20-2-2018 

 

 

Francisco Pinto Balsemão, por Joaquim Vieira - Edições Planeta

 

 

   

NOTA DE LEITURA

 

Gostei muito deste livro e tive imenso prazer com sua leitura. O autor demonstra ter respeito por Francisco Pinto Balsemão, apesar de este ter sido severo para com ele.

Não acho que o autor tenha espreitado demais pelos buracos das fechaduras, como disso foi acusado. Parece-me que certamente não inseriu no livro todas as aventuras galantes do biografado.

Um grande mérito do livro é referir as pessoas que contaram para acção política nas jogadas em que também entrava Balsemão. É assim que o livro tem óptimos retratos de figuras essenciais como foram Marcelo Rebelo de Sousa e Cavaco Silva. Possivelmente um certo respeito à actual primeira figura da Nação coibiu o autor de ir muito longe no que toca a Marcelo. Já em relação a Cavaco Silva, há lá um bom número de pontos nos ii. Escalpeliza as Memórias políticas, sobretudo as convenientes omissões, o que é bom porque a Imprensa continua a adular a figura como fez o próprio Expresso com a entrevista publicada no número de  17-2-2018. Já era tempo para que se deixassem disso e se dedicassem a enumerar as fraquezas do personagem, um trabalho começado por Fernando Lima, mas ainda com luvas brancas.

Mas muitas outras personalidades são mencionadas como se verifica facilmente pelo Índice Onomástico.

Quanto aos seus méritos como patrão do jornal Expresso seria  algo difícil apreciar todos os jornalistas, colegas do autor, pelo melindre que isso representaria. Mas constata-se que algumas escolhas representaram um grande falhanço.

No entanto,  o cômputo global da vida do Expresso é realmente muito positivo.  

 

 

 

29/08/2017  

 

Joaquim Vieira: Balsemão achava que Marcelo era menos perigoso dentro do Governo do que como director do Expresso

 

JOANA MARQUES ALVES E VÍTOR RAINHO 

Saiu em rutura com o Expresso há anos e agora desafiaram-no a fazer uma biografia de Francisco Pinto Balsemão. Aceitou e fez um retrato de ‘corpo inteiro’.

Por que se lembrou de escrever esta biografia?

Não me lembrei, foi a editora que me convidou. Não me teria ocorrido fazer a biografia de Balsemão, mas foi-me lançado o desafio. Ainda hesitei um bocado, de certa forma, sou protagonista desta história – estive no Expresso, saí em conflito. Mas após alguma reflexão achei que poderia ter o distanciamento e a isenção necessárias para fazer a biografia.

As outras biografias que fez foram ideia sua ou também surgiram a partir de convites?

A do Mário Soares também foi proposta pela editora. A do Álvaro Cunhal, que é mais uma fotobiografia, também foi, se bem me recordo, uma proposta. O que fiz pela minha iniciativa foi uma fotobiografia do Salazar – propus ao Círculo de Leitores em 2000 ou 2001, no seguimento de um trabalho que estava a fazer, a História de Portugal do século XX através da imagem. Depois decidiram fazer 10 fotobiografias e dirigi essa coleção. Dirigi ainda mais oito fotobiografias. A partir daí, fiquei uma espécie de biógrafo encartado. As editoras como reparam nisso vão-me convidando para fazer biografias, mas não sou eu que as proponho.

Quais são as parecenças entre Balsemão, Soares e Cunhal?

Balsemão tem mais coisas parecidas com Soares do que com Cunhal. O líder comunista tinha aquela visão espartana do exercício da vida pública, enquanto Balsemão e Soares tinham uma visão mais hedonista – a política é para exercer, mas não como uma obrigação ou um dever, mas com gozo. Se não der gozo, não vale a pena exercer a política. Além disso, tinham uma tolerância e um espírito de abertura que Cunhal não tinha, era muito mais inflexível em tudo. Soares e Balsemão também partilhavam o sentido da negociação do compromisso. Isso é um elemento muito importante para chegarem a acordo para a revisão constitucional de 1982, que é o contributo mais importante que Balsemão dá à política em toda a sua carreira. Esta revisão abre o caminho para a organização do Estado português como um estado moderno, numa Europa comunitária. Se essa revisão constitucional não tivesse ocorrido, Portugal não tinha condições para entrar na União Europeia.

E ambos se dedicavam aos prazeres da vida…

Isso todos têm, o Cunhal também tinha. Se esmiuçarmos, arranjamos sempre histórias que fogem um bocado àquilo que é a visão convencional do casamento. O Cunhal nunca se casou, mas separou-se da mãe da filha para ir viver com a cunhada, uma história que foi escondida no meio do partido durante muito tempo, mas que acabou por vir a público. Balsemão namorou com a futura cunhada antes de casar com a irmã dela. Ou seja, ambos tiveram relações com duas irmãs.

Nesta biografia, o que vamos ficar a saber sobre Balsemão que ainda não sabíamos?

Além da vida profissional, são abordados aspetos da vida privada. Quando faço uma biografia faço um retrato de corpo inteiro, escrevo sobre tudo e não falo apenas sobre a vida pública. Balsemão tinha um estilo playboy, teve relações com inúmeras mulheres dentro e fora do casamento. Um amigo dele disse-me que Balsemão não é uma pessoa imoral, mas sim ‘amoral’, que não tem moral. Nas relações com as mulheres não havia limites. Mas a história mais complicada e que mais o afeta é a do filho que nasceu fora do casamento, que ele enjeitou. Primeiro quis que a mulher abortasse, mandou-a para a Suíça com as coisas todas pagas, mas ela não fez o aborto e voltou a Portugal para ter a criança. Ele ainda quis que ela fosse a Londres fazer o aborto e colocou a hipótese de arranjar uma médica para o fazer em Portugal, mas ela quis ter o filho. Esta mulher ainda tinha uma relação familiar com o Balsemão, eram primos em segundo ou terceiro grau. Ela teve o filho e Balsemão não quis que dissesse que era filho dele, não quis que ele se chamasse Francisco, fez uma grande pressão e negou sempre que fosse filho dele. Meteu o caso em tribunal e foi perdendo: perdeu primeiro no tribunal de menores, depois na 1.ª instância, depois na Relação, depois recorreu para o Supremo e perdeu. No Supremo ainda recorreu para o Pleno do Supremo. Este processo demorou cerca de sete anos.

A sentença do Supremo é muito posterior ao 25 de Abril, embora se tenha iniciado antes deste momento. É condenado e obrigado a aceitar a paternidade, mas só vê o filho pela primeira vez quando ele tem 17 ou 18 anos.

Como foi o primeiro encontro?

Escrevo sobre isso, mas não sei pormenores. Sei que a conciliação foi instigada pela Tita [mulher de Balsemão] e que acabou por existir um bom ambiente familiar – o rapaz passou a fazer parte do seio familiar [mais tarde viria a ser administrador do grupo Impresa].

Não existe muito a tradição das biografias em Portugal. Acha que será bem recebida?

Quando escrevi a de Mário Soares ele ficou zangado comigo, telefonou-me a insultar-me praticamente, a perguntar se eu não sabia que ele era um homem casado. Isto é como as biografias dos reis e das rainhas, as biografias também falam dos amores vividos. A diferença é que ele não foi um rei, mas um Presidente.

Estamos a falar de figuras públicas e estas, sobretudo quando tiveram cargos notórios, estão sujeitas a um grau de escrutínio que quem não exerceu esses cargos não tem. É o que acontece também no jornalismo – a própria jurisprudência quando recebe queixas por invasão da vida íntima de figuras públicas por parte de jornalistas, esses processos esbarram nos tribunais dos direitos do Homem, porque a jurisprudência vai no sentido de dar o direito à opinião pública de conhecer esses aspetos mais privados das figuras públicas. E aqui é o mesmo caso. Esta situação está amplamente documentada nos tribunais, está lá tudo escrito, incluindo o facto de ele querer que a mulher com quem teve uma relação abortasse. Está até documentado que ele arranjou outros homens para tentar provar que ela era promíscua e que o rapaz podia ser filho de outro – na altura não havia testes de ADN, por isso não se podia provar cientificamente a paternidade. Sabe-se também que Francisco Sá Carneiro foi testemunha de defesa de Balsemão e foi a tribunal depor.

Nesta biografia fala sobre as mulheres de Balsemão?

Não me refiro a elas em particular, acho que estaria a expor demais estas pessoas. Embora ele seja uma figura pública, elas continuam a ter direito à sua vida íntima. A não ser que tenham sido casos públicos, não faz sentido estar a mencionar nomes. Falo sobre as secretárias, o Balsemão era especialista em secretárias.

Mas quando fala em secretárias está a colocar todas em causa...

Estão todas sob suspeição, mas não acho que tenham sido todas (risos).

Após o lançamento do livro, está preparado para um processo?

Porquê? Não vejo razão para isso. O livro foi lido pelos advogados da editora e não encontraram matéria que pudesse levar a isso. Na altura houve coisas que vieram a público. Houve até uma notícia sobre uma secretária que era para ser publicada no Tal & Qual.

Como foi a infância e a adolescência de Balsemão?

Era um menino bem, vem de uma família rica, estava num liceu de famílias mais ou menos bem do ponto de vista material, no Pedro Nunes, em Lisboa. A certa altura, entraram naquele liceu pessoas que vinham do Gil Vicente, que pertenciam a outro meio social. Falei com alguns desses antigos alunos, que me disseram que havia uma distinção de classes, uma certa casta não assumida.

Era uma pessoa que, desde muito cedo, gostava de ir para a praia do Tamariz meter-se com as jovens estrangeiras. Quando foi para a Faculdade de Direito, era dos poucos que ia de carro para as aulas. Antes de ter carro teve uma scooter, com a qual sofreu um acidente e, por causa disso, esteve preso durante um dia.

Porquê?

Porque provavelmente foi considerado culpado do acidente e foi detido. Aquilo meteu advogados e a prisão foi considerada ilegal e foi solto no fim desse mesmo dia. O acidente ocorreu em frente ao Hospital de São José, perto do local onde era a Faculdade de Direito naquela altura. Ia ele e um amigo à pendura. 

O que o surpreendeu mais no início de vida de Balsemão?

A transformação que ele faz a partir da esfera salazarista, muito conservadora, para uma área mais liberal. Essa evolução dá-se a partir dos anos 60. Tem muito a ver com a sua passagem no Diário Popular. Ele não era o diretor, mas na prática era como se fosse, era ele que dirigia o jornal, e por isso tinha uma luta diária com a censura. Além disso, convivia com jornalistas que eram da oposição, que partilhavam novos pontos de vista. Creio que isso terá sido muito importante para a sua evolução.

Depois aceitou o desafio de Marcelo Caetano: pertencer a um grupo que procurava fazer com que o regime evoluísse para algo democrático.

A primeira namorada teve importância na vida de Balsemão?

Foi Helena Vaz da Silva, uma mulher com quem, segundo um amigo da altura, teve uma relação que não durou muito tempo. O Balsemão mais tarde dirá, sem dizer o nome da pessoa, que teve uma namorada que contribuiu um pouco para o início da formação da consciência política dele. Eu presumo que se estivesse a referir a ela. No entanto, acho que a consciência política apareceu muito mais tarde.

Essa consciência surge em que altura?

Ele passou pela tropa, foi para a Força Aérea e torna-se ajudante do Kaúlza de Arriaga, que era coronel na altura, secretário de Estado da Aeronáutica, e era um salazarista convicto. Quando está na Força Aérea torna-se chefe de redação do jornal que funciona ao serviço dos interesses daquela instituição. Isto acontece quando começa a guerra colonial em Angola e eram publicados textos totalmente a favor do regime. Depois de sair da Força Aérea, faz um estágio em advocacia com outro grande apoiante do regime, que foi seu professor em Direito, Pedro Soares Martinez. Só depois é que vai para o Diário Popular, onde se dá uma grande transformação.

E nessa altura começa a defender a abertura do regime?

Ele era pouco interventivo. Só depois é que Marcello Caetano o convida para deputado. Ele estava no Diário Popular e o Marcello estava consciente de que era importante ter apoios nos media. Ele achava que o Balsemão podia apoiar a política que defendia. Marcello encarrega o Melo e Castro de criar a lista daquilo que mais tarde deu origem à Ala Liberal. Quando a lista foi apresentada a Marcello, este propôs mais dois nomes: o de Balsemão e o de Mota Amaral. Era importante ter o apoio da comunicação social, mas a verdade é que, nessa altura, Marcello Caetano enganou-se, porque Balsemão acabou por virar-se contra ele.

Em 1973 forma o Expresso, mais um sinal de oposição.

Sim, muito forte. Até porque o Expresso tem uma luta constante contra a censura e o Marcello fica furioso com a abordagem do jornal. Ao ter criado o Expresso – e mais tarde a SIC –, Balsemão ganha um papel muito importante na história dos media. São dois órgãos de informação fundamentais. Por estas vias, Balsemão contribui para a formação da opinião pública em Portugal, que era uma coisa que não existia: as pessoas viviam em carneirada, não tinham pensamento próprio, e o Expresso contribuiu muito para acabar com isso, daí ter tido muito sucesso na altura. Mais do que as expectativas que o próprio Balsemão tinha.

Com a SIC aconteceu a mesma coisa: na altura, a opinião era condicionada pela RTP. [A criação da estação privada] acaba por estar relacionada com a ideia de ‘libertação da sociedade civil’, uma expressão que Balsemão estava sempre a usar.

E o que acontece após o 25 de Abril?

Balsemão não tem um grande papel. Não sei se é por causa disso, mas ele está muito envolvido no processo de paternidade e acaba por assumir um certo low profile. Ele está envolvido no lançamento do PPD, futuro PSD, mas o líder é claramente Sá Carneiro. Mesmo quando há contestações internas, ele nunca ambicionou assumir a liderança. Chegou a subscrever as Opções Inadiáveis,  um grupo de oposição a Sá Carneiro, que contava com Sousa Franco e Magalhães Mota. No entanto, ao fim de dois meses, não sei que volta lhe deram mas acabou por sair.

As Opções Inadiáveis, que começou por ser só uma contestação interna às políticas de Sá Carneiro, tornou-se a partir de certa altura mesmo um grupo – tinham mais de metade do grupo parlamentar do PSD. Acabaram por dar origem à ASDI – Ação Social Democrata Independente – e concorreram às eleições de 80 contra Sá Carneiro em aliança com Mário Soares – chamava-se Frente Republicana e Socialista. Balsemão conseguiu tirar o cavalinho da chuva, ficou muito discretamente ao lado de Sá Carneiro e quando este ganhou as primeiras eleições com a coligação AD (Aliança Democrática), em 1979, pôs Balsemão no Governo.

Ele tinha uma legitimidade histórica, era um dos três fundadores do partido, em 74. Sá Carneiro decidiu ir buscá-lo porque, como Ângelo Correia lhe disse, essa união era importante: ‘Você tem ali pelo menos uns 7% de votos de Cascais, Estoril até Lisboa. Isso pode fazer a diferença para ganhar as eleições’. Sá Carneiro foi mesmo buscá-lo, mas Balsemão não estava muito satisfeito. Esteve no único Governo de Sá Carneiro, mas houve eleições no fim desse ano – as eleições tinham sido intercalares e, ao fim de um ano, tinha sempre de haver as gerais – e, nessa altura, Balsemão disse que não queria ficar no Governo, queria dedicar-se outra vez ao Expresso.

O Joaquim Vieira entrou no jornal nessa altura?

Entrei quando ele era primeiro-ministro, em 1981.

Como é a ascensão de Balsemão a primeiro-ministro?

Foi um acaso histórico. Ele não estava talhado para ser primeiro-ministro. Sá Carneiro morre no acidente de Camarate e Balsemão é o número 2 do PSD. O número 2 do Governo era Freitas do Amaral, só que este último dirigia o partido minoritário da coligação AD, por isso coloca-se a questão de quem deveria suceder a Sá Carneiro. Faria sentido que fosse o líder do partido maioritário. Balsemão ascende assim a líder do PSD e torna-se automaticamente primeiro-ministro.

Como avalia o seu papel como primeiro-ministro?

O mais importante foi mesmo a revisão constitucional. E esta nem sequer compete ao primeiro-ministro, mas sim aos líderes partidários – a revisão constitucional deve ser feita no Parlamento, mas a verdade é que aquilo foi combinado. Houve ligações partidárias e Balsemão participou nas negociações com Mário Soares e Freitas do Amaral. No fundo, são eles que fazem a revisão.

Como primeiro-ministro, penso que se diria que se tratou de um governo de gestão. Não foi um governo muito complicado, não trouxe grandes problemas. Criou um ambiente do ponto de vista financeiro e económico, que é certo que já vinha do tempo de Sá Carneiro, que levou ao resgate financeiro do FMI com o Governo do Bloco Central.

Há quem diga que Balsemão teve um papel muito importante ao ir buscar os portugueses que estavam no Brasil para investirem em Portugal.

Mas ainda não se podia investir nessa altura. Balsemão quis abrir a economia ao investimento privado, mas teve dificuldade em fazê-lo porque existia uma lei de delimitação dos setores público e privado. Ele quis alterá-la, mas essa alteração não passava no Conselho da Revolução (formado por militares), nem no Presidente da República (Eanes). Essa lei só é alterada mais tarde, após a revisão constitucional, mas Balsemão sai pouco tempo depois disso. Na prática, esse investimento só veio mais tarde.

Teve discussões com Balsemão enquanto primeiro-ministro por causa do Expresso?

Não, mas sei quem teve – o Augusto Carvalho (antigo diretor-adjunto). Marcelo Rebelo de Sousa fica como diretor do Expresso durante o primeiro Governo de Balsemão, mas esta decisão acaba por ser terrível: Marcelo publica coisas que não agradam, faz críticas e acaba por surgir uma instabilidade dentro do Governo. Ainda em 1981, seis ou sete meses depois de o Governo ter tomado posse, Balsemão demite-se. Faz uma jogada à Sá Carneiro – queria mais condições, queria acabar com a contestação interna no PSD e queria carta branca para formar um Governo mais forte. Mas Sá Carneiro é Sá Carneiro, Balsemão é Balsemão. São personalidades completamente diferentes e a confusão continuou. Assim, nessa altura, foi buscar Marcelo. Ele achava que Marcelo era menos perigoso dentro do Governo do que como diretor do Expresso.

Regressando aos problemas…

Pegando nessa questão do Marcelo: o Augusto Carvalho fica como diretor interino a partir do momento em que Marcelo é chamado para o Governo. A certa altura, é chamado à presidência do Conselho de Ministros. Na reunião estavam Balsemão e Marcelo. Balsemão começa a descarregar no Augusto, dizendo que o Expresso estava a publicar o que se passava dentro do Conselho de Ministros, mostrando que tinha informações privilegiadas. Balsemão queria que Augusto dissesse quem é que lhe dava a informação e o então diretor respondia ‘mas quando era diretor dizia que o Expresso tinha de ser sempre independente e agora está a ir contra os seus próprios princípios…’. A certa altura, Balsemão é chamado pela secretária para atender um telefonema urgente e Marcelo, que está sozinho com o Augusto, diz ‘Oh Augustinho, ainda bem que você não disse que sou eu que dou as informações. Você não diga nada!’.

Balsemão é um jornalista com ambições políticas ou um político que viu no jornalismo um meio?

Acho que é mais jornalista do que político. Ele torna-se político um bocado por acaso. Não acho que existisse uma ambição política quer antes quer depois dos 25 de abril. Claro que depois não se pode ser político a meio tempo, ele teve de assumir o papel. A verdade é que o Expresso é um projeto político de contestação à ditadura – não esquecer que o PPD sai de dentro do Expresso. É no gabinete de Balsemão que o PPD é fundado, com telefonemas para Sá Carneiro, que estava no Porto, a discutir programa, ideias, nome do partido. O Expresso nessa altura era mais uma sede política do que um jornal. Depois havia lá uns jornalistas que eram figuras decorativas. O fundamental era passar certos recados políticos, certas notícias e as pessoas compravam o Expresso mais pelo noticiário político. Mas, apesar disso, Balsemão sempre quis ficar na segunda linha, nunca quis atirar-se para a liderança de nada. Ele aparece como líder em virtude de circunstâncias que não foram criadas por ele.

Depois da política, como foi o regresso ao Expresso?

Muito pacífico. Houve alguma hesitação em relação ao seu regresso enquanto diretor do jornal. Tinha o caminho aberto para isso, mas achava que não fazia sentido voltar. Balsemão era amigo do Aga Khan e pediu-lhe conselhos. ‘Não volte ao sítio onde já foi feliz’, disse-lhe. Mas Balsemão tinha uma costela jornalística muito forte, deve ter sido um sacrifício muito grande tomar essa decisão

O que se segue?

A criação da SIC e a formação do grupo Impresa.

Como vê agora o estado do grupo?

É quase uma história de ascensão e queda. O grupo estava com uma dívida muito grande e não estava a ter a rentabilidade necessária. É uma situação que não será nada fácil de resolver, tendo em conta o quadro geral dos media, por causa  da crise que os meios convencionais vivem graças ao digital, o acesso livre aos conteúdos, o Facebook, etc. E quanto maior é o grupo, maior o problema. O grupo tem estado em crise praticamente todo o século XXI, as várias vagas de reestruturações e despedimentos que já houve ilustram isso – a partir de certa altura, Balsemão passou a enviar cartas internas aos trabalhadores que já davam sinais muito preocupantes.

O que correu mal?

O problema aqui está na grande teimosia de Balsemão, que queria manter o grupo centrado no núcleo familiar. Penso que isso foi a grande asneira. Foi por isso, aliás, que Pedro Norton saiu do grupo – queria que Balsemão arranjasse um grupo estratégico europeu, mas tinha de ceder a maioria. Balsemão queria controlar tudo – despesas, o que se recebe ou não recebe, o que paga aos filhos... Não há nenhum parceiro estratégico que aceite pôr dinheiro e que depois não controle. Tem de haver pelo menos uma partilha. Balsemão teve oportunidade de fazer uma divisão 50/50 com a TV Globo e mesmo assim, à última hora, recuou, não quis ceder o controlo.

A questão da traição de Nuno Vasconcelos (presidente da Ongoing e afilhado de Balsemão) e Ricardo Salgado (Grupo Espírito Santo) é abordada no livro?

Sim, falo bastante disso.

Como reagiu Balsemão ao aperceber-se dessa traição, já que ambos eram seus amigos e queriam controlar a Impresa?

Não faço ideia como reagiu, mas deve ter sido complicado. Quiseram tomar conta daquilo. Entretanto surgem as investigações judiciais e há escutas de Ricardo Salgado, nas quais este fala com o Zeinal Bava sobre as negociações que o Bava fazia com o Balsemão por causa da plataforma de televisão por cabo. O Ricardo Salgado achincalhava um bocado o Balsemão. Mais tarde, Vasconcelos manda um SMS a Balsemão a dizer que gostava de se encontrar com ele, ao que Balsemão responde dizendo que nunca mais o quer ver.

Acha que Balsemão também não o vai querer ver mais depois da publicação do livro?

Não faço ideia. A verdade é que já não nos víamos antes (risos). Mas não faço mesmo ideia de como irá reagir.

Não receia que as pessoas digam que este livro é uma vingança por ter saído do grupo?

Admito que há quem diga isso, mas na introdução do livro explico que achei que estava em condições para fazer a biografia de forma isenta. E nem acho que o livro seja muito crítico. Quanto a mim, o livro enaltece aquilo que Balsemão fez de positivo do ponto de vista político e na história dos media. E aponta também os problemas, como a criação da SIC e 40% do capital que teve de ir buscar ao estrangeiro, com recurso a um testa-de-ferro. Mas isso é tudo factual, está tudo documentado.

40% do dinheiro por detrás da criação da SIC entrou com recurso a um testa-de-ferro?

Sim, 40% do capital para criar a SIC teve de vir de fora de Portugal com recurso a um testa-de-ferro, que era um amigo de infância, Luís Correia de Sá. A lei só permitia que os órgãos de comunicação na altura tivessem 10% de capital estrangeiro. E Balsemão com 10% não ia a lado nenhum, não tinha dinheiro para a SIC. Esse Correia de Sá tinha estatuto de emigrante, explorava o catering de plataformas petrolíferas em vários pontos do mundo, principalmente em Angola. Isso dava-lhe o estatuto de emigrante, estava registado em Luanda. E os emigrantes, para poder facilitar a captação de capitais, podiam ter depósitos em divisas cá dentro e o Banco de Portugal não inquiria de onde vinha o dinheiro.

Balsemão combina que o grupo Pallas (um grupo de investimento internacional) dava o dinheiro ao amigo. E assim aparece Luís Correia de Sá com uma empresa em nome dele, a LCS, com os 40% na SIC. E até há uma comunicado interno do Balsemão a dizer que a partir do dia seguinte o seu amigo de infância ia entrar com 40% na empresa.

Mas a história acaba por tornar-se complicada: Luís Correia de Sá ganhou muito pouco com isto, uns 110 ou 115 mil euros, mas aparece na lista dos homens mais ricos de Portugal feita pela revista Fortuna. Afinal, é um dos homens por detrás da criação da SIC. Correia de Sá estava num processo de divórcio da mulher, que era belga e tinha ido para Bruxelas com as duas filhas. Ela viu a revista e avançou com um processo no tribunal de Bruxelas para ficar com metade de uma fortuna que ele não tinha. Correia de Sá perde o processo e hoje em dia está completamente falido, na miséria.

Balsemão não o ajudou?

Que eu saiba não.

Considera que Balsemão foi o maior empresário na comunicação social portuguesa?

A título singular foi, não estou a ver outro com quem se possa comparar. Não há um grupo tão grande quanto este e não há órgãos de comunicação que tenham tido um peso tão grande na história recente. Tínhamos de ir ao século XIX, à fundação do Diário de Notícias, do Século, para encontrar algo que se assemelhasse.

Por que cultivava a figura de homem austero, que só tinha três ou quatro fatos?

Porque é um bocado aquilo que ele é. É uma pessoa poupada. É uma coisa que tem a ver, se calhar, com o ambiente familiar em que cresceu. Há quem diga que ele não é avarento, mas sim um bom administrador. Mas há aqui uma característica de uma certa austeridade relativa. Disseram-me que vai comemorar os 80 anos numa hamburgueria (risos).

Com quantas pessoas falou para fazer este livro?

Cerca de 60 pessoas. Consultei bastantes arquivos e Balsemão deu-me autorização para consultar todo o tipo de documentos que necessitassem da sua autorização, como a ficha da PIDE, a ficha militar, as notas do liceu e da faculdade.

Acha que este livro vai ter sucesso?

Não faço ideia. Balsemão não é uma figura muito popular na sociedade portuguesa. O sucesso que poderá ter estará relacionado eventualmente com a curiosidade que as pessoas têm em relação às histórias que não conhecem.

Acha que Balsemão já leu o livro?

Não deve ter lido, dizem que está de férias no Algarve e o livro foi entregue na quarta-feira no escritório dele. A não ser que alguém subrepticiamente lhe tenha feito chegar o PDF…

Acha que Balsemão vai perder tudo?

Não sei se vai perder tudo, mas está numa situação muito complicada.Se ele pudesse ficar apenas com uma coisa não ficava com a SIC, ficava com o Expresso. A SIC tinha de ser vendida a um grupo internacional qualquer ou à NOS, que poderia contra atacar a Altice (que comprou a TVI). Mas já ouvi dizer que a NOS não vai avançar por causa da grande dívida da Impresa.

Futuros projetos? Uma biografia de Proença de Carvalho?

A de Balsemão ainda fiz porque me convidaram, mas mesmo que me convidassem, não havia razão nenhuma para fazer a biografia do Proença de Carvalho (risos).

Marcelo Rebelo de Sousa?

Já foi feita, pelo Vítor Matos. Não há muito a acrescentar, a não ser a fase após ter sido eleito Presidente da República.

E José Sócrates?

Essa é uma história que merece ser contada, mas não numa biografia (risos).

 

Expresso n.º 2340, de 2-9-2017

 

SEXO, PODER E ROCK’N’ROLL

Um ex-director-adjunto do Expresso lança uma biografia de Francisco Pinto Balsemão. No pior estilo tablóide, espreita pelo buraco da fechadura.

Texto: Rosa Pedroso Lima

 

A receita é conhecida: sexo, dinheiro e intriga vendem. Se juntarmos a etiqueta “não autorizada” algures no lançamento do livro, há um ar de interdição que acrescenta picante a um enredo que ganha audiência garantida. E é disto que se trata. “Francisco Pinto Balsemão, o patrão dos media que foi primeiro ministro”, da autoria de Joaquim Vieira, é um livro monótono e uma fraca investigação jornalística (desde logo porque o contraditório não existe e há demasiadas informações suportadas por fonte anónima). Nele perpassa um longo e penoso tom de ajuste de contas, que tolda a leitura. O que não invalida que possa vir a ser um sucesso de vendas. Será, sem dúvida. Os tablóides são, quase sempre, um sucesso. Não ganham prémios Pulitzer nem Nobel da Literatura, mas pagam as contas.


Vamos começar pelo principio. O biografado é Francisco Pinto Balsemão, fundador do Expresso e do PSD, ex-deputado da ala liberal, ex-primeiro-ministro, patrão dos media, milionário, figura pública desde sempre. O biógrafo é Joaquim Vieira, jornalista, documentarista, autor de várias obras. Trabalhou no Expresso durante 15 anos, quatro dos quais como director. Saiu, como o próprio refere logo na primeira das mais de
500 páginas do livro, “por causa da elaboração de uma noticia que terá chocado com os interesses do patrão”.

Joaquim Vieira chama “declaração de interesses” a esta sua versão dos acontecimentos. Mas nem por isso deixa de servir como uma espécie de garantia de que “agora” se sente “capaz de manter o distanciamento necessário” para analisar a vida e as várias obras do seu ex-boss do “berço de ouro” a “queda”, como designa alguns dos capítulos sobre os 80 anos de vida de Balsemão. E, na verdade, talvez este seja o pecado capital desta obra. (Ou, se analisarmos pelo lado dos resultados finais de vendas, o seu grande trunfo). O autor é, sem dúvida, parte da obra que pretende relatar de fora. Está-lhe no currículo pessoal e profissional, forma-lhe o olhar sobre o ‘alvo’ que é objecto do seu trabalho. A objectividade não existe. Não mora, seguramente, aqui. E o caso complica-se pelo facto de nem o próprio biografado nem ninguém do seu círculo mais próximo, ter contribuído para a elaboração do livro. Joaquim Vieira optou por avançar. Tem o mérito de assumir que correu esse risco, mas o risco não deixa, por isso, de ser grande.


E foi. Oito décadas de vida não cabem em 500 páginas. Sobretudo quando há tanta política, negócios e vida para contar, como é o caso de Francisco Pinto Balsemão. Joaquim Vieira fez, naturalmente, uma selecção. Tinha de ser. Mas foi na parte pessoal
Intima mesmo da biografia do patrão da Impresa que o autor encontrou a principal novidade para trazer ao prelo. Os romances, casamentos e divórcios tornam-se um ‘filão’. Descascam-se pormenores sórdidos, citam—se fontes próximas para contar casos privadíssimos, que, na verdade, só se podem conhecer a dois. Há um olhar de big brother televisivo que inunda a biografia e que podia ser assumido. Mas nunca é. Joaquim Vieira chafurda na vida privada de Francisco Pinto Balsemão, encontra lá o sangue, suor e sexo necessários para aguçar o interesse do público, como se de interesse público se tratasse. Como se os planos se confundissem. E o autor confunde-os, propositadamente, com uma justificação hábil: Balsemão terá vivido “o mais dramático período da sua carreira pública” quando lançou o Expresso. Tinha saído pelo seu pé de deputado da Assembleia Nacional, com o odioso de parte da ala liberal e a raiva do regime, para criar o semanário mais inovador da imprensa da altura. Com isso, acicatou a censura fascista, que faz questão de lhe trazer progressivas dificuldades a cada edição impressa que sai das antigas instalações da Rua Duque de Palmela. Ao mesmo tempo, enfrenta na vida privada um divórcio “escandaloso para a época” e um processo de reconhecimento de paternidade sobre um filho nascido fora do casamento. O tempo faz cruzar os dois lados da vida de Balsemão e, assim, de um só golpe, o público e o privado ganham licença para avançar lado a lado. É uma espécie de mentiras, poder e atá um pouquinho de rock’n’roll, que o patrão tocava nos tempos livres.


Pelo meio há um mundo de histórias dos bastidores da política e, sobretudo, dos bastidores dos jornais. Marcelo Rebelo de Sousa é um dos personagens que emergem no cruzamento destes dois mundos. Começou como jovem jornalista no Expresso, passou a director do semanário e depois a secretário de Estado e a ministro do último Governo de Balsemão. Tal como Joaquim Vieira, o actual Presidente da República tem um passado com o patrão dos media, que o livro deixa transparecer estar longe de ser pacífico. Marcelo, também ele, não quis remexer no passado, mas deixou vários recados ao autor da biografia: “Preferi poupá-lo ao meu testemunho sobre F.P.B. Que nem seria, necessariamente, negativo”, lê-se na introdução. “É uma decisão minha, própria da velhice, abstrair de factos e pessoas e suas circunstâncias pretéritas. Para que a memória tenha capacidade de alojamento
(...) é preciso que vá criando espaço para isso”, escreveu Marcelo Rebelo de Sousa. Fez control + alt + delete, portanto. Joaquim Vieira passou dois anos a fazer o contrário. A editora agradece.

 

 

Balsemão, um príncipe do jornalismo. E da política

06 Março 2016

 

No dia em que Francisco Pinto Balsemão faz 80 anos, leia o perfil que Maria João Avillez traçou do fundador do Expresso, da SIC e do PSD. "Fartei-me de trabalhar, caramba!", disse-lhe ele um dia.

 

Francisco Pinto Balsemão, pai do Expresso e SIC, militante n.º 1 do PSD e ex-primeiro-ministro faz esta sexta-feira 80 anos. Como político e, sobretudo, como jornalista e empresário da comunicação social, Maria João Avillez acompanhou de perto a sua vida e faz aqui o seu retrato. Este texto foi publicado originalmente a 6 de março de 2016.

 

A rua Duque de Palmela

Hoje já não sorrimos assim. Mas nesta primavera de 1981, Francisco Balsemão sorria para a jornalista do Expresso, que acabava de receber um prémio internacional, devido a uma reportagem publicada nas suas páginas. E eu olhava para o fundador do jornal e na altura primeiro-ministro, como se aquilo que me ocorria fosse uma coisa a meias. E de certo modo era. O Expresso, ele, eu, alguns colegas mais, tínhamos sido, por esses tempos, uma espécie de entidade quase indesligável, tanto oficiáramos em conjunto: a revolução, os militares, o Conselho da Revolução, Soares, Sá Carneiro, Cunhal, os partidos, o PREC, os quartéis… Essa vida que vivemos entre dois mundos, duas realidades, balançando entre o possível e o impossível.

Toda a grande imprensa internacional rumava ao Expresso. A rua Duque de Palmela era um porto de abrigo para os incrédulos directores dos media que vinham do estrangeiro e a quem Francisco Balsemão tentava explicar essa quadratura do círculo que era um país ocidental (e da NATO) onde eleições ordeiras com resultados que exprimiam uma saúde democrática, coexistiam, em excesso e desconcerto, com um demencial processo revolucionário.

 

Sim, toda a imprensa estrangeira ali rumava e aportava. Dos directores do Le Monde, L’Express e Le Nouvel Observateur, aos gigantes norte-americanos, aos nossos vizinhos espanhóis, aos alemães, ingleses, italianos. (Como foi, por exemplo, o caso de Oriana, não a fada mas a Fallaci, que lá foi expressamente contar ao dr. Balsemão que Cunhal, dez minutos antes, acabara de lhe dizer que nunca haveria em Portugal uma democracia burguesa). Sim, e essa grande plateia internacional da comunicação pasmava ao ouvir aquele director suis generisdoublé de proprietário, doublé de político… Ao mesmo tempo que abria a boca de espanto face ao que fora daquele edifício de esquina, com vista para o Marquês de Pombal, ia ocorrendo país fora: golpes, inventonas, prisões, a ocupação do vespertino “A República”, o assalto à Rádio Renascença, o assalto à embaixada de Espanha, greves diárias, um Parlamento sequestrado, a quase asfixia de Lisboa.

Enquanto isto, no Expresso, nós ouvíamos, reportávamos, contávamos, entrevistávamos, 24 horas non stop. De tal forma que um dia até foi preciso inventar o Expresso Extra que existiu no fogo de 1974/5 e “saía” às quartas-feiras! Uma invenção do dr. Balsemão para escoar a prodigamente vertiginosa informação que a Rua Duque de Palmela atraía como ninguém no país, mas que não durava até ao sábado seguinte!

Mas agora, ao tempo da foto que abre esta história, a política levara-me um excelente director que no dia em que ela foi tirada era um primeiro-ministro feliz.

Expresso, que não era “o Scala de Milão”

Aprendi muito com ele. Respirava informação, possuía um agudo sentido da notícia, sabia construí-la, tinha a boa percepção dos tempos e dos ritmos da entrevista, uma curiosidade imparável, cheirava bem o ar, aspirava bem o tempo. Tinha faro, intuição, talento. Tinha paixão. Sempre ofegante, apressado, desorganizado, impontual — nunca o conheci de outra maneira — era por vezes leve, por vezes ligeiro. Mas era um jornalista dos pés à cabeça que adorava o que fazia e foi por isso um óptimo director do Expresso.

E era hábil. Ao conviver tão placidamente numa espécie de tácita “aliança” entre um assanhado MRPP maioritário na redacção e o então PPD, que ele fundara com Francisco Sá Carneiro em maio de 1974, tinha o Expresso pouco mais de um ano. Os comunistas do PCP eram os odiados “revisionistas”, o PS um partido “fascista”, o PSD não tinha direito de cidade, vomitava-se o CDS. Mas no número 37 da nossa rua, o casamento de conveniência entre o maoismo militante e os patrões do PPD vigorou com felicidade: espantando o mundo produzia-se o melhor jornal desse tempo (e do seguinte).

Mas o patrão, sem nunca perder as boas maneiras, às vezes zangava-se. Era ouvi-lo, clamando penosamente pelos corredores que “aquilo não era o Scala de Milão”, quando de manhã deparava com salas semivazias e à tarde com estados de alma variados — como porventura ele supusesse que sopranos e tenores permanentemente praticassem… O certo é que tais estados de alma — reais, muitas vezes e permanentes, quase sempre — atrasavam a saída, programada ao longo da semana, das diversas prosas rumo à gráfica Mirandela, que era onde, nesses tempos de glória, se imprimia o jornal. À sexta-feira à noite alguns de nós esperavam no restaurante Pabe, na porta ao lado do Expresso, ou ali perto, em mais modestas moradas, que o jornal se materializasse, como um pão que cozesse no forno e era sempre assim: uma ânsia reeditada, edição, após edição.

“Aqui escreve-se sempre dos dois lados do papel de máquina…”

Não sou da fundação do Expresso, entrei no primeiro dia de setembro de 1974. Entrei, é como quem diz: “Vens fazer o mês de setembro, o mapa de férias foi mal organizado mas depois não te encostas à nossa amizade, não preciso de mais gente”, disse-me o director com moderado entusiasmo.

 

Não me encostei, o 28 de setembro é que se encostou a mim. A fatídica data desabou-me sobre a cabeça como um bem vindo prémio e devo ser das raras pessoas no país a ousar tal desabafo. Mas a verdade é que a minha conquista do Expresso se fez à conta das aventuras vividas naquela indecente, armadilhada, longa noite: o dr. Balsemão gostou do que fiz, reconsiderou e incluiu, coitado, mais um (parco) ordenado na sua “pesada” (dizia ele) folha de pagamentos.

“Aqui escreve-se sempre dos dois lados do papel de máquina…”, disse-me um dia, logo no início, no seu amplo gabinete, enquanto me “ditava” uma notícia com o objectivo de testar os meus (sofríveis) conhecimentos na matéria. “É para poupar”. O efeito era horrível, mas que importância tinha? Poupava-se.

Com o país a arder, mandava-me a todo lado: que reportasse o que visse e ouvisse! Dos quartéis que eu frequentava como se fossem pastelarias, às noitadas no Restelo, no prédio alto onde então habitava o Conselho da Revolução; do COPCON, aos comandos militares do país; dos Passos Perdidos da Assembleia da República às sedes dos partidos políticos onde entrevistava, um após outro, Freitas do Amaral, Sá Carneiro, Mário Soares, Álvaro Cunhal. Ou Zenha, ou Almeida Santos, ou Amaro da Costa, ou Gama e… toda essa gente pronta a construir o edifício da democracia civilista e pluripartidária que tão a custo se tentava erguer.

Quando Balsemão teve de suceder a Sá Carneiro

Depois veio a segunda história: o voto democrático venceu a rua revolucionária, Mário Soares ganhou as primeiras eleições de abril de 1975, haveria um Parlamento, iria haver uma Constituição. No ano seguinte, 1976, nasceria o primeiro governo constitucional. Socialista e presidido pelo mesmo Soares.

Em 1979, Francisco Sá Carneiro escreveria a terceira história. Contra ventos e marés, o líder da primeira Aliança Democrática ganhou, governou, voltou a ganhar. Mas, no momento da foto a que aludi acima, Francisco Sá Carneiro havia morrido e só há pouco tempo é que Francisco Balsemão voltara a sorrir assim: não lhe fora fácil convencer o seu partido de que seria ele o autor do resto da terceira história. A bênção de que necessitava como “sucessor natural” não fora nem rápida, nem unânime.

Mesmo apesar de Eanes ter feito saber ainda antes da sua reeleição para a Presidência da República que o “sucessor” era Balsemão; ou mesmo apesar de os (então) poderosos Alberto João Jardim, líder do Governo Regional da Madeira, e Mota Amaral, presidente do Executivo dos Açores, lhe terem de imediato manifestado o seu apoio, amparados nas principais estruturas do PSD (Trabalhadores Social Democratas, JSD, etc.), o céu da AD estava coberto de nuvens. E de obstáculos: as veleidades do próprio Freitas do Amaral, líder do CDS que o grupo de ex-ministros do PSD, “fidelíssimos” a Sá Carneiro e coligado com a oligarquia centrista, preferiria ver na chefia do futuro governo; ou o influente Eurico de Melo que defendia — e não escondia — para o cargo o ex-titular das Finanças, Aníbal Cavaco Silva, opondo-se assim a qualquer outro nome; havia ainda as “condições” — nunca totalmente esclarecidas — do também ex-ministro Cardoso e Cunha, como moeda de troca do apoio de grupo mais alargado que ele, Cardoso e Cunha, garantia representar.

Balsemão suava.

Um dia, estavam essas intricadas negociações em curso, lembro-me de ter podido avistar-me com ele por breves momentos. Deparei com um político constrangido: as coisas pareciam fugir-lhe da mão, o ar pesava, ocorreu-me que estivesse sitiado pela intriga. Não entrou, longe disso, em confidências, mas fez perguntas: “Que sabes ‘disto’? Que tens ouvido? Com quem tens falado?”.

 Depois tudo se encaixou (ou tudo pareceu encaixar-se): nos últimos dias de 1980, um Conselho Nacional ratificava a candidatura do numero 1 do PSD com duas ou três abstenções apenas. A 8 de janeiro de 1981, o VII Governo Constitucional liderado por Francisco Pinto Balsemão toma posse na Ajuda, das mãos do seu futuro inimigo, o Presidente da República, general Ramalho Eanes: era o princípio do fim da AD sonhada e concretizada por Francisco Sá Carneiro mas isso ainda não sabíamos. Desconfiávamos, apenas.

Horas antes, Francisco Balsemão, que passara a chamar-se “Pinto Balsemão”, dera-me uma curta entrevista. Ao Expresso, parecera impossível não “editar” aquele corredor antes da sua mais importante corrida. Voei veloz para a Gomes Teixeira: “Só tenho dez minutos” e “aquilo, não era uma entrevista!”, avisara o ex-jornalista… já vestido de chefe do Governo. Vendo-me tomar notas, não resistiu a si mesmo e perdeu tempo a indicar-me onde pôr virgulas ou fazer parágrafos…

Mas foi uma entrevista, claro: “Sim, o seu governo fora feito em completa harmonia com Freitas do Amaral e Ribeiro Telles”; “Sim, houvera alguns ’acidentes de percurso’ , normais na formação de qualquer governo” ; “Não, não houvera qualquer tipo de pressão vinda de antigos ministros de Sá Carneiro”; “Sim, fora um processo lento e cauteloso norteado pela preocupação de encontrar pessoas competentes na AD e não pela mera distribuição de pastas pelos partidos!”.

A verdade é que ele tentara desenvencilhar-se de quase todos os ex-governantes do PSD – que melhor que ninguém sabia que conspiravam contra si – começando por “auscultar” gente fora desse círculo. Como João Salgueiro (desafiado para assumir as Finanças) ou Henrique Granadeiro (convidado para a Agricultura e Pescas). Sendo a política a arte do possível, um contrafeito futuro primeiro-ministro herdou afinal parte desse lote de que Cardoso e Cunha ou Álvaro Barreto podem ser exemplos. Na contabilidade final havia dez ministérios para o PSD e cinco para o CDS, entre os quais as Finanças e a Defesa.

E o Palácio das Necessidades fora entregue a um independente, André Goncalves Pereira. (Relembremo-lo porque vale a pena, que tal desafio não surgira pela primeira vez na vida do professor e célebre advogado lisboeta: Marcelo Caetano, após a saída de Franco Nogueira do seu Governo, convidara Gonçalves Pereira, tinha ele então 32 anos, para esta mesmíssima pasta. Anos depois, Sá Carneiro sondara-o para outras duas.)

Se não foi só por amizade que desta feita, em janeiro de 1981, André Gonçalves Pereira aceitou o repto de “um amigo íntimo”, a verdade é que a amizade não pode ter deixado de pesar e muito. (A curiosidade faria o resto.)

Completado o governo, a posse ocorreu a 9 de janeiro de 1981. Mas o chefe do Governo tomara boa nota de cada amargura sofrida. Uma talvez insuspeita “capacidade de fogo” e o seu ancestral e renitente “nunca esquecer” fazem, por exemplo, com que ainda hoje haja pessoas “vetadas” nos circuitos que comanda: no mundo profissional, ou no seu círculo pessoal.

Fosse como fosse, nesse longínquo janeiro de 1981, Pinto Balsemão podia continuar a escrever a terceira história. E voltar a sorrir.

Um governo cercado

 

A História terá certamente melhor justeza e maior competência que eu para avaliar a substância de uma acção executiva algo sobressaltada e cujo leme Francisco Balsemão abandonou, como dizer?, irrazoavelmente em 1983, após não ter ganho umas eleições autárquicas.

A sua liderança foi o que pôde ser, numa governação que, além de sempre cercada, lutava diariamente para lograr a delicada transição para uma democracia plena, enquanto nunca descurava a frente europeia.

Sim, houve um cerco, dentro e fora do Governo. Abrilhantado pela soma de duras críticas públicas atiradas com frequência e estridência e remetidas por uma dupla de peso (Cavaco Silva e Eurico de Melo), acusando o então chefe do Governo de ”incapacidade de liderança do governo, da AD, do próprio PSD”; o CDS revelou-se mais padrasto que parceiro; a estrada governamental viria ser a muitas vezes dinamitada pelas humilhações do Presidente Eanes, que a partir de certa altura passou a receber em audiência o seu primeiro-ministro de gravador ligado, porque “desconfiava” dele.

E, last but not least, a tutela militar que ainda existia (e uma comunicação social pouco meiga) fechavam o cerco.

 

Não consta igualmente que a “sociedade civil” tenha reagido com a vivacidade esperada à chamada do então chefe do Governo. Fora uma expressão que o país de abril ouviria pela primeira vez e a cuja “libertação” Balsemão apelou — e bem, era um liberal — na sua tomada de posse. Posteriormente, fê-lo em diversas outras ocasiões. Estava a ser fiel à sua matriz de sempre e, como tal, ambicionara retirar o país das garras do Estado, almejara outra concepção da sociedade, sonhara com um Portugal mais amadurecido na sua capacidade de resposta. Muitos anos depois, ainda confessava alguma “desilusão” face à sua inicial expectativa sobre o resultado dos seus apelos a uma sociedade civil mais interventiva… (e provavelmente também mais forte).

Havia também quem estranhasse que a experiência acumulada como ministro de Estado e número dois de Sá Carneiro, o gosto pela política, o jeito para “diálogo”, uma genuína e permanente procura de consensos, a propensão natural para o compromisso, as boas maneiras, não tivessem logrado um voo mais largo do governo; ou que o talento, a energia, a intuição, a capacidade de trabalho do jornalista/empresário, tivessem tido eco mais pálido no político.

Perguntar-se-á: o saldo deveria ter sido maior?

E quando se começar a desenrolar o anel de adversidades que rodeou estas duas governações da Aliança Democrática e as circunstâncias em que elas ocorreram, concluir-se-á que se colheram mais nozes que vozes, ou será o contrário?

Pesará, por exemplo, mais o êxito da revisão constitucional e uma boa velocidade a caminho da Europa ou o agravamento do estado de saúde das Finanças que viria a desaguar, meses depois, na segunda vinda do FMI a Portugal?

Entre os olhares apressados de ontem e o rigor que pautará amanhã o veredicto da História, o “hoje” ainda não é claro.

Político ou… jornalista?

Seja como for, o que me interessa, o que para mim corresponde ao cerne da questão, é tentar definir a natureza do personagem, ainda hoje envolta pelo véu da dúvida que divide as plateias: Pinto Balsemão politico ou… Francisco Balsemão jornalista? Devemos distinguir entre cada uma das duas faces desta moeda? Louvando mais a “coroa” onde está impresso o patrão da media, do que a “cara” que contém inscrita o governante? Apreciando melhor o motor da ambição do homem da imprensa, do que o engenho ou as façanhas do político?

Eis uma boa questão.

sucessfull jornalista, o poderoso empresário, o persistente homem de negócios, o gentleman civilizado e cosmopolita que o país conhece substituíram o político, consolando-o assim da nostalgia pelo que podia ter sido e não foi? Ou a vocação jornalística levou sempre a melhor sobre a política porque era essa a idiossincrasia de Balsemão? Essa a sua vontade vocacional mais antiga?

 

Julgo que era. Jornalista dos pés à cabeça, repito. Tinha em comum com Jean Jacques Servan Schreiber o terem querido ambos fazer um jornal liberal em França como em Portugal, onde não havia liberais, e fizeram-no, um e outro. Mas, ao contrário de Servan Schreiber, que fundou o L’Express para com ele ir abrindo os caminhos da política que contava vir a pisar (e não pisou), Balsemão inventou o Expresso muito por paixão pelo jornalismo — e, por vezes, parecia que ela lhe bastaria — apesar da política, que já experimentara anos antes, o vir a levar mais tarde ao topo do Estado.

Voltando ao jornalista, julgo que se o país sempre o encaixou com naturalidade e verosimilhança nessa sua vocação, olhando-o prioritariamente como um grande patrão da imprensa, terei que lembrar que o mesmo não terá ocorrido com o olhar de Francisco Sá Carneiro e importa aqui sublinhá-lo: quando ambos integram a Ala Liberal; quando os dois, sentados lado a lado na Assembleia Nacional redigem diversas propostas de lei a favor dos direitos fundamentais; quando discutem intervenções e iniciativas comuns; quando trocam desabafos desalentados sobre o regime de Caetano; quando concertadamente decidem abandonar o hemiciclo de S. Bento, é evidentemente com o político que Sá Carneiro “está”. O jornalista tinha nome, tarimba, era talentoso, mas ele, Sá Carneiro, sabia que iria precisar de políticos. E foi com um político que na pessoa de Francisco Balsemão ele contou para a aventura de um futuro político comum.

Só uma única vez vi Francisco Sá Carneiro “triste” com o seu amigo: como é que o proprietário do Expresso consentia na “pouca vergonha” em que se encontrava naquela altura? Tudo “tinha limites”… Subentendido: trabalhar mediaticamente a política daquela forma enviesada mancharia de “indiferença” quem era suposto estar em posição de não consentir – nem apreciar – tal estado de coisas. Falava-me com um misto de espanto e pena. E tanto assim era que ele, Sá Carneiro, decidira patrocinar um novo jornal (avisando-me de resto que eu iria ser contactada para a empreitada e cheguei a sê-lo por um dos seus secretários de Estado com quem, apercebi-me depois, muito o então chefe do governo já discutira e detalhara tal projecto).

Em suma: para grandes males, grandes remédios.

Este extraordinário diálogo ocorreu em Viseu, num domingo de novembro, (dia 23, mais exactamente) de 1980, em plena campanha eleitoral para as presidenciais. A Aliança Democrática apoiava o general Soares Carneiro e Sá Carneiro, aos fins de semana, “descia” ao terreno da campanha eleitoral que eu cobria para o Expresso, justamente. Falávamos nessa noite numa sala do Hotel Grão Vasco e fiquei siderada: um novo jornal? Como, com quem, quando? Mas era verdade. Ou melhor, não fora o destino ter-se tão devastadoramente encarniçado contra Francisco Sá Carneiro, e teria porventura sido verdade.

Voltando a Balsemão: política ou jornalismo? Um dia, respondeu-me assim: “A minha carreira profissional foi sempre muito mais jornalística que política”.

Foi no início dos anos 90 do século passado e fiquei elucidada.

O gosto pela política externa

Abra-se, porém, agora um parêntesis pois entre a Duque de Palmela e o Palácio de S. Bento houve sempre algo que muito o interpelava, dura até hoje e pude testemunhar de perto: a política externa. E aí, não só sobrava talento como alguma coisa de parecido senão com vocação, pelo menos, com “convocação”. Os assuntos externos e os seus desafios e os seus complexos territórios; a diplomacia e os seus segredos; as nuances e subtilezas da sua condução, teriam tido aqui um protagonista à part entière. Foi certamente por saber isso que Francisco Sá Carneiro lhe entregou essa “pasta” no governo-sombra que constituiu, no final da década de 70, do século passado.

“São matérias que sempre me interessaram e julgo conhecer alguma coisa neste domínio”, disse-me um dia, numa entrevista. “É um desafio intelectual de que gosto e onde me sinto à vontade”. Não se sabe se Ramalho Eanes gostava tanto como ele mas sabe-se o essencial: o cerne da tensão e do conflito que veio a opor o então Presidente Eanes e o então primeiro-ministro Francisco Pinto Balsemão, radicavam justamente nas contrárias visões que ambos tinham sobre a condução de alguns dos nossos dossiês externos. Uma área onde quase tudo veio a opô-los e que azedou talvez irreversivelmente a relação institucional entre ambos.

(Valerá, aliás, a pena enunciar brevemente algumas dessas mesmas áreas, portadoras de conflito. É que pela sua variedade e natureza exibem à vista desarmada como tantas delas seriam “utilizadas como pretexto de conflito mais porventura do que real matéria de desacordo: invasão do Afeganistão; demissão e nomeação de embaixadores; “caso Pintasilgo”, Congresso das Comunidades; visitas a Portugal de Senghor, Karl Carstens e Jimmy Carter; visita de Eanes à Itália e à Noruega; caso dos pescadores aprisionados pela Frente Polisário).

 Francisco Balsemão guardou, porém, intactos um gosto, uma apetência e uma curiosidade que o têm levado, vida fora, a participar, intervir e muitas vezes liderar alguns dos mais prestigiados fóruns internacionais que se ocupam em pensar ou analisar estas matérias. Tem desde cedo lugar cativo nessas diversas instâncias europeias e norte-americanas, onde se sentam os grandes deste mundo que ele trata por tu. E onde é apreciado, respeitado e ouvido. Um senador com influência. Muitas das suas deslocações externas são, ainda hoje, continuamente motivadas pelos compromissos que o seu nome, fora de portas, o faz cumprir.

Dois marcos: a revisão constitucional de 1982 e as negociações com a CEE

Dez anos após a saga governativa, novo encontro diante de um microfone.

Eu pedira-lhe que olhasse para trás e se revisse como chefe do Governo. Lesto e leve como sempre, sem que nada nunca parecesse pesar-lhe, olhou de facto para trás, reviu-se no seu gabinete do primeiro-ministro, e com desarmante franqueza, gostou do que viu e de se ver: “A história faz-se com distância, leva tempo”.

E ei-lo, a recapitular-se: quando deixou o Governo “o país tinha indubitavelmente ultrapassado o point of no return na questão da CEE”; “só a partir de 1982, (com a “sua” revisão constitucional que pusera termo à vigência do Conselho da Revolução) é que Portugal se tornara uma democracia plena, de padrão ocidental”.

E, quanto a ele, “saíra quando quisera e não quando quiseram que ele saísse!”.

A diferença é que saíra de vez: exit política. Tudo acabaria ali (mas certamente não como ele teria gostado).

Tinha porém razão no que, extra muros ou inter muros, elegera a seu favor, como ex-libris do seu Governo: a caminhada da nossa integração europeia e a revisão constitucional. A partir de meados de 1982, e dada “a boa aceleração negocial” e o facto dos variados dossiês portugueses estarem em vias de serem fechados tecnicamente, ficou claro para o seu Governo que seria possível concluir o processo de adesão até ao início de 83. (O Presidente Mitterrand, numa visita a Portugal, efectuada por essa altura, chegou a aludir a “une Europe a onze”).

A ideia — e a meta — agradavam naturalmente ao então primeiro-ministro Pinto Balsemão que percorria capital atrás de capital, avistando-se num corrupio com os Helmut Schmidt, Mitterrand e Giscard deste mundo… Até se tornar evidente — conforme de resto recordaria o próprio Balsemão em conferência produzida no inverno de 2014, no Ministério dos Negócios Estrangeiros — que as posições da Alemanha e França, desculpando-se com pretexto da Espanha não poder ser deixada de fora, foram permanentemente inviabilizando a pretensão portuguesa. Uma inconclusiva valsa dançada pela Alemanha e pela França, “culpando-se mutuamente” pelo adiamento do ensejo português. Apesar de a meta da adesão ter sido afinal só cortada em junho de 85, o que interessa é que quem governava o país “se dizia pronto”, quase dois anos antes.

O segundo facto foi uma revisão constitucional promovida em 1982 pelo Governo e acertada entre o PSD, o PS e o CDS. Era a chave que abria mais uma porta de acesso a uma democracia civilista e civilizada, de matriz ocidental. Uma vida “normal”, numa palavra. Reconhecê-lo hoje será talvez mais fácil do que tê-lo feito ontem. Mérito do maestro que soube pôr instrumentos e músicos em boa harmonia e grande mérito de Mário Soares: “Os debates vivos onde, como líder da oposição, critiquei e interpelei o então primeiro-ministro não nos impediu, em 1982, que nos tivéssemos posto de acordo na necessidade de uma revisão constitucional profunda. Essas negociações entre PS e PSD levaram a alterações na Constituição que tornaram Portugal numa democracia plenamente civilista e ocidental. Foi um período difícil de pressões e violentos ataques, vindos até do interior dos nossos partidos. Quero por isso prestar homenagem à sua (de Francisco Balsemão), determinação”. (Escrito de Soares em Fevereiro de 1991 no jornal Público.)

E no entanto… convém que a memória seja séria, para além de viva: é também verdade que essa harmonia que tornou possível a articulação política entre PSD, CDS, PS não terá sido exclusivamente provocada pela bondade da AD ou os dotes dos maestros Balsemão, Soares, Freitas do Amaral. Era já o ar do tempo, eram já as sementes da nova era política que se anunciava, era sobretudo já uma viva animosidade comum contra Eanes…

Tudo isto tinha um nome: chamou-se Bloco Central e nasceria politicamente meses depois. Mas isso, quem sabe, o primeiro-ministro Pinto Balsemão possivelmente ainda não lera nas estrelas.

O Estoril, o Diário Popular e a “Ala Liberal”

Tudo destinava Francisco Manuel Castro Pereira Pinto Balsemão, nascido em Lisboa a 1 de setembro de 1937 a uma vida diferente: o berço, a família, o meio, as posses familiares. Filho único e tardio, foi criança protegida e adolescente mimado. Era o “Francisquinho”. Mais crescido, jogava ténis com o futuro Rei de Espanha (Juan Carlos), tinha dinheiro de bolso, guiava um carro desportivo, namorava suecas loiras, frequentava as boites do Estoril e de Cascais e sobressaltava as namoradas que não gostavam de indesejadas competições com estrangeiras do norte da Europa.

 Depois, com rara mestria – ou deverias dizer com prodigiosa mestria? — libertou-se, conservando o que havia a conservar e dispensando o resto. E quando o diziam entretido com aqueles meios e andanças, iniciou – a sério — no Diário Popular, propriedade de um seu tio que tinha fortuna e comprara o jornal, uma carreira jornalística que de imediato o interpela tanto quanto o absorve. Dinamiza a redacção, convoca novos colaboradores, tonifica o seu Suplemento Literário. Faz do jornal um fórum procurado por gente interessante onde se cruzam e discutem artistas, intelectuais, escritores, pintores: estava-se no final da década de 60 e o Bairro Alto animava-se com o “Popular”. As funções jornalísticas obrigam-no a um contacto “diário, estreito, desagradável, com a censura”. O que lhe abre os olhos e o “predispõe” a lutar pelas coisas.

Tinha 32 anos e decidira-se pela política, ocupando-se dela. A sério, uma vez mais. E a recém-formada Ala Liberal é a melhor ponte para esse mundo novo: um movimento político nascido em 1968 que pretendia uma moderada transição do regime autoritário para a democracia liberal praticada na Europa ocidental. Integrada por gente já algo politizada como José Pedro Pinto Leite, Miller Guerra, Mota Amaral, Sá Carneiro, Balsemão, entre outros, tinham todos em comum uma enorme vontade política de liberalizar o regime. Não era dizer pouco.

Consentida por Marcelo Caetano que via nela a melhor credibilização da sua “abertura” e uma boa moldura para a então chamada “primavera marcelista”, a Ala Liberal viria a concorrer às eleições de 1969, nas listas da União Nacional. Fora pois com entusiasmo e empenho que Francisco Balsemão se sentara no Parlamento, junto de gente que como ele escolhera lutar por duas ou três coisas que lhes eram caras. Não conhecia Francisco Sá Carneiro. Mas como tinham o mesmo nome, “o mesmo sentido de humor” e se sentavam lado a lado, nasceu uma cumplicidade que cedo desaguou em sólida amizade. As posições vigorosas que enquanto jornalista Balsemão assumira contra a censura no Diário Popular tornam-no notado no Parlamento e fora dele. Marcelo Caetano, de quem fora aluno no curso de Direito, apreciava-o. Tinham uma “boa relação”, conversavam, Balsemão manifestava-lhe “preocupações”, era amigo dos filhos, frequentava por vezes a Rua Rodrigues Lobo onde habitava o chefe do Governo. Em suma, era bem visto e bem-vindo na casa.

A Ala Liberal acabou mal (aos poucos a desilusão ia provocando o abandono dos deputados e a sua saída da Assembleia Nacional) mas deixou-lhe uma certeza: nada ficaria por ali. E uma lição: a política dava trabalho.

Tempos depois, um segundo revés: a venda, pelo seu tio, da maioria do capital do Diário Popular a um banco. “O Francisquinho pôs luto”, assim lembrava numa carta um dos mais inesquecíveis colaboradores do jornal e amigo fraterno de Francisco Balsemão, o (formidável) escritor Ruben A., participando também ele deste “desgosto”. Esse mesmíssimo Ruben A. que um ano depois iria inventar o nome de Partido Popular Democrático, para o novo partido fundado por Francisco Sá Carneiro, Francisco Balsemão e Joaquim Magalhães Mota.

A nova formação partidária nasceu a 6 de maio de 1974, chamava-se “PêPêDê”, era um partido que se queria reformista e de centro esquerda e marcou o país até hoje. Não só pelas fortes lideranças de Sá Carneiro e Cavaco — e a conquista de diversas maiorias absolutas — mas por ser feito de uma indefinível mistura entre todos os extractos da população do Portugal que havia “antes” de abril de 1974, e do “país” que veio a surgir depois. O que talvez seja afinal o seu segredo e simultaneamente o seu exclusivo: uma espécie de Benfica, e tão transversal como ele, na sociedade portuguesa.

Um liberal que tornou Portugal mais livre

Voltando ao nosso homem: o “luto” pela perda do Diário Popular não o submerge: reagindo à morte da Ala Liberal e à venda do vespertino, inventa o Expresso.

Rodeia-se de gente, reflecte, escolhe, decide, reúne incansavelmente, manda gente para Inglaterra “aprender”. Causando impacto e estrondo no meio português de então, vai somando poder e ganhando influência. Duas décadas depois repete o gesto, produzindo uma estação de televisão, baptizada SIC e não deixando nada como estava antes: nas mentalidades, na política, nos costumes, no país. E, bem entendido, no panorama audiovisual português.

Era de facto um liberal — num Portugal onde eles eram escassíssimos – que lutara pela imprensa livre, sonhara com a “libertação” da sociedade civil, fizera um jornal liberal e concretizara uma estação de televisão privada. Assinando desta forma um feito raro ao produzir meios de comunicação que haveriam de marcar determinantemente duas gerações muito distintas, filhas de dois países radicalmente diferentes: o Portugal de 1973, acinzentado e sem velocidade, a meio caminho entre os restos da ditadura e a democracia com que titubiantemente sonhava; e a pátria desenvolta, aberta, cosmopolita e europeizada (e já endividada) da década de 90, do século passado.

Poucos se poderão em Portugal gabar do mesmo.

“Fartei-me de trabalhar, caramba!”

A concretização da SIC em 1992, para além de o ter levado a aprofundar os complexos segredos das novas tecnologias da informação e a aprimorar-se em caminhos nunca dantes navegados como era para si a televisão, foi sobretudo um acto de profissionalismo ao mais alto nível: muito tempo de maturação, boas equipas, saber, trabalho, critério, suor, meios, acerto na escolha dos sócios, visão na parceria com a RTL e a Globo. Mas se não se disser agora que uma das coisas que mais o caracteriza — e sobretudo o identifica – é o saber criar “espaços de liberdade” e que foi com essa “arte” que inventou o Expresso e com ela que três décadas depois fez a SIC, (como entretanto também já fizera quando presidiu ao Instituto Sá Carneiro) não se compreenderá tudo sobre este personagem. Importância fulcral da liberdade e (sempre!) rigor nas contas.

“A SIC não pode ser para perder dinheiro, tem de se iniciar modestamente… O Expresso começou em meio andar da Duque de Palmela, hoje ocupa quatro andares…”, disse-me uma vez, na véspera do nascimento da “sua” televisão.

A verdade é que a credibilidade do seu grupo empresarial é directamente proporcional ao seu prestígio no país. E fora de portas – insisto — ainda mais.

Não sendo indiferente às honras deste mundo — tem recebido distinções e condecorações – pouco lhe subiu porém à cabeça: não se exibe, nunca foi pretensioso: confessou-me um dia numa entrevista que tinha “só um blaser e um único fato” (e um deles “já velho”, não me lembro qual). Não ostenta marcas, lida com simplicidade com o dinheiro. E, sobretudo, trabalha no duro. Uma vez, há muito tempo, era um escaldante dia de agosto, fui dar com ele, sob um sol avassalador, sentado a uma mesa debaixo de uma árvore, na casa que alugava na Quinta do Lago, no Algarve. Apesar de se encontrar de férias, trabalhava, desde cedo, afogado em papéis. Com gosto. O gosto pela vida, o espírito de festa, o sucesso, nunca lhe impediram que multiplicasse por mil o dom do trabalho. Nem a sua desorganizada gestão do tempo ou a sua impontualidade o tornaram infiel face aos compromissos assumidos e foram centenas e de natureza diversa. (Era raríssimo faltar a uma aula nas universidades onde leccionou durante anos mas, quando tal ocorria, apresentava-se aos alunos aos sábados de manhã, para substituir a ausência forçada).

“Fartei-me de trabalhar, caramba!”, ouvi-lhe eu, num jantar em casa de amigos comuns, no dia em que o Expresso celebrou os seus 35 anos. Fora convidado pelo jornal como guest star para inspirar e fazer essa edição de aniversário. Tinham sido cinco dias intensos de labor para produzir um “resultado” com a sua assinatura e inspirado por si.

 Levara a semana na redacção: inventando novas secções, entrevistando gente, apurando notícias, redigindo editoriais, ouvindo pessoas, fazendo perguntas, perdendo tempo ao telefone. Guardara afinal intacto o segredo da arquitectura do produto final.

Mas este cavalheiro que vivia com saudades das redacções era, nessa noite, o mais feliz dos convivas e um jornalista felicíssimo.

O prestígio e a influência alimentaram rumores de ambições presidenciais. Belém passou-lhe pela cabeça. Não avançou preferindo apoiar Mário Soares, de quem sempre gostou e mais tarde — a contra gosto — Cavaco Silva, a quem nunca perdoou alguns gestos do passado (e de quem foi conselheiro de Estado.) Mas preferindo, isso sim, consagrar-se ao seu grupo de comunicação. E à vida, para a qual nunca teve o tempo que gostaria.

Tempos atrás, decorria o ano de 2014, ouvi Pedro Passos Coelho referir-me o “gosto” que teria numa candidatura presidencial de Francisco Balsemão. Em 2015 voltei a ouvir o mesmo ao então primeiro-ministro. Tinha razão. Teria sido — com Jaime Gama, e escrevi-o mais de uma vez – a mais sólida, séria e prestigiada “dupla” que a direita e a esquerda poderiam ter oferecido ao país, em janeiro de 2015.

Deus às vezes dorme.

Quanto ao mais, a vida segue. E o trabalho também, claro. Além disso, Francisco Balsemão continua a jogar golfe, a tocar bateria (às vezes piano), a dançar, a “divertir-se”. Viaja incansavelmente, mima os netos, aprende coisas, descobre outras, retém todas. É isso, a vida continua. E sobretudo, ele também.

O artigo original foi ligeiramente editado para reflectir alterações temporais e de contexto.