vir embora, bem contra vontade".
Para mais, começava a faltar dinheiro para pagar ao pessoal. "Em grande
parte, já não trabalhavam, assinavam só o ponto. Não era possível
trabalhar, o que se produzia também não se vendia, não havia mercado. Onde eu
ainda ganhava algum dinheiro era na serração, a fabricar carroçarias para
camiões que iam para a África do Sul, e caixotaria para pessoas que vinham na
ponte aérea ou em barcos".
Mas mesmo isso estava no fim. "E eu sabia que ia acabar aquela fonte de
receita. Os próprios bancos já recusavam o pagamento de cheques, praticamente
estavam fechados. Era natural que o pessoal ficasse indisposto quando não
recebesse, e eu, que não tinha culpa nenhuma, ia ser a vítima".
Poucos dias antes de embarcar no
avião, António Conceição tenta salvaguardar o que podia. "Procurei
deixar o pessoal habilitado a continuar a administrar. Já nem havia notários a
funcionar, mas dei-lhes uma espécie de procurações particulares, dando-lhes
poderes para resolver todos os assuntos que pudessem surgir".
Aí começaram as suspeitas que estava para vir embora. "Um dia chego a uma
serração grande, numa propriedade que tinha lá em Nova Lisboa, e vejo o
pessoal reunido, o da serração e o da exploração agropecuária. Não me
assustei, confiava neles, eram umas largas dezenas de pessoas, e puseram-se à
minha volta. Então o que há, algum problema? perguntei. E a resposta era: Patrão
vai-se embora. Que não, que tinha passado aqueles papéis porque tinha de ir às
filiais de Sá da Bandeira e de Luanda, que os brancos que lá estavam tinham
ido embora, e tinha de ver como aquilo estava. Mas não os convenci".
No dia combinado, vem mesmo embora, a única coisa que trouxe foram os alvarás
das fábricas e os títulos da propriedade. "Não tive problemas, o
coordenador da ponte aérea era um amigo". Mesmo que não fosse, para António
Conceição aquilo funcionou bem. Bem de mais, suspeita mesmo. "Se calhar
para trocar os portugueses por outros vindos de Cuba, da RDA. Se não tivesse
havido tantas facilidades na ponte aérea, era natural que muito mais gente
tivesse ficado...", acha.
Uns tempos depois, recebe uma carta de um empregado, a dizer "Patrão, os
cubanos levaram tudo, dizem que era para as lojas do povo".
A única coisa que conserva, se os devolverem, são os terrenos. "Houve
nacionalizações, mas segundo me disseram uns pastores adventistas que lá
estiveram há uns dois anos, a propriedade não foi nacionalizada. Funcionava lá
um orfanato para crianças filhas de combatentes mortos na guerra, e estavam lá
umas moças holandesas, tudo muito bem conservado".
Contaram-lhe até que - "pedi para repetirem diversas vezes, que me
consolava a alma" -, quando procuraram saber da situação da propriedade,
perguntaram ao delegado do governo provincial, e o homem mostrou-se espantado
por ainda ser vivo, que as terras ainda eram dele, sim senhor, que, quando
quisesse, voltasse.
"Mas nunca me decidi a voltar porque tinha sido considerado apoiante da
UNITA, e tanto era da UNITA como de outro qualquer. Mas tenho esperança de um
dia ser uma pessoa desejada lá. E levar comigo empresários que já contactei,
para ajudar a reconstruir Angola".
Chegou cá com o que trazia no corpo. "Podia ter ficado num hotel em
Lisboa, como ficaram muitos, mas não estava no meu feitio. Vim parar aqui a
Arouca, que era a minha terra".
A casa do pai estava ocupada pelos irmãos, teve de procurar outro sítio.
Passados uns anos, a vida reorganizada, construiu casa. A princípio, foi difícil,
como para os que por andavam. "Era difícil arranjar emprego, fiz uns serviços
de borla, fazia relatórios para a Câmara a contar as carências da terra, a
fazer serviços para a comunidade...".
E aproveitou para estudar o terreno. "Vi que uma das riquezas da zona era a
floresta, e que os agricultores poderiam eles próprios intervir na transformação
da floresta, em vez de proporcionarem o lucro todo aos intermediários".
E, com o apoio das pessoas da terra, deitou mãos à organização de uma
cooperativa. "Já havia uma outra cooperativa, que tratava do leite, e eu
fomentei a criação de uma outra, chamada a CODA. Comprámos um terreno de
trinta mil metros quadrados, fizemos as infraestruturas, chegámos a ser
visitados por estrangeiros. O alto-comissário elogiou a orgnização dos
retornados de Arouca como um exemplo, porque não quiseram trabalhar isolados da
população".
Mas o banco que ia fazer o financiamento exigiu que o projecto fosse só de
retornados, não podia ter participação local. Ainda tentaram obter outro
financiamento, mas as coisas falharam. E começou a haver invejas, suspeitas,
houve até uma polémica no jornal da terra. A polémica foi resolvida,
"mas quebrou-se o encanto", conclui António Conceição.
Pouco antes da morte de Neto, em
1979, a Casa Branca pedia a Luanda que "esquecesse" a ajuda
norte-americana ao Zaire e à FNLA; Walker, Bzerzinski, McHenry e Moose previam
"para breve" a normalização das relações diplomáticas com o
regime de Agostinho Neto
Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos lançaram na aventura dos corredores
da Casa Branca alguns dos seus mais astutos negociadores. Por fim, em 1994, os
Estados Unidos da América do Norte abriram, em Luanda, oficialmente, a sua
representação diplomática, de facto. Quem foram os "homens de Neto"
para os contactos com a Casa Branca? O nome de Paulo Teixeira Jorge, antigo
ministro dos Negócios Estrangeiros de Angola, é indissociável dos esforços
de Agostinho Neto para convencer os americanos. O JN descobre, entretanto, que o
"velho" presidente tinha, "escondido", em Lisboa, na década
dos anos 70, um "emissário especial". Uma "arma secreta"
para "raids" à Casa Branca estratégica e tacticamente concertados,
em linha síncrona, com o MNE angolano: o dr. Arménio Ferreira. Médico
radicado em Lisboa. Antigo companheiro de Agostinho Neto nos bancos escolares e
na Casa dos Estudantes do Império. Arménio Ferreira sentou-se, em Washington,
credenciado por Neto, de frente para Richard Moose, Donald McHenry, James Overly,
Zibgnew Bzerzinski, Walker, Funk, Alan Hardy, entre outros pesos pesados, médios
e leves da política dos "States" para a África.
Arménio Ferreira, cardiologista, não é diplomata de carreira, nem sequer
"político encartado". O seu estatuto confunde-se com afectos, coerências
fecundas, sentido imperdível de constância na lealdade e na solidariedade. Não
fosse o dr. Arménio tão modesto, tão avesso à pimponice mediática, e nós,
os repórteres, dele tiraríamos, seguramente, revelações interessantíssimas
sobre os "labirintos" e os muitos protagonistas da história de Angola
e do MPLA. O que mais contraria Arménio Ferreira é o facto de ele não ter
conseguido, ainda, em foro desapaixonado, divulgar o seu pensamento sobre o
papel e a obra de Agostinho Neto. Quando o saudoso presidente angolano
considerou útil e conveniente a colaboração de Arménio nas árduas conversações
com os americanos, o médico não hesitou. Independentemente das circunstâncias,
Arménio Ferreira respondia "presente!".
As incursões mais "trepidantes" deste emissário especial do
presidente Neto, junto da Casa Branca, tiveram lugar em 1979. Isto é, pouco
antes da morte de Agostinho Neto. Foi quando o dr. Arménio Ferreira, nos dias
29 de Julho e 9 e 16 de Agosto, andou numa verdadeira farândola entre reuniões
e mais reuniões na Casa Branca e com os homens do Departamento norte-americano
de Estado. Os altos funcionários encarregados, principalmente, dos Assuntos
Africanos: Richard Moose, Donald McHenry, Walker, Alan Hardy, e outros. A sessão
que mais terá marcado Arménio Ferreira foi, provavelmente, aquela segunda
parte das conversações de 9 de Agosto (1979), por volta das 18 horas. Quando
Arménio Ferreira, em representação da parte angolana, discutiu com uma delegação
norte-americana da Casa Branca encabeçada por N. Walker. Este, investido das
duplas funções de expert em Assuntos Africanos e representante governamental
norte-americano para o "dossier Angola", estava acompanhado, também,
por Funk, secretário para a Segurança da Casa Branca.
Dessa reunião, a 9 de Agosto, no
Departamento norte-americano de Estado, guarda o dr. Arménio Ferreira uma
impressão certamente memorável. No período da manhã, ele trabalhara com um
"pesado" da Casa Branca, Zibgnew Bzerzinski (National Security). O
americano quis saber, de Arménio Ferreira, se o presidente Agostinho Neto
"poderia governar sem os cubanos". O enviado angolano sorriu-se e
aproveitou para lembrar aquilo que, de facto, mais embaraçava a Casa Branca:
"Os cubanos só estão em Angola para combater e repelir a invasão
sul-africana". Dir-se-ia que os norte-americanos, prestes a aceitarem como
irreversível a "normalização" das relações com Angola (1979), não
perdiam ensejo de agitar, mais uma vez, o fantasma do "comunismo".
Bzerzinski disse mesmo ao dr. Arménio Ferreira, enviado de Agostinho Neto, que
a URSS era o "suporte", em "todo o mundo", de vários "estados-marionetas".
Entrementes, o norte-americano Funk, da "National Security", tem uma
explanação no mínimo premonitória: "Actualmente, os Estados Unidos não
auxiliam quaisquer organizações anti-angolanas". E justificou: "Se o
fizemos no passado era, somente, porque essas organizações apresentavam-se com
uma máscara anti-comunista, dizendo-se com forte implantação junto das populações
angolanas".
Finalmente, o próprio Bzerzinski
foi categórico diante da expectativa crescente de Arménio Ferreira naquela
reunião em Washington: "Desejamos e vamos normalizar as nossas relações
diplomáticas com Angola. Julgo que Angola também o deseja". Mais tarde,
num breve esboço elaborativo dos seus registos, o dr. Arménio Ferreira tomou
nota. "Quanto às palavras de Bzerzinski, interpreto-as essencialmente como
um recado ao presidente Neto. No sentido de que as relações USA/Angola são
provavelmente desejadas, neste momento, pela Casa Branca". E, do seu próprio
punho, acrescentava Arménio Ferreira: "Bzerzinski, nesse aspecto, foi
claro, na qualidade de único dirigente norte-americano que falava como quem tem
autoridade para o fazer".
E, aqui chegado, o dr. Arménio particularizava, da mesma entrevista com aquele
alto funcionário da administração americana: "Quando o intérprete (F.
de Rivera) me falou em "more normal relations between the two states",
eu interrompi-o. E disse-lhe que o conselheiro político do presidente Carter
havia falado, sim, em "normal relations". Bzerzinski concordou e
confirmou, inteiramente, a minha versão, em inglês".
Arménio Ferreira rematava, assim, as suas apreciações ao perfil de Bzerzinski:
"Elemento considerado como da linha dura da Casa Branca, ele foi de uma
correcção comedida mas, ao mesmo tempo, simpático e frio no raciocínio. Como
quer que seja, foi o único que disse claramente que os Estados Unidos da América
do Norte iriam estabelecer relações diplomáticas com Angola. Não mencionou,
todavia, qualquer data presumível".
Paulo Jorge, antigo ministro
angolano dos Negócios Estrangeiros,
"encostou" Chester Croker e ouviu "promessas" de Cyrus Vince...
Paulo Teixeira Jorge foi o carismático ministro angolano dos Negócios
Estrangeiros durante a presidência do não menos carismático António
Agostinho Neto. Ele tem, dos revoluteios da política externa dos Estados
Unidos, um conhecimento quase visceral. Quanto ao "dossier" das relações
entre Luanda e Washington, Paulo Jorge conhece todas as sofistarias da "máquina"
da Casa Branca.
Em Luanda, Paulo Jorge recebe, pela segunda vez no espaço de 48 horas, o
enviado do JN. Especialmente para revisitarmos algumas "páginas" do
grande livro negocial: Luanda versus Washington.
JORNAL DE NOTÍCIAS - Quais foram os negociadores norte-americanos que revelaram
maior apego à linha dura da Casa Branca?
PAULO JORGE - Para começar: a posição da Casa Branca, se bem que
eventualmente matizada, é uniforme. Eu dialoguei, por exemplo, variadíssimas
vezes, com o então subsecretário de Estado, Chester Crocker. Claro que a posição
dele era a posição do Governo norte-americano! Foi precisamente ao Chester
Crocker que eu disse, num dos encontros, que os Estados Unidos deveriam
reconsiderar sobre a "paranóia" anti-Angola e anti-Cuba. Em dado
momento, o Chester Crocker faz avançar o tão falado "linkage":
interligar as questões referentes a Angola, presença cubana e Namíbia. E, em
1982, num comunicado conjunto Luanda-Havana, expressa-se a total rejeição de
semelhante "linkage"! Este era um tema obrigatório nas minhas deslocações
às Nações Unidas, na época. Já com Ronald Reagan na presidência dos
Estados Unidos.
JN - O Paulo Jorge utilizou o termo "paranóia" somente nas conversações
com Chester?
PJ - Utilizei-o também num discurso que proferi na Assembleia Geral das Nações
Unidas.
JN - Nunca conversou com o "moderado" Walker?
PJ - Conversei com ele, uma vez, no âmbito das consultas bilaterais. Tive também
encontros com o Cyrus Vance no período em que se encontrava Jimmy Carter na
presidência dos Estados Unidos. Conversei, também, com o Alexander Haig. Com o
Shultz, etc, etc, etc.
JN - Na altura do falecimento do presidente Agostinho Neto estariam, já, a
desenhar-se perspectivas fortes de entendimento com os Estados Unidos?
PJ - Recordo que em 1978...1979, numa das minhas deslocações a Nova Iorque
para participar na Assembleia Geral das Nações Unidas, eu tive um encontro com
o Cyrus Vance, secretário de Estado norte-americano. E, então, abordámos sim
a problemática do reconhecimento da República Popular de Angola pela
Administração dos Estados Unidos. Estavam os democratas na Casa Branca,
portanto. E o Cyrus Vance deu a entender que estaria em curso um processo
tendente ao reconhecimento e, naturalmente, à normalização de relações
diplomáticas com Angola. Só que, entretanto, em 1980, foi eleito o republicano
Ronald Reagan...! E tudo se desmoronou. Foi tudo por água abaixo. Um dos
primeiros passos de Ronald Reagan, em 1981, na Administração norte-americana,
consistia na revogação da chamada "Emenda Clark". Que impedia o
Governo dos Estados Unidos de ajudar os "movimentos" de "oposição"
aos regimes africanos. Já durante a campanha eleitoral dos republicanos se
perfilava, e preconizava, uma ajuda à UNITA!
Walker, encarregado
norte-americano do "dossier Angola", queixava-se da sabotagem
articulada por "comissões,
senadores, deputados e uma certa Imprensa ávida de deixar mal vistos os amigos
da causa angolana"...
No interior da Casa Branca, durante a presidência angolana de Agostinho Neto, o
poder democrata todos os dias traçava "fronteiras" entre os políticos
hesitantes, às vezes mesmo contraditórios, e os políticos decididos. Um dos
quais, Walker, não hesitou
em mandar dizer ao presidente Neto: "Olhe que não é fácil, aqui em
Washington, a vida de quem se mostra favorável a Angola!". O enviado
especial de Agostinho Neto (o médico Arménio Ferreira) percebeu, por outro
lado, que os americanos já tinham como irreversível a opção de normalizar as
relações diplomáticas com o regime de Neto. O líder angolano morreu, pouco
depois, em Moscovo, vítima de cancro no pâncreas.
O norte-americano Zibgnew
Bzerzinski, alto funcionário da Casa Branca (conselheiro para a Segurança do
Estado), chegou a ter este desabafo diante do dr. Arménio Ferreira, enviado de
Agostinho Neto: "Considero que, realmente, Angola e o seu presidente têm
conduzido uma política independente, e não desejamos que Angola seja base de
um novo conflito entre Leste e Oeste". Arménio ficou, por momentos, a
contemplá-lo, e Bzerzinski prosseguiu nestes termos: "Queremos uma Angola
livre e independente. E os Estados Unidos nunca intervirão, nós nunca
interferiremos com o regime angolano. Seja qual for esse regime, como é timbre
da nossa política na África Austral. Queremos a estabilidade na zona". E,
por último, Bzerzinski proferiu a célebre assertiva: "Desejamos e vamos
normalizar as nossas relações diplomáticas com Angola. Julgo que Angola também
o deseja". Corria o Verão de 1979.
O ambiente, rememora o dr. Arménio Ferreira durante a conversa com o JN, era de
manifesta cordialidade. Tanto assim que Bzerzinski tivera, até, um gesto
particularmente simpático: manifestou a Arménio a sua preocupação pelo
estado de saúde da esposa do médico angolano, na altura melindroso. Estava-se
a 9 de Agosto de 1979.
Arménio Ferreira sentia-se, de facto, agradavelmente impressionado com as
"performances" dos seus interlocutores.
Ele gostou, especialmente, das posturas dialogais de Walker e de Richard Moose.
"Os mais liberais do Departamento de Estado e da margem esquerda do Partido
Democrático", reitera Arménio Ferreira. Também McHenry, Donald McHenry,
do "dossier" da Namíbia e embaixador na ONU, impressionou fortemente
o emissário especial do presidente António Agostinho Neto.
No entender de Arménio Ferreira,
o poder democrata norte-americano "tropeçava" nos remanescentes da
mentalidade conservadora adjutória das políticas republicanas - o
"inferno" para as aspirações dos países do Terceiro Mundo. Donald
McHenry, que lidava fluentemente com o "dossier" da Namíbia (a SWAPO,
na altura, sofria a "bom" sofrer às mãos da Infantaria do "apartheid"),
tratou Arménio Ferreira com excepcional afectividade. Arménio matutava para os
seus botões: "Este americano é, talvez, mais "formalista" que
Walker, ou mesmo Richard Moose, mas é certamente o mais afectuoso de
todos". Mc Henry sem dúvida que convenceu Arménio da sua "muita
sinceridade". Arménio considerava-o "anti-sul-africano", logo,
"anti-apartheid". Além disso, o enviado de Agostinho Neto estava
convencido de que Donald McHenry iria suceder a Andrew Young como embaixador
norte-americano nas Nações Unidas.
Nesse mesmo dia (9 de Agosto de 1979), ao cair da tarde, em Washington, o emissário
especial do presidente Neto ouviu do norte-americano Walker (subsecretário de
Estado para os Assuntos Africanos) os mais rasgados elogios. Walker destacou,
vivamente, "a eficiência do trabalho" de Arménio Ferreira em prol da
aproximação Washington-Luanda. Walker teria dito, entrementes: "Eu não
vou repetir aqui as afirmações há pouco proferidas pelos senhores Bzerzinski
e McHenry. Quero, isso sim, afirmar que devemos esquecer, Angola deve esquecer a
ajuda que os Estados Unidos prestaram, em tempos, à República do Zaire e à
FNLA".
Walter, que sabia ser insinuante, aproveitou para lembrar que ele próprio fora
o arquitecto, no Departamento norte-americano de Estado, da aproximação
Angola-Zaire.
Em Luanda, o enviado do JN ouviu, a propósito, Lopo do Nascimento, actualmente
secretário-geral do MPLA, outrora primeiro-ministro durante a presidência do
dr. Agostinho Neto. De facto, Lopo deixou bem claro que Donald Mc Henry foi
pedra fulcral nas diligências que levaram à "normalização" das
relações entre Luanda e Kinshasa. Lopo não falou de Walker. Nessa altura
(1977-1979), foram realmente frequentes os encontros de McHenry, inclusivamente
em Luanda, não só com Lopo do Nascimento mas, igualmente, com o próprio
presidente Agostinho Neto. Falta saber, contudo, se, naquele tempo, a
"normalização" teria sido pensável e realizável sem a activa
disponibilidade do então presidente do Congo-Brazaville, Marien Nguabi. Com
Walker ou sem Walker.
Como quer que seja, ninguém duvida, hoje, da importância que as diligências
de Mc Henry, na África Austral, chegaram a conhecer no tocante ao arrefecimento
das fricções entre Luanda e Kinshasa. A conclusão a extrair é a de que
McHenry foi decisivo no terreno e que Walker tê-lo-á sido no interior mais
profundo do Departamento norte-americano de Estado.
A verdade é que Arménio
Ferreira, o emissário especial que Agostinho Neto, discretamente, accionava a
partir de Lisboa, ficou detentor de uma experiência absolutamente singular. Sem
ser político, ou diplomata, de carreira. Arménio Ferreira sentiu, por dentro,
o pulsar das "dúvidas" e das "certezas" norte-americanas.
Em dado momento das conversações nesse 9 de Agosto de 1979, Walker disse ao
enviado de Neto: "Peço-lhe que diga ao presidente Neto que não é fácil,
em Washington, a vida de quem é favorável a Angola!".
Uma declaração, no mínimo, electrizante. Historicamente significativa de
quanto, nos Estados Unidos da América do Norte, Angola (a Angola dos tempos de
Agostinho Neto), "perturbava" a terrível máquina dos "States".
Walker (da Secretaria de Estado para os Assuntos Africanos) pediu, de facto, a
Arménio Ferreira, que fizesse o dr. Neto compreender esse drama: "Diga ao
presidente Agostinho Neto que custa muito trabalho, em Washington, sustentar
posições pró-Angola. Porque é preciso lutar contra burocracias internas.
Contra a má vontade das várias comissões, de vários senadores e deputados.
Contra uma Imprensa sempre ávida de assuntos e situações que possam colocar
mal os amigos de Angola!".
Desabafo insinuante de Donald
McHenry: "Eu tenho um fraco por Angola,
sou o americano que mais vezes foi a Angola depois da independência..."
Quando o dr. Agostinho Neto se evadiu da prisão, em Portugal, lembra Arménio
Ferreira, "eu mesmo fui buscá-lo à Praia das Maçãs". Para dar
continuidade à operação que levaria Neto para o exterior, até à sua fixação
em Kinshasa, República do Zaire. Aconteceu em 1961. Dezoito anos mais tarde,
Agostinho Neto foi "buscar" Arménio Ferreira a Lisboa para seu emissário-estratega
nas conversações com os americanos. Desconfiados do "comunismo" de
Neto (e do MPLA).
O que o dr. Arménio constatou, face às declarações dos seus interlocutores,
só poderia ser gratificante para António Agostinho Neto, chefe do Estado
angolano. Donald McHenry, que sobraçava, na Administração norte-americana, o
"dossier" da Namíbia, disse a Arménio ter gostado "imenso"
do acolhimento que lhe havia sido dispensado, em Luanda, à sua chegada.
"Instalaram-me numa casa maravilhosa", lembrou o alto funcionário de
Washington. "Encantou-me aquela vista de sonho da baía de Luanda",
disse ainda McHenry com manifesto enlevo.
Uma particularidade, que Arménio Ferreira sublinha: "As conversações,
curiosamente, realizaram-se, no Departamento norte-americano de Estado, nos
gabinetes de Andrew Young, precisamente um dia antes de este ter apresentado a
sua demissão ao presidente Jimmy Carter".
Era a tarde de 16 de Agosto de 1979. Conversou-se muito sobre a tormentosa questão
da Namíbia. E, em dado momento, Donald McHenry teve este desabafo: "É
justo salientar a actividade construtiva do presidente Agostinho Neto em relação
ao problema da Namíbia! Conheço o resultado das negociações com o senhor
Kurt Waldheim, secretário-geral das Nações Unidas. E sei também que o senhor
Kurt Waldheim ficou com uma excelente impressão do presidente Agostinho
Neto!"
Donald Mc Henry foi mais longe,
ainda, no reconhecimento da acção do presidente angolano: "O Governo dos
Estados Unidos da América do Norte considera muito a acção construtiva do dr.
Neto, relativamente à resolução do problema da Namíbia. Sem essa ajuda
angolana a resolução seria, certamente, impossível!". E o alto funcionário
da Casa Branca não se dispensou sequer de vaticinar: "Desejo que,
entretanto, Angola ultrapasse os seus problemas internos, para que o seu
presidente possa, enfim, dedicar-se profundamente à reconstrução económica e
social do país". McHenry quis reconhecer, também, por outro lado, que o
presidente Neto "falara grosso" para a SWAPO ter mais cuidado com as
suas "movimentações no território namibiano".
No final das conversações, era ainda McHenry a dizer para Arménio Ferreira:
"O presidente Carter e o secretário de Estado, Cyrus Vance, estão ao
corrente de todas estas conversações e apreciam muito a colaboração que o
dr. Arménio Ferreira tem prestado nesse sentido". E, depois, de regresso
à "intimidade", McHenry deixou escapar: "Eu tenho um fraco por
Angola. Provavelmente, eu sou o americano que mais vezes foi a Angola depois da
independência. Já causa inveja a minha resistência de "globetrotter"
aéreo... mas, do que eu realmente gostaria, se entretanto não morrer, era de
ver normalizadas as relações entre o meu país e Angola"!
Num gesto fagueiro e cortês, Donald McHenry e Richard Moose enviaram telegramas
e ramos de flores à esposa de Arménio Ferreira, entretanto internada numa clínica
norte-americana.
(Dossier do JORNAL DE NOTÍCIAS)