18-9-2002

 

ADÍLIA LOPES

 Cartas do meu moinho

 

  ÍNDICE:    
 

 

A escada

Dark Age

Boas

Gn 4, 9-10

A 1.ª classe

Conto tonto

Conto tonto

Colorado? Claro?

Mental e Mentol

Gravidez

Patchwork

Contrariedades

Historietas Lisboetas

Recordações com lápis

pen/pencil

Outono entre Anjos e Arroios

Souvenirs Pieux

A Marquesa de Alorna

O Malvado Zaroff

Uma família cristã

Puro É o Nojo

Criação

Borges para começar, Chagall para acabar

 

 

10-3-2002

24-3-2002

7-4-2002

21-4-2002

5-5-2002

20-5-2002

2-6-2002

17-6-2002

1-7-2002

15-7-2002

29-7-2002

12-8-2002

26-8-2002

8-9-2002

22-9-2002

6-10-2002

21-10-2002

4-11-2002

18-11-2002

1-12-2002

16-12-2002

5-1-2003

19-1-2003

 

 

 

 

PÚBLICO, 10 de Março de 2002

A ESCADA

 

 

 

Outras páginas neste site sobre Adília Lopes      O       O

 
 

Comprei por tuta-e-meia na loja da Imprensa Nacional ao pé da Casa da Moeda Folhas soltas da Seara Nova (1929-1955) da Irene Lisboa, livro organizado pela Professora Paula Morão. Estava em saldo, havia um molho deles. Embora me comparem à Irene Lisboa (1892-1958), eu não tenho muito a ver com ela. Explico-me. O José Blanc de Portugal (1914-2000) achava o que eu acho da Irene Lisboa: aquilo é que é escrever, aquilo é que é estilo. Mas eu acrescento: não sei se isso me interessa. Na página 9 do livro que referi vem esta transcrição:

“Pensar… de qualquer modo se pensa, inadvertidamente até, mas escrever é utilizar certa e exclusiva forma de pensar. Há sempre muitíssima técnica e estratégia no escrever”.

Irene Lisboa. Solidão I

Constatar que não posso escrever, nem viver, sem calcular, sem premeditar, sem planear, repugna-me. A vida, para mim, é contemplação, não é acção, nem quase é gesto. A vida é visão, contemplação do mundo. Estado que não precisa de palavras nem de números. É esse silêncio de quando passa um anjo. O silêncio que é comunhão e presença, o oposto da solidão e do vazio.

Regresso ao livro da Irene Lisboa, ainda não o li todo. Para já falo da capa: acho-a muito bonita, foi feita a partir de uma aguarela de Carlos Botelho (1899-1982), é uma paisagem de Lisboa. Nas cores doces, luminosas, pálidas, suaves, reconheço a frieza, a geometria e o vazio das prosas de Irene Lisboa. A paisagem de Lisboa, a aguarela do Carlos Botelho, não tem pessoas nem animais. De seres vivos, só uma árvore de pé mas que possivelmente já morreu. Lisboa aparece como um jogo de volumes, de paralelepípedos coloridos, um palco abandonado pelos actores mesmo antes de ser atacado por um bando de bailarinos ou por uma praga de andorinhas e de gaivotas.

A prosa da Irene Lisboa e as paisagens do Carlos Botelho têm, para mim, o aspecto terrível de serem cosy, heimlich, caseiras e, ao mesmo tempo, geladas e desertas. São caseiras como se dia nos restaurantes da mousse ou do pudim. Caseiras sem casa, caseiras fora de casa, caseiras para os que não têm casa. Durante muitos anos esteve na parede de uma casa fechada da Alexandre Herculano o graffiti: tanta gente sem casa, tanta casa sem gente. A prosa da Irene Lisboa parece-me tão abstracta, tão cerebral, que chego a achar Os Lusíadas mais autobiográficos, mais confessionais, que Solidão.

Na última reunião de condóminos da casa onde vivo, ficou decidido que cada um limpava o seu lance de escadas e que todos, rotativamente, limpavam a entrada. A entrada do meu prédio é de mármore e a escada uma senhora velha escada de madeira. Um dos meu maiores sonhos de criança era poder um dia esfregar e encerar a escada como a Maria, a criada terrível, podia fazer toda ufana e a mim não me deixavam. Fui uma intelectual à força. Bem vistas as coisas, não fiz a instrução primária. Também isto me separa da Irene Lisboa que foi professora primária.

Será com imensa alegria que vou limpar o pó e enterrar as baratas mortas, esfregar e encerar os degraus da escada da minha casa, do meu convento, do meu moinho, da minha ecclesia domestica. O termo ecclesia domestica (igreja doméstica, em Latim) é uma expressão antiga que encontrei nos parágrafos 1656 e 2204 do Catecismo da Igreja Católica. O meu espírito procura ser prático, religioso, poético (literário), científico e antes de tudo caridoso (amoroso). Como diria S. Paulo, de que serve limpar e subir ou descer a escada quando não há amor?

Já agora, se quiserem saber mais sobre a escada, leiam a comunicação “A Escada de S. João Clímaco”, de Ana Cristina Almeida. Este texto está publicado pela Universidade do Algarve no livro Figura coordenado por António Branco (Faro, 2001).  Aí encontrarão as belas imagens da Idade Média.

Não é nos corredores e nos quartos gelados da Irene Lisboa, no espaço, no labirinto da solidão, que me revejo. Mas na Gramática do mundo, livro de poemas da Professora Maria de Lourdes Belchior (1923-1998). Este livro, publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda em 1985, está esgotado, ao que sei. Revejo-me nos poemas da Professora Maria de Lourdes Belchior e nas lições de limpeza da escada da Dona Maria do Céu (certamente de muito mais alta qualidade do que os cursos de informática que fiz).

Gostava que destas minhas cartas ou crónicas ficassem as referências bibliográficas, as imagens dos pintores e os poemas. Acabo com a transcrição de um poema da Maria de Lourdes Belchior que evoca um quadro do pintor José Escada (1934 – 1980), este poema está no livro que referi. E o quadro julgo que ainda não vi. Mas quero ver.

 

RESSURREIÇÃO

a um quadro de José Escada

 

Um verde translúcido, transparente

marca o espaço da ressurreição: ergue-se

sereno o vulto bem desenhado do Cristo

não já crucificado mas

alçado do túmulo em direcção aos céus.

Ocre, cor de fogo, a luz envolvente da vida,

enraizada no verde escuro de uma árvore;

três mulheres curvadas veneram hierática a

figura do Cristo subindo. Olha-o cabeça erguida

perdida na contemplação, uma mulher de pé.

Assim construíste José Escada

com traços simples, a duas cores,

a tua “memória” da ressurreição

donde nascida? Transmitida com dignidade

hombridade do gesto a cada vulto adequado

veneração dos homens, quase alheamento do

anjo

não distraído mas

inibido de intervir

e plenitude de força na vitória sobre a morte

do Cristo ressuscitado.

 

 

PÚBLICO, 24 de Março de 2002

DARK AGE

  

Voltei a ver dois anúncios da Vodafone de que muito gosto: o da rapariga que se suja com ketchup e que diz “Estou” e seguem-se os hieróglifos sugestivos da BD e o da rapariga a ser beijada pelo cão e que diz “Já estou em casa”. Gosto muito destes anúncios, mas tenho horror a telemóveis – e a automóveis. Não me passa pela cabeça ter telemóvel nem automóvel.

Um livro que me acompanha desde 1978 é The Coming Dark Age (“A Idade Média que aí vem”) de Roberto Vacca. Há três anos atrás tentei encontrá-lo em Lisboa. Na base de dados bibliográficos da Biblioteca Nacional não vem. Ao que sei não está traduzido em português. De Roberto Vacca só existe em português Deus e o computador, editado pela Afrontamento em 1987, hoje esgotado. Roberto Vacca “é um matemático e uma autoridade em sistemas electrónicos e em computadores eléctricos” traduzo das primeiras páginas do livro referido, publicado por Anchor Books, New York, 1974. O livro original foi publicado em 1971, em Itália, com o título “Il medioevo prossimo venturo”. Este livro intelectualmente, mentalmente, excitante (e assustador) tem como subtítulo “O que vai acontecer quando a tecnologia moderna se avariar (colapsar, der o berro)? (“What will heppen when modern technology breaks down?”)

Tenho este livro em fotocópias. O Professor José Croca, da Faculdade de Ciências de Lisboa, emprestou-me o exemplar dele e eu fotocopiei-o numa loja de fotocópias. Passo a referir, por hoje, uma passagem sobre automóveis e outra que tem a ver com automóveis e com telemóveis quando estes últimos ainda não existiam. Começo por esta última.

Vem nas páginas 196 e 197. Alvin W. Weinberg, director dos laboratórios nucleares de Oak Ridge nos EUA chamou “primeiro dilema de Malthus” ao facto de a população crescer mais rapidamente do que os meios de subsistência. Malthus (1766-1834) estabeleceu que os meios de subsistência crescem segundo uma progressão aritmética enquanto a população cresce segundo uma progressão geométrica. Uma progressão aritmética é, por exemplo, a sucessão dos números naturais: 1, 2, 3, 4… Ou a dos números pares: 2, 4, 6, 8… Um termo difere do anterior pela soma de um mesmo número (mais 1 no caso dos números naturais, mais 2 no caso dos pares). Numa progressão geométrica, um número difere do anterior pela multiplicação ( e não pela adição) de um mesmo número. Por exemplo: 2, 4, 8, 16… Neste caso, multipliquei por 2 o número anterior para obter o seguinte. O “segundo dilema de Malthus” é a proliferante complexidade que acompanha o crescimento da população nos países tecnologicamente desenvolvidos. Weinberg estabeleceu, de maneira aproximada, que o número de contactos semânticos (por exemplo, comunicação, transportes, transmissão de poder, conflito) cresce com o quadrado do número de pessoas envolvidas.

Há um amigo meu que diz que, às vezes, parece que uma avó de 90 anos reencarnou em mim. Talvez fale como uma Velha do Restelo. Mas que qualidade de vida (de amor) tem o par de namorados que namora e simultaneamente atende cada um o seu telemóvel tilintante? E que dizer dos telemóveis dos católicos praticantes a tilintar durante as missas?

E até dos telemóveis dos padres católicos a tilintar durante as confissões? Lembro-me das aulas de Técnicas de Expressão do Português do Professor Mário Dionísio (1916 – 1993), que eu achava um velho rabugento. Nessas aulas da Faculdade de Letras, em 1983-84, o Mário Dionísio dizia que era preciso lutar contra a entropia. Hei-de voltar a este termo e a este conceito. Entropia, em teoria matemática da informação, tem a ver com ruído, no sentido em que, quando falávamos ao telefone, dizíamos que a comunicação tinha ruído porque os barulhos na linha nos faziam perceber Praga em vez de Braga ou 70 em vez de 60, por exemplo.

Na página 20, Vacca refere o livro The Costs of Economic Growth (“Os custos do crescimento económico”), de E. J. Mishan, professor de economia daLondon School

of Economics. Para este autor, “a invenção do automóvel particular foi um dos maiores desastres que se abateram sobre a espécie humana”.

Passaram-se 30 anos sobre o livro de Vacca. O admirável mundo novo, este século XXI, caracteriza-se, a meu ver, por uma barulheira infantil e infernal. Pela poluição na comunicação. Uso o termo poluição em sentido técnico. É preciso desentropiar, diria José Pinto Peixoto (1922-1996), meu professor de Termodinâmica na Faculdade de Ciências em 1979-80. Tive a mesma nota a Técnicas de Expressão do Português e a Termodinâmica: 17 (numa escala de 0 a 20). Não digo isto para me gabar. Se tivesse tido 12 também o dizia. Sinto-me feliz por ter conseguido esses 17.  Mas é um disparate ter a mania das notas (coisa que eu nunca tive). Para conseguir esses dois 17 trabalhei muito. Porém, uns berloques, uns telemóveis, uns automóveis, umas cabeleiras tintilantes e cintilantes e umas dicas, umas larachas parolas e abobalhadas, na aldeia em que as iludências aparudem, surtiriam efeitos que esses 17 não surtem. Também é bem verdade que as Faculdades têm muito de feira de vaidades. O que é uma pena.

Termino com um poema de Violeta Figueiredo, lido em Primeiro livro de poesia, livro fundamental, organizado por Sophia de Mello Breyner Andresen e editado pela Caminho. Nada como um poema para desentropiar (o ar, o sopro).

 

Alforreca e Faneca

 

Pobre de mim, tão Faneca,

Alforreca me fascina.

Sigo atrás da sua coroa,

dos seus terríveis cabelos

de gelatina e de prata:

só o vê-los me atordoa,

só o tocá-los me mata.

 

 PÚBLICO, 7 de Abril de 2002

 BOAS

 

Estou, neste momento, a reunir os meus textos em prosa num volume que se vai chamar “Prosas rosas” e que será publicado pelo Vítor Silva Tavares, o editor da casa & etc. Isto, se o Vítor Silva Tavares gostar do que ler, se eu não mudar de ideias e se Deus quiser. Não dou esta notícia com o intuito de vos levar, à má fé, a comprar o meu livro e aumentar assim a minha conta bancária. Escrever e publicar é o meu trabalho e é, para mim, uma questão de seriedade e de generosidade. Esforço-me por dizer coisas simples e complexas em frases gramaticais e poéticas. Isto não é blasfémia nenhuma, mas a multiplicação dos meus textos é para mim uma multiplicação de pães e de peixes. Tenho uma maneira aparentemente não muito católica, não muito ortodoxa, de ser cristã. Mas, contra ventos e marés, contra mim mesma, sei e sinto que sou cristã (cristã e católica). E que ser cristã é o meu fundamento (o alicerce, a raiz, o cerne).

Desconfio dos textos bonitos, dos textos boneco. O “Novo Testamento” é, para mim, um feixe de textos necessários, urgentes, capitais, radicais, rasos. Leiam, se não acreditam, o Evangelho segundo S. Marcos. Leiam também o magnífico conto de Jorge Luís Borges “O Evangelho segundo S. Marcos”, incluído no livro de contos “O relatório de Brodie” (título original “El informe de Brodie”). Vale a pena ler este texto de Borges no original, em espanhol. Leiam também esse texto-chave, capital para a compreensão de Fernando Pessoa, o poema do heterónimo Álvaro de Campos, cujo primeiro verso é “Ali não havia electricidade”. Neste poema, electricidade rima com caridade. Podem encontrar este poema no livro “Poemas de Álvaro de Campos”, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1992 (edição de Cleonice Berardinelli).

O texto que vão ler a seguir foi escrito por mim a pedido da pintora Amélia Assis. Este meu texto foi policopiado e distribuído na Livraria Ler Devagar (esta livraria fica em Lisboa, no Bairro Alto, na Rua de S. Boaventura 115-119). Como quase todos os meus textos em prosa é um mosaico. Preocupa-me ser precisa, exacta, falar verdade e estar viva.

A Amélia Assis nasceu em Lisboa em 1955. Trabalhou como assistente de bordo, trabalho que abandonou por razões de saúde. Frequentou cursos de pintura na escola ARCO e na Syracuse University em Nova York. Colaborou, como aderecista, na peça “A mulher das tristíssimas figuras”do Grupo de Teatro Joana. A exposição na Livraria Ler Devagar, em 2001, chamou-se “My name is woman”.

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Não, as mulheres não são boas. Essas grossas serpentes da América do Sul. Esses grossos compridos farfalhudos cachecóis. Paris troca de roupa. Escrevo este texto para a Amélia Assis usar na exposição dela na Livraria Ler Devagar em troca do quadro dela chamado “barbie buço brinco” que conto usar em minha casa.

*

A doce carícia de F. transforma-se em agressão depois da carta maldosa de F. O passado é feito pelo presente. E todo o presente está envenenado. E todo o veneno é remédio, é contra-veneno. A carta maldosa de F. é anulada pela posterior carta doce de F. A doce carícia de F. é a doce carícia de F. outra vez. Até quando? Atrás do presente (à frente) há mais presente. Sempre. Sempre. O fel é mel para Jesus na cruz. O mel é fel para a freira gorda que come mel demais, colheres atrás de colheres, e assim peca por gula e engorda. Espelho meu. Não consigo fazer dieta.

*

Ladies first: Julieta e Romeu, Isolda e Tristão, Hermenêutica e Mal-estar, Virgínia e Paulo. Eva e Eva. Nunca fui boa aluna a Inglês. Mas o Inglês tem coisas maravilhosas, claro, tão maravilhosas como o Francês em que o mar (la mer) e a mãe (la mère) se dizem da mesma maneira. Em Inglês, o mundo (world) e a palavra (word) distinguem-se, escritos, por uma única letra. Deus (God) é um anagrama de cão (dog). J. L. Borges pode resumir-se nisto. Uma capicua ao espelho. O W inicial é feminino. Woman (mulher), Wife( mulher, no sentido de esposa), Water (água), Warm (quente), Wool (lã), Wood (madeira)Womb (útero), Woo (pedir em casamento), Wedding (casamento), Witch (bruxa)… A Amélia Assis usa o O (de osga, de ovo, de ovário, de orgasmo, de Oh!, de ó-ó, de zero). E usa a silhueta da mulher dos anos 60 (a mulher de saias, o símbolo do sexo feminino para o WC público). É a hospedeira, o tailleur Chanel, Jackie Kennedy. A capa dos blocos de papel de avião que a minha avó Zé usava para escrever cartas à Prima Regina do Brasil tinha uma hospedeira assim.

*

À ida para o atelier da Amélia Assis, algures em Agosto ou Julho, vejo uma ratazana esborrachada, calcada, passada a ferro por sucessivos carros. Vejo que é uma ratazana e não um gato por causa da cauda. Ao voltar do Atelier da Amélia Assis, dia 11 de Setembro, pelas 14h30, enquanto dois aviões furavam o World Trade Center, em Nova York, vejo uma osga esborrachada, espalmada, (e as osgas, por natureza, já são espalmadas), enfarinhada pelo pó do chão, da rua, como um croquete pronto para ser frito. Ratazana e osga faziam a sua vidinha nas ruas torcidas, retorcidas, de ferro forjado, da velha Lisboa. E a cidade de lata, de teatro, outonece. Mas isto já são Belas Letras.

*

O Príncipe dá um beijo tão forte na boca da Bela Adormecida que lhe arranca um bocado da boca. A Bela Adormecida fica tão contente por ser acordada pelo Príncipe que lhe dá um abraço tão apertado que o estrangula e se estrangula.

A Branca de Neve, a Bela Adormecida e a Gata Borralheira tomam as três juntas banho na mesma tina de zinco cheia de água morna e sais de banho. Estranho banho, dirão. Ainda mais estranho se pensarem que as três vão ficar lá até derreterem completamente como três cubos de açúcar em café ou chá.

 

PÚBLICO, 21 de Abril de 2002

Gn 4, 9-10

 

Não penso que sejam só os padres, os frades e as freiras, os pastores e as pastoras, quem tem a capacidade, a habilidade e a autoridade para falar e escrever acerca dos textos sagrados. Tenho pena que no meu país, país de católicos (diz-se) e, se calhar, em muitos outros, Gn 4, 9-10, seja tomado, muito provavelmente, como a matrícula de um automóvel e não como a sigla para designar uma passagem da Bíblia ( do Livro do Génesis, primeiro livro da Bíblia, do Antigo Testamento, capítulo 4, versículos 9 e 10).

 

Uma colega minha da Faculdade de Letras contou que umas colegas tinham oferecido a outra, que fazia anos, uma Bíblia em que tinham escrito uma dedicatória com muitos palavrões e coisas brejeiras e em que diziam isto: “para tu leres só quando fores muito velha”! Tanta ignorância, ingenuidade e grosseria literária brada aos céus. Aos céus azuis, macios, pios, católicos, de Portugal. A pesada herança salazarista-soviética também é isto.

 

Há um livro a que volto sempre: Gramática do mundo de Maria de Lourdes Belchior (editado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda em 1985). Já o referi nestas minhas crónicas. Não conheci Maria de Lourdes Belchior pessoalmente. Vi-a só uma vez, ao vivo, nos corredores da Faculdade de Letras de Lisboa. Gostava de ter sido aluna dela. Há outro livro a que volto sempre: Poemas para rezar de Michel Quoist (editado pela Moraes em 1970, 6.ª edição).

 

Eu sei que pode parecer estranho, esquisito, a alguns olhos (ou ouvidos) que uma pessoa como eu, que escreve palavras como “merda”, goste de livros em que se escreve a palavra “Deus”. Pronuncio muito raramente palavrões e termos de calão. Ultimamente, já há uns anos, uso muitos palavrões nos meus poemas. Alguns desses palavrões só os conheço por via erudita (romances de Nuno Bragança e de Almeida Faria, por exemplo) e nem sei ao certo como se pronunciam. Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu “Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno” e, no mesmo texto, “a poesia é uma moral” (in “Arte poética III”).

 

A minha mãe contava que, no Colégio de S. José, nos anos 40 do século passado, na Rua José Estêvão em Lisboa, uma freira dizia a outra freira que tinha pronunciado “merda”: “Ó irmã, diga “arroz” que também tem cinco letras”. Pois, mas não é a mesma coisa. Para já, não é a mesma coisa foneticamente. Não quero que nenhuma palavra baixe a cabeça no meio da frase. Assim agrado e desagrado a gregos e troianos. Do ponto de vista linguístico, científico, filológico, acho isto correcto, honesto. Talvez isto seja demasiado rebuscado e complicado, um paradoxo, mas é até, e sobretudo, do ponto de vista da moral que eu acho isto certo.

 

Gosto especialmente dos filmes de Buñuel (1900-1983) e dos textos de Borges (1899-1986) porque só criaturas que meditaram e mergulharam de facto muito fundo na experiência de Deus e do sofrimento conseguem chegar àquelas conclusões, àquelas imagens, àquele encadear lógico-dedutivo ou antes teológico-dedutivo. A Pastora Eva Michel, protestante, alemã, disse-me uma vez que está convencida, na medida em que se pode estar convencida de uma coisa destas, que Deus não se incomoda com as nossas associações de ideias iconoclastas, blasfemas, com as nossas dúvidas teológicas, existenciais, com os nossos palavrões, com as nossas fantasias mais descabeladas. Aquilo que incomoda, preocupa, ofende Deus é a indiferença e a hipocrisia. A grande pergunta, a terrível pergunta, a velha antiga pergunta que está no princípio da Bíblia (em Génesis, capítulo 4, versículos 9 e 10) é a que Deus faz a Caim “Onde está o teu irmão Abel?” e “Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim”.

 

Como diz o meu amigo João Dionísio, professor de literatura medieval, nos meus textos e nas minhas conferências há saltos mentais, intelectuais, demasiado bruscos, rápidos, vertiginosos, faltam articulações, ligamentos, tendões, rótulas, joelhos e cotovelos verbais, que permitam aos leitores acompanhar os meus raciocínios. São ossos do meu ofício: escrever poemas só depois de demonstrar teoremas. Leitor ou leitora que me lês, sabes de cor algum poema? és capaz de enunciar e demonstrar o teorema de Pitágoras? Gosto de acabar as minhas crónicas com um poema. Um dia acabo com um teorema. Esta crónica ou carta está a ficar muito obscura, muito críptica. Termino com os últimos versos do poema da Professora Maria de Lourdes Belchior, do livro de poemas citado, com o título “Da vida como teatro” (p. 76):

 

“(…)

Robertos mais ou menos espertos em demanda da saída

para a vida isto é para a peça construída

pelo homem dos cordelinhos. Será possível

ser Deus o homem dos cordelinhos? E a

minha liberdade? “Os temas estavam tão batidos”

nascer, comer, dormir, fornicar, defecar, respirar, viver

E depois, o morrer? E depois do morrer?

 

 

 PÚBLICO, 5 de Maio de 2002

A 1.ª classe

Começo sempre um texto, isto é, chego sempre ao texto, esse abismo e esse sofá, a achar que quero ir para a escola, para a 1.ª classe. Regresso pois, por hoje, à minha 1.ª classe, de que não guardo nenhuma recordação má, só boas recordações.

 

A prendi a ler e a escrever no ano lectivo de 1966-1967. Foi no Colégio do Sagrado Coração de Maria, na Manuel da Maia, em Lisboa. A professora era a irmã Maria Antonieta. Era uma mulher muito nova, bonita, fresca, doce e inteligente, muito simpática, séria, alegre e comunicativa. Usava hábito até aos pés. Perto dela cheirava a engomado e a lavado. Dessa primeira classe ficaram fotografias e o exame (o teste, o ponto, o exercício final) em que tive Muito Bom. Numa das fotografias, estou mascarada de saloia ao pé de outras meninas, também mascaradas, e da irmã Maria Antonieta. Diz-me a pastora Eva Michel que, na Alemanha, as regiões em que se festeja o Carnaval são católicas, nas zonas protestantes não se festeja o Carnaval. Os fatos tradicionais das zonas protestantes são escuros, pretos. Os das zonas católicas são garridos.

Portugal e eu, nos anos 60, na minha memória, somos muito essa fotografia do colégio das

freiras: a irmã Maria Antonieta, vestida de freira e não mascarada de freira, e eu mascarada de saloia e uma saloia, uma pirosa para a minha prima Vera, para a Zé Botelho e para a dúzia de filhos e filhas de intelectuais portugueses que conheci ao longo do liceu. A verdade dessa fotografia fia fino: o fato de saloia era da minha prima Vera, filha do irmão da minha mãe, a tal presumida que me achava uma pirosa, uma saloia, esse fato. mais tarde, foi parar à minha prima Manelas, filha de uma prima direita do meu pai, que para a Zé Botelho dos quatro costados era uma pirosa. Não estou a dizer mal da minha prima Vera nem da Zé Botelho porque estou a dizer como elas eram (e como ainda devem ser, há anos e anos que levaram sumiço). O snobismo é um pecado gravíssimo. Marcel Proust escreveu sobre isso. As duas criaturas acima referidas eram de uma estupidez gravíssima porque são muito inteligentes. Têm 40 anos, têm 4 anos – são uns monstros. Não sabem o que fazem, apesar das aparências em contrário. Envergonham-se da infância que tiveram, querem aparecer sempre como pessoas crescidas e perfeitas, só os tachos e penachos contam para elas. São extremamente vulgares: a maior parte das pessoas é assim. Mas deixo isto por agora.

Chegada a este ponto, recorrente nos meus textos em prosa, ocorre-me uma passagem de Maria Velho da Costa, do livro “Dores” do conto “O Assassinato da Bela Seresma”. Transcrevo-a: “Fazia escritos memorialistas a roçar  a denúncia de familiares e próximos, trabalhos de mão de algum mérito, ou pastosas ficções filosofantes sobre inomináveis delíquios. Dizia-se que estava crente, a serena Seresma.” Devo dizer que gosto muito deste conto. Seresma não morre: mata. Mas revelar isto assim anula o “suspense”.

Vou transcrever a seguir a minha redacção da “Prova de Passagem da 1.ª à 2.ª classe” (afinal é este o nome desse exercício escolar). O tema era “O que queres ser quando fores grande”.

“Eu quando for grande quero ser hospedeira do ar, para ver os passarinhos a voar de um lado para o outro, e para levar os passageiros e para voar sobre o mar e para ver os barcos de pesca, com as velas de todas as cores, etc.”

Nunca fui hospedeira, mas adoro andar de avião e adoro aeroportos. E, acima de tudo, gosto de cores, de todas as cores. Continuo a mesma.

A espertalhona sabidona quarentona que me lê diz: mas que querida que é esta Adília!

Que interesse é que isto tem para mim que fui ver “O Delfim”, o David Lynch, o Gilbert & George? E tu, rapariga de 90 anos que me lês, o que é que tu queres ser quando fores crescida? A Deus nada é impossível. Matusalém viveu 969 anos. O que é que te apetece fazer a seguir?

Na prova de Aritmética tenho os problemas bem resolvidos: o raciocínio e os cálculos estão todos certos. Transcrevo um dos problemas: “A mãe comprou um quarteirão de bananas. Os filhos comeram dúzia e meia. Quantas bananas ficaram?” Não sei se hoje as crianças sabem o que é um quarteirão.

Da prova de Aritmética faziam parte dois problemas e quatro contas. A última conta está mal. Em toda a prova não dei um único erro de ortografia nem de gramática nem de raciocínio e não há nada riscado. Mas não há bela sem senão. E eu transcrevo a bela e o senão. Transcrevo a conta errada: (5+5-2) + (3+4-3) = 3.

O desenho a lápis de cor que fiz a alto da folha do teste tem uma igreja e uma menina, uma ao lado da outra, com o centro do desenho ao meio, a igreja à esquerda, a menina à direita. Além de igreja e menina, tem: o Sol, um pássaro a voar, flores, árvores e, por cima de tudo, a barra azul do céu. A data da prova é 31 de Maio de 1967.

Para rematar esta crónica, escolho um dos meus poemas mais antigos, escrito aos 11 anos, publicado em “Minha terra, minha gente” de Cristina de Mello e outros, Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa, 1976.

 

A flor

 

Uma flor é uma coisa tonta.

Uma borboleta presa por um pé

Com mil olhos e mil asas que não voam.

Uma flor escuta o vento e o pio do pardal.

A flor é bela e tontinha, tontinha.

 

Conto Tonto
 

Segunda-feira, 20 de Maio de 2002

Em tempos que já lá vão escrevi este conto tonto que podem ler a seguir. Foi publicado pelo "Jornal do Fundão". Dou-o agora outra vez à estampa. Tomo como modelo para as minhas prosas de ficção os dois romances que li da escritora americana Lucy Ellmann (nascida em 1956): "Sweet desserts" e "Varying degrees of hopelessness". Estão ambos publicados pela Penguin Books. Foi a influência que escolhi. A prosa de Lucy Ellmann é um instrumento para mim, uma ferramenta, mais do que um modelo. Sei pouco Inglês, mas consigo ler estes dois romances no original. Divido o meu conto em duas partes porque é um bocadinho extenso.

E o dente de ouro? Perguntou Aniceto. Tinha sido arrancado depois de morta. Aniceto saiu para o Campo Santana. Flora ia a enterrar sem o dente de ouro. Tinha sido um tratamento antigo, fora de moda, feito na província, por um dentista com bexigas. Flora contara-lhe tudo precisamente num banco do jardim do Campo Santana. Ainda se namoravam e ainda não tinham ido para a cama. Flora tinha um molar de ouro. Fora ao sair da adolescência. A falta do dente notava-se muito. O dentista tinha-se feito ao piso, Uma menina tão bonita sem um dente, tinha dito uma piada sobre cavalos e tinha-lhe dado uma palmada. Esse veterinário, era assim que tratava o colega que tinha arrancado o dente a Flora. E, de facto, não há dobermann com dentes de ouro.

Era do ar, das promessas ao Dr. Sousa Martins, do cheiro a velas e a cravos. O ar era o mesmo, o ar do tempo do namoro moroso com Flora. Os cheiros do ar, a quentura do ar, a friura do ar, o ar como um mar. Aniceto lembrava-se agora do beijo que dera a Flora depois de saber que o dentista que arrancara o dente se chamava Lopes e que o dentista que colocara o dente de ouro se chamava Sousa Couto. O desaparecido dente de ouro tinha dado sex-appeal a Flora. Um sex-appeal sui generis. Era de novo essa tarde de namoro primaveril, moroso, em que tinham dado o sétimo French kiss. Aniceto resolveu tomar a sétima bica dessa manhã no café Primavera. Tinha uma Weltanschauung, que gostava mais de traduzir por contemplação do mundo do que por concepção do mundo. E isto enchia-o de orgulho. Com a sueca e com o dobermann da sueca falava sempre em alemão.

A contemplação do cadáver de Flora não lhe provocara lágrimas. Mas saber que ela não tinha o dente de ouro dentro da boca era como saber que ela não tinha vagina, como as bonecas das infâncias das irmãs. Este pensamento afligiu-o até ao dia do funeral. Dia em que descobriu o dente de ouro.

A mãe de Aniceto disse ao filho "Agora não olhes" quando as pazadas de terra caíram sobre o caixão na vala fresca do Alto de S. João. Mas Aniceto olhou. Os ciprestes tinham olhos. Também então não houve lágrimas, mas houve ranho. Procurou o Kleenex no bolso direito do casaco e sentiu além do lenço, antes do lenço, depois do lenço, de mistura com o lenço, uma pedrinha, não, um bibelot. Era o dente. Pensou que com o dente podia acrescentar a aliança de Flora e fazer o papel do viúvo a preceito: duas alianças no anelar esquerdo mais o anel de brilhante de solteiro. Porque não tinham roubado a aliança de Flora.

O agente Coelho assobiou: o dente! Sabe como foi parar aí? Aniceto não sabia.

Saiu para o sol da Gomes Freire. A tia Ermelinda tinha-se distraído a ver os presos construir o actual edifício da Judiciária. Morava na esquina em frente, num prédio que foi abaixo. Resolveu ir até ao Campo Santana. Sabia muito pouco alemão. Tinha em casa "O alemão tal qual se fala" do avô materno que lhe servia para conversar com a sueca e com o cão. Pensara mesmo escrever à sueca uma carta de amor em alemão, mas o melhor que encontrou n' "O alemão tal qual se fala" foi como contratar um moço de recados. O colega Prista disse-lhe que podia pedir ao moço de recados para escrever ele a carta de amor em alemão. E de novo o ar como um mar, o namoro com Flora, o ranho, o dente. Porque um segundo dente estava no seu bolso direito tal como o primeiro. Mas este não era o da Flora, pois não? Voltou para trás. O agente Coelho tinha saído. Mas era preciso dar a notícia do aparecimento do segundo dente de ouro.

Pela Joaquim Bonifácio ou Jacinta Marto, não sabia ao certo o nome da rua, afastava-se o mulato diplomata com um dobermann pela trela. Aniceto gritou:

- Lebewohl!

E o dobermann correu para ele arrastando o mulato diplomata pela Joaquim Bonifácio ou pela Jacinta Marto acima.

Com que então conhece o cão e não conhece o dono? Perguntou o mulato a Aniceto. O dono? Perguntou Aniceto. Claro, o pide, o Santos Sousa, não se lembra da nossa conversa? Continuou o mulato. O Santos Sousa conhecia de vista, de ouvir falar, pessoalmente, não, o cão, sim, respondeu Aniceto. O cão sim? Perguntou ou exclamou o mulato. Os senhores sabem quem governa o mundo? Eram dois homens de gravata, um de meia idade, outro novo, muito sorridentes, com revistas na mão. Aniceto não se fez rogado. Como é que ele ia explicar ao diplomata o conhecimento pessoal do cão? E também quem o tinha mandado a ele chamar pelo cão? Quem governa o mundo é Deus, respondeu Aniceto. Esta é a verdade. Então como explica as guerras, a morte, a fome, as doenças, os flagelos que afligem a Humanidade? Continuou o par de gravata. Mas Aniceto não estava interessado, queria só livrar-se do mulato, não sem tirar a limpo como é que o Lebewohl lhe tinha ido parar às mãos. Há um antagonismo entre a bondade de Deus, infinitamente misericordioso, e o sofrimento do mundo. Esse antagonismo é um mistério, respondeu Aniceto. Porque não fala no Diabo? Foi a vez do mais novo. Porque me custa. Se Deus criou tudo, tudo o que é visível e invisível, também criou o Diabo e eu não percebo porque é que Deus criou o Diabo. Mas como é que o Lebewohl da Greta tinha ido parar às mãos do mulato diplomata é que o intrigava. Já vimos que o senhor é uma pessoa religiosa, esta revista vai esclarecê-lo, muito obrigados, boa tarde, agradeceu e despediu-se o de meia idade.

(à suivre)

 

PÚBLICO, 2 de Junho de 2002

Conto tonto

 

Continua hoje e acaba o meu conto policial. Detesto escrever em prosa porque me distrai, me entretém, porque é para mim uma alienação. E porque me expõe, de uma maneira que os poemas não fazem. Penso sempre deixar de escrever. Mas acarto a pedra, feliz como Sísifo, pobrete mas alegrete. O meu conto, relido agora, é infantil e macabro. Espero que, na vossa vida como nos contos, descubram sempre o alçapão que leva do vale das sombras e das águas da morte aos prados verdes e cheios de luz da vida. Se os quadros de Picasso e de Picabia não servem para isso, não servem para nada. A literatura – e a pintura – é, para mim, uma questão de generosidade, de entrega, de optimismo, de a alma não ser pequena.

 

Com que então conhece o cão e não conhece o dono? Aniceto aflito levou a mão ao Kleenex, mas só encontrou o dente que tinha de entregar ao agente Coelho. Olhe, sabe que mais: não tenho de responder a essa pergunta. O senhor Aniceto vai-se arrepender. E  mulato recomeçou a descer a Joaquim Bonifácio ou a Jacinta Marto com o cão. Era um mulato catita, janota, bem vestido, de fato completo, de pasta de executivo e de óculos escuros de marca. Aniceto pensou que a Ministra da Saúde não usava óculos. Se usasse óculos e fosse casada com a Flora como ele sabia como era importante os óculos Calvin Klein serem comparticipados pela segurança social. Porque é que Aniceto não havia de ser giro? Um polícia giro como os dos filmes americanos. Era assim que Flora gostara dele ainda ela tinha acne. Tinham-se conhecido num café do Carmo, quatro anos depois do 25 de Abril. Tinham sido marxistas e nunca tinham lido Marx. Flora detestava a Pintassilgo por ser comunista, Aniceto achava-a simpática e não tinha a certeza de ela ser ou não filiada no Partido Comunista. Flora detestava o Eanes por ser comunista. Citava a piada do Cid: sou católico, mas não pratique; não sou comunista, mas pratique. Era em 1978 e os talheres de prata fugiam para a Suiça. Aniceto sonhava com uma carreira de paraquedista. Flora não sabia bem o que queria, embora soubesse muito bem. Dos dois era Aniceto o que não sabia o que queria e que citava o Cid.

Sim, porque é que um polícia português não pode ser giro? E um pide pode ser giro?  O Santos Sousa era giro? Ia vender o anel de brilhante e dar para a igreja dos Anjos a gravata preta. Ia vender a aliança da Flora. Ficava porém com a dele para parecer casado porque as mulheres gostam muito de homens casados. Mas então lembrou-se da mãe que tinha vindo de propósito de Cidadelhe para assistir ao funeral da nora.

Os eucaliptos do Hospital Dona Estefânia têm olhos. Os olhos dos pássaros, claro: pardais, melros e pavões. Não, não era a loucura. O dente de ouro no bolso do casaco era a prova de que não estava louco. Mas até as paredes sem janelas tinham olhos. Lembrou-se felizmente de um quadro de Picabia em que umas maminhas com soutien são olhos com óculos. Porque é que Aniceto não se há-de lembrar de Picabia se o pôde contemplar no Centro Cultural de Belém? Porque é que um autor de romances policiais não há-de ganhar o Nobel? Rex Stout merecia o Nobel, o colega Dionísio era da mesma opinião. Aniceto já não sabia se Rex Stout tinha ganho o Nobel ou não, mas o colega Dionísio devia saber, sabia tudo, sempre.

Tinha vontade de pôr a mãe na rua, de deitar no lixo o coelho que ela tinha trazido de Cidadelhe dentro de uma alcofa ainda com o pêlo sujo de sangue e de convidar a Greta ou a Mónica para um jantarinho romântico chez lui feito por ele com muitos orégãos.

Aniceto meteu pela Rua Dona Estefânia e virou na Rua de Medicina Veterinária. Ia à lojinha de brinquedos de madeira alemães comprar papel de carta reciclado alemão, azul turquesa, a dizer Andantino para escrever uma carta de amor à Lebewohl. Foi até à Espiral, pediu um sumo de cenoura que lhe custou 230 escudos e pôs-se a escrever com a ajuda d’”O alemão tal qual se fala”:

Guten Tag, mein Lieber Lebewohl, wie geht’s? Es freut mich sehr, Sie zu kennen Lebewohl. Ich werde Sie begleiten. Kommen Sie mit mir: wir werden den Dom besuchen, das Franzis kanerkloster, die Bavaria, den englischen Garten, die Isarauen, die Pinakotheken, die Glyptothek und die Maximiliansstrasse. Wollen Sie Milch, ein Herrli?

Como Aniceto de alemão só sabia que Weltanschauung é contemplação, concepção, visão, etc. (Anschauung) do mundo (Welt) e que Volkswagen é carro (Wagen) do povo (Volk), é melhor traduzir:

Bons dias, meu caro Adeus como passou? Tenho o maior prazer em conhecer v. ex.ª Adeus. Acompanhá-lo-ei. Venha comigo; iremos à Sé, ao convento dos franciscanos, à Bavaria, ao jardim inglês, aos prados do Isar, às pinacotecas, à gliptoteca e à rua do Maximiliano. Quere v, leite, meu senhorinho?

Já deviam ser horas de o agente Coelho ter voltado, se é que tinha voltado, só vendo. Era no Carmo, Flora contava-lhe do professor de filosofia do Pedro Nunes, dizia que havia um stand de automóveis na Infante Santo que tinha um letreiro que dizia “Só vendo”. E o professor dizia que “vendo” tanto podia ser, dado o contexto, do verbo “vender” como do verbo “ver”. Lá estava o Coelho. Sabe como foi parar aí? E batia à máquina.

Depois em casa, rejeitou o coelho de Cidadelhe. Deitou-se sozinho antes de a mãe se deitar. A mãe ficou a arrumar a cozinha e a ver uma telenovela ou duas. E Aniceto teve um sonho como o faraó.

 

Colorado? Claro?
Segunda-feira, 17 de Junho de 2002

Penso que mostrar só o lado cor-de-rosa das coisas é pecar por omissão. Mas mostrar só o lado negro das coisas é pecar também e também por omissão. É preciso mostrar o lado ultravioleta e infravermelho. O lado verde, o lado azul, o lado branco. Gosto de ver. Não sou nada "voyeur" (o feminino deve ser "voyeuse"). Não há, é claro, perversão nenhuma nisto. Gosto de cores, de todas as cores. Do amarelo gritante, berrante, garrido, chilreante da casa em frente. E gosto de ver claramente visto e claramente vista. Gosto de participar e de ajudar.

Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), o pintor impressionista, pai do realizador de cinema Jean Renoir, descobriu numa tabacaria o segredo da pintura. Entrou para comprar tabaco a pensar na pintura e nos seus problemas. O empregado mostrou-lhe duas caixas e perguntou-lhe:

- Colorado? Claro?

Renoir respondeu:

- Colorado! Claro!

Mas esta era a resposta à questão que o preocupava de facto: o que é a pintura? Renoir comprou as duas caixas de tabaco e saiu.

Conheço esta história em terceira mão. Vem em Inglês no livro "Renoir" de Colin Hayes, Spring Books, Londres, 1961, p.24. O autor diz que este episódio da vida de Renoir está relatado por Albert André na sua biografia do pintor, "Renoir", Paris, 1923. A terceira mão de que falo é o próprio Renoir a contar a história, vivida por si, a outra pessoa. Originalmente a história acontece com duas palavras espanholas: Colorado, Claro. Dois adjectivos que são também dois nomes próprios. Em Francês, com Renoir e Albert André, em Inglês com Colin Hayes e aqui em Português comigo mantém-se o Espanhol.

Não vale a pena dizer que os quadros de Renoir são lindos e que os devem ver e rever. Uma das coisas mais maravilhosamente democráticas deste meu tempo é haver chapéus-de-chuva com a reprodução estampada do quadro de Renoir "The umbrellas". A minha amiga e vizinha Maria da Luz comprou um chapéu destes em Viena. E ainda mais maravilhosamente democrático é ser cada vez mais fácil poder ir a Londres ver face a face o verdadeiro quadro de Renoir na National Gallery.

Conversar com Renoir face a face e tomar café com ele no café Danúbio como faço com a Maria da Luz seria fantástico. Acredito piamente que um dia, não muito longe, não muito perto, no tempo que há-de vir, no espaço prometido, isso terá lugar, acontecerá.

As reproduções de obras de arte fazem mais bem do que mal porque embora as adulterem e banalizem, familiarizam-nos com elas. Ponho aqui, no entanto, duas questões que me parecem fundamentais. Uma caixa de bombons Baci (quer dizer beijos em italiano) com a reprodução de "O beijo" de Klimt na tampa não são beijos: são bombons, são chocolate. E uma reprodução do quadro "O beijo" de Klimt não é o quadro "O beijo" de Klimt. Nunca estudei Biologia, mas sei que um clone de Klimt não pintará outra vez "O beijo". Sabemos que o único acontece uma vez e não se repete. E só há únicos. A reprodução fez sempre muita confusão. Cito J. L. Borges (texto intitulado "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" incluído no livro "Ficciones"), traduzo, "um dos heresiarcas de Uqbar declarou que os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens". Apetecia-me escrever muito mais sobre este assunto mas esta crónica já está com 3 788 caracteres. Tem no máximo 4 500 caracteres. Vou parar. Não quero meter o Rossio na Betesga.

Nem tudo são rosas. A par de mim e de tanta gente que se deleita com Renoir há os que não querem, não podem ou perderam a capacidade de se deleitar com Renoir. Há tempos, ao sair do Centro Comercial das Amoreiras, vinda da capela, um pobre, dos muitos que andam por lá à volta, veio ter comigo. Ia-lhe dar uma esmola, mas ele disse-me que não queria dinheiro. Pediu-me que lhe comprasse um croissant com queijo. Não valia a pena dar-lhe o dinheiro porque os seguranças não deixam entrar os maltrapilhos. Voltei atrás, comprei-lhe o croissant com queijo não sem pensar que podia ser um aldrabão que me estava só a gozar. Mas não. Vi-o comer o croissant. Conversámos mais. Passa ali o dia e também, é claro, não o deixam entrar para ir à casa de banho. Fiquei com a impressão de que era um pobre sério. Pus-me a pensar se o deixariam entrar no Centro Comercial das Amoreiras só para ir à capela. Provavelmente não. Isto escandalizou-me, horrorizou-me. Passei a frequentar a igreja de S. Domingos, ao Rossio, as marcas do fogo não foram apagadas e na porta principal há um cartaz discreto mas bem visível que diz "Assistência de emergência". Aí se dão em bom Português moradas e telefones para encontrar em Lisboa comida, abrigo, duche, trabalho, advogado, etc.

Não é fatal que a sociedade do bem-estar exija a sociedade do mal-estar. Mais do que não ser fatal, não é sensato. E é imoral.

O chapéu-de-chuva da Maria da Luz é Made in China, feito possivelmente por chinesas operárias pagas ao preço da chuva.

 

Mental e Mentol
Segunda-feira, 1 de Julho de 2002

Estou a arrumar o meu arquivo e a minha casa. Não tenho a certeza de que o texto que vão ler a seguir seja inédito. Pode ter sido publicado pelo "Jornal do Fundão", já há anos. Penso, no entanto, que faço mais bem que mal em publicá-lo novamente (ou pela primeira vez).

Aproveito para aconselhar vivamente três livros:

"Esquizofrenia: conhecer a doença" de Pedro Afonso, CLIMEPSI Editores, Lisboa, 2002 (não é ficção, não é poesia, não é parlapatice)

"Os coxos dançam sozinhos" de José Prata, Edições ASA, Lisboa, 2002

(é um romance policial: é boa ficção, não é parlapatice choninhas)

"O que é comunicação" de José Rodrigues dos Santos, Difusão Cultural, Lisboa, 1992

(não é ficção, não é poesia, não é parlapatice)

A minha escolha destes livros é seguramente subjectiva, mas também é objectiva. Subjectividade e realidade, sobrevivência e bem-estar são o objecto destes três livros, a meu ver. A traço grosso posso dizer: a informação, como o pão, exige digestão.

Agora segue-se o meu texto velho para o "Jornal do Fundão", que anunciei.

Quando, aos 20 anos, quase 21, consultei o Dr. Coimbra de Matos, psicanalista, estava muito magra, não dormia quase nada e o período tinha deixado de aparecer há meses. O Dr. Coimbra de Matos achou-me muito deprimida, disse-me que eu estava quase a chorar. No fim da consulta, disse-me que ia falar com a minha mãe e acrescentou "Esteja descansada que não vou contar nada à sua mãe".

Voltei para casa com a minha mãe, de táxi. Era de noite e eu sentia-me muito aliviada porque o Dr. Coimbra de Matos me tinha dito "Agora não estude". Estudar e ter notas altas, no meu caso, era auto-destrutivo, alienante, como se diz das drogas.

Depois de jantar, fui a casa das Botelhos. As Botelhos eram minhas vizinhas, a Zé e a Ana Maria. A Zé tinha sido minha colega de carteira durante os oito anos do ensino secundário, mas nunca tinha sido minha amiga. Disse-lhes que tinha de fazer psicoterapia. A Ana Maria, irmã da Zé, com menos quatro anos do que eu, disse logo: "Pois, tu sempre foste maluca, besuntavas as bonecas com creme Nivea". As Botelhos, penso eu, achavam-se mais inteligentes, mais bonitas e mais nobres do que eu e tinham inveja de mim por eu conseguir melhores notas e por os meus pais me darem mais dinheiro do que os pais delas lhes davam. Aproveitaram para me gozar, achincalhar e abandonar. Se eu lhes dissesse que tinha um cancro, julgo que tinham reagido doutra maneira.

Há um preconceito em relação à doença mental que não há em relação às outras doenças. É para ajudar a desfazer esse preconceito que escrevo isto. Mas estou afinal no mesmo barco que os doentes do Júlio de Matos que pedem esmola na rua para tabaco e café. Quando disse ao Professor Pinto Peixoto, meu professor de Termodinâmica, na Faculdade de Ciências de Lisboa, que tinha estado "doente dos nervos", ele disse-me "doenças de nervos são doenças de ricos". O Professor Pinto Peixoto é o mais célebre meteorologista português, era inteligentíssimo e muito culto, mas isto que me disse é um disparate: a doença mental afecta tanto os pobres como os ricos.

Volto sempre à frase de Francesc Parcerisas, poeta catalão: uma poetisa tem o direito de apoiar candidatos à Presidência da República e de declarar à televisão o que come ao pequeno-almoço. Penso que todos devíamos ter esse direito. Mas, quando torno público que tenho uma doença mental, sei que é muito mais fácil para mim fazê-lo do que, por exemplo, para uma educadora de infância ou para um polícia. Ser poetisa, ser artista, é, neste caso, um escudo visível que me protege. Pelo menos, parece-me que é assim. Mas ser poetisa não me dá dinheiro para viver e é aí que ser poetisa e ter uma doença mental põe problemas. Por isso não é assim tão fácil, para mim, assumir publicamente que tenho uma doença mental. Admite-se uma poetisa louca, isso pode até funcionar como chamariz, aumentar o valor dos seus textos (aos meus olhos, não aumenta nada). Mas uma professora do ensino secundário louca? Uma bibliotecária louca? Uma animadora cultural louca? O artista pobre, genial e louco só é admitido depois de morto. E afinal não é esse o meu papel. Como vou contar, já fiz muitos disparates em público, mas, segundo o psiquiatra que me trata agora, tenho uma doença mental compensada. Isto, para mim, é como ter o salto de um sapato mais alto do que o outro por se ter uma perna mais curta do que a outra.

Não há exibicionismo nem confessionalismo impudico neste texto. Como aquele médico de cabelos brancos, que ensinava na televisão como fazer quando uma criança bebe lixívia, e que se regozijava por ter salvo assim a vida a uma criança, espero que este texto vá ter com aqueles que têm vontade de beber lixívia ou pó para ratos.

 

 
Gravidez
Segunda-feira, 15 de Julho de 2002

Clotilde Martins era professora catedrática. Estava convencida da importância do seu papel. Nunca se perguntava "Quem somos? Donde vimos? Para onde vamos?", embora também tivesse dado aulas de Filosofia no liceu. Agora as alunas diziam umas para as outras com maus modos aparentes "O que é que estás aqui a fazer?" quando se encontravam por acaso na faculdade. E ela, professora catedrática, estava ali a fazer de professora catedrática. Nada de angústias, portanto.

Clotilde Martins não era má professora mas não era boa professora. Tinha sessenta e nove alunas e dois alunos. Um era o Evaristo, estudante-trabalhador, anormalmente gordo, sempre a fazer palhaçadas no corredor para divertir as colegas e ser o centro das atenções. O outro era o Hélio, tinha uma cabeleira comprida, tocava numa banda e aparecia de vez em quando, como um extraterrestre. O Hélio, segundo as colegas, fazia turismo. É claro que de tudo isto Clotilde Martins só sabia o volume do Evaristo, o comprimento da cabeleira do Hélio. Das sessenta e nove fêmeas conhecia o nome de duas: uma Eduarda, por ter o nome de uma cunhada sua, mulher de um irmão, e uma Genoveva, por ser uma ruiva espampanante sempre vestida de encarnado, cor que não se dá bem com as ruivas, segundo Lins do Rego.

Clotilde Martins ensinava sonetos barrocos e "Os Lusíadas". Mandou as alunas ler a Bíblia por causa dos barrocos. Uma aluna perguntou-lhe que edição da Bíblia devia consultar. Clotilde Martins respondeu "Uma que seja em papel bíblia". A aluna achou esta resposta barroca. Uma aluna mais sensata achou-a bacoca. De uma vez outra aluna ou a mesma quis fazer um brilharete: para comentar a descrição da Ilha dos Amores citou "A Flora dos Lusíadas" do Conde de Ficalho, livro fininho que só se encontrava nos alfarrabistas. Clotilde Martins, severa e ríspida, disse que o Conde de Ficalho não devia ser citado porque não era um crítico literário. A aluna ficou de orelha murcha. E achou a professora uma burra. Não era burro observar que, de acordo com a Botânica, a flora da Ilha dos Amores é mediterrânica, não é índica.

Mas lá para a Primavera, Clotilde Martins apareceu com uma saia-casaco cor de laranja. O Evaristo comentou para as colegas no corredor "O que é que nós ainda estamos para ver!" No ano lectivo seguinte, Clotilde Martins apareceu grávida. Aos 50 anos decidira ser uma mãe solteira. E deixou a literatura em paz para se dedicar de corpo e alma à filha. Afinal tinha lido Camões, a Bíblia, os barrocos, Lins do Rego e o Conde de Ficalho. A filha tornou-se bailarina de flamenco e vendeu a biblioteca da mãe ao desbarato ainda em vida da mãe.

Marta Maria Martins, filha de Eduarda, a cunhada de Clotilde, viu-se de repente a rezar, a tossir, a fugir das chamas junto à imagem de Nossa Senhora da Saúde. Já todos tinham saído espavoridos daquele braseiro. A capela de Nossa Senhora da Saúde é uma capelinha lisboeta e doce, posta em sossego a um canto do Martim Moniz, como a rapariga feia no salão de baile.

As velinhas eléctricas - deita-se uma moeda e acendem - tinham entrado em curto-circuito ou outro fenómeno da electricidade tinha ocorrido. Fosse como fosse, Nossa Senhora de Fátima, Santo António, S. Sebastião, Nossa Senhora da Conceição e mais e mais santos que Marta Maria Martins não sabia identificar ardiam como Santa Joana d'Arc.

O fogo concentrara-se todo na capela, ali a um canto da praça, e não passava para fora. Marta Maria Martins queria salvar a Bíblia, a Senhora da Saúde, Cristo crucificado e todos os santos. Queria apagar todos os fogos. Corria meio sufocada de santo para santo, já com a Bíblia nos braços, já com as meias chamuscadas. Não havia mais ninguém na igrejinha. Marta Maria fora à capela pedir a Nossa Senhora para acabar de escrever a tese de mestrado. E agora via-se naqueles assados.

Mas Marta Maria não estava arrependida de ter entrado. Era preciso salvar a capelinha da Saúde. Não havia extintor à vista. Correu para a sacristia para telefonar para o 112, mas o telefone ardia.

Nossa Senhora da Saúde desceu calma do altar e veio-se pôr no meio do fogo. "Marta Maria, sossega. Vão-se os anéis, fiquem os dedos. Nós somos santos de roca, de papelão, de madeira pintada. Os missais e a Bíblia são de papel. Tu não. Mete-te dentro da pia de água benta. Tu és de carne e osso. A água benta vai-te poupar a este incêndio dos aspectos."

Marta Maria benzeu-se com água benta e saiu para o Verão. Ficou por explicar a combustão da capelinha da Saúde. Marta Maria acabou de escrever a tese de mestrado sobre Lins do Rego mas nunca mais quis ouvir falar em Lins do Rego. A história seria perfeita de anonimato se Marta Maria não tivesse falado à hora da morte para a televisão. Agora, nos tempos que correm, a televisão transmite em directo as últimas palavras dos moribundos, o último bafo, o último odor.

 


PÚBLICO
Segunda-feira, 29 de Julho de 2002

Patchwork

Passei pela montra do fotógrafo. As fotografias estão róseas ou amarelecidas. Ainda lá se podem ver as noivas gordas, algumas salpicadas por cagadelas de mosca, mostrando os dentes estragados num sorriso envergonhado, coroadas de tule e florinhas. Os noivos apagados ou ausentes como se aqueles casamentos fossem todos por procuração. Lá estão também as matronas pimponas cobertas de jóias, o vestido apertado. Raparigas solteiras que prometeram o retrato ao namorado e se esmeraram no penteado. Bebés nus deitados de barriga para baixo, os olhinhos boquiabertos, assarapantados como baratas de pernas para o ar, a pulseirinha oferecida pela madrinha a luzir no pulso rechonchudo. Crianças com fatos domingueiros empoleiradas em coxins de veludo posando para o passarinho e que são hoje mães e pais de família.

Hoje passei pelo fotógrafo para tirar umas fotocópias. É o que a mulher do fotógrafo faz. O fotógrafo, esse, mal vai à loja. Quase ninguém tira o retrato. Quando lá fui, há muito tempo, tirar o meu retrato, a mulher do fotógrafo chegou a cara dela ao pé da minha, compôs-me o queixo, mandou-me sorrir. O hálito dela cheirava a peixe. Não sorri. Não tive a honra de figurar na montra.

O cabeleireiro chama-se Salão Luxo e não é de luxo nem salão. É pequeno e sujo. Só tem uma cliente. A manicura é a mulher do cabeleireiro. Corta com tesourinhas ferrugentas as peles das unhas até sangrarem. Camufla tudo, até a meia-lua, até as cabeças dos dedos, até o sangue, com verniz cor-de-rosa.

Pelo chão, rolam sempre bigoudis. A manicura, chama-se Dona Esmeralda, varre-os para um canto enquanto a mão da cliente amolece na cuvette. Por fim, passa a mão da cliente por creme de limão assim: passou as suas mãos por creme de limão e passou a mão da cliente pela sua. A cliente é a Dona Ermelinda. E já só tem uma mão. Esmeralda levanta-se para fazer a conta, deixa escorregar do colo o tabuleiro com as limas, os frasquinhos cor-de-rosa, as tesourinhas ferrugentas, os godets, a cuvette, a bisnaga do creme de limão. Rola tudo pelo chão até ir fazer companhia aos bigoudis. O chão é um plano inclinado.

Esmeralda não apanha as coisas. O marido dorme debaixo de um secador. A rapariga que lava as cabeças, cheia de maldade, pergunta à Dona Ermelinda "Gosta de se ver, Dona Ermelinda?" Dona Ermelinda está praticamente careca. Mas foi sempre assim. Lava a cabeça com shampoo seco há séculos.

Dona Ermelinda imagina o céu dos mortos azulinho como as paredes do seu quarto que têm pendurados cinco quadros. Uma Nossa Senhora de Fátima, em fotografia a preto e branco, isto é, a verdadeira imagem sobre um matagal. Uma Imaculada Conceição toda azul envolta em fartos cabelos anelados e em anjinhos, cópia de Murillo. Um Coração de Maria loira e um Coração de Jesus loiro, cada um a apontar com o dedo indicador o respectivo coração, enorme, carnudo e fora do sítio, segundo a sobrinha-neta, professora de Biologia. Dois anjos, um em frente do outro, simétricos, como se fosse um anjo só a ver-se ao espelho. Estes anjos de grandes asas, que se miram ajoelhados e de mãos postas, estão por cima do oratório. A fotografia de Nossa Senhora de Fátima está por cima do relógio, que está por cima do calendário das Missões cheio de florinhas e de crianças gordinhas enfeitadas com os dizeres da Mizinha de Sintra "ver as criancinhas puras, inocentes, meio semi-nuas, brincando contentes".

Um dia, de repente, dei comigo a ver no espelho do guarda-fato com sapateira a porta do oratório aberta e, por detrás das cortinas brancas, o Cristo crucificado, ao lado uma rosa de pano, enorme e muito aberta.

O oratório está em cima da cómoda do dinheiro e da roupa boa. Do lado esquerdo do oratório, encostada à parede, está a garrafa da água de Fátima, para dores, exames, aflições. A cruz no alto do oratório partiu-se, desapareceu.

Há no quarto da Dona Ermelinda outra cómoda a que faltam puxadores das gavetas. É uma cómoda descomunal que tem um esconderijo pouco ardiloso para jóias. Abro uma gaveta ao acaso. Dou com uma cabeleira de cabelo verdadeiro castanho dourado. Deito-a no caixote do lixo imediatamente.

No centro do quarto, suspenso do tecto, o globo de vidro azul: a Lua..

Maria Santíssima parece aquecer as mãos numa braseira em vez de adorar o seu bebé porque a mãe da Dona Ermelinda deu tantos beijos repenicados ao Menino Jesus que o apagou do quadrinho.

A Dona Ermelinda foi minha tia. Posso não ser escritora, mas tive tias e traumas. Acho que a tia Ermelinda tinha razão quando dizia para os santinhos todos "nem que esta pequena fosse muito bonita aquele corte de cabelo a favorecia". Vou deixar crescer o cabelo. E hei-de voltar ao Chalet Ideal, à Rua Palmira, à Photo Baby e ao Salão Luxo como César.

 

 

PÚBLICO Segunda-feira, 12 de Agosto de 2002

Contrariedades
 

"Contrariedades" é o título de um poema de Cesário Verde (1855-1886). Cesário Verde é sempre o meu poeta preferido. E, em particular, gosto muito deste poema "Contrariedades". Quanto mais prosaico, mais poético. Reproduzo aqui apenas duas estrofes saborosas.

"Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,

Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";

E a mim, não há questão que mais me contrarie

Do que escrever em prosa."

 

"Nas letras eu conheço um campo de manobras;

Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague",

E esta poesia pede um editor que pague

Todas as minhas obras..."

 

(In: "O livro de Cesário Verde", edição revista por Cabral do Nascimento,

Editorial Minerva, Lisboa, 11ª edição)

Modéstia à parte, passa-me pela cabeça comparar-me com Cesário Verde. Transcrevo por hoje, de seguida, três poemas meus. Não sou Bocage, também por isso não me passa pela cabeça comparar-me com Camões. Já houve quem me chamasse "a fadista contemporânea". Cantar o fado é contrariar o fado.

Não sou

menos

que Einstein

nem que

Claudia Schiffer

não sou

mais

que uma osga

ou que uma barata

não sou mais

inteligente

que um mongolóide

tenho um Q. I.

no limite

superior

da média

todos diferentes

todos iguais

incluo também

os animais

o que nos separa

dos animais

é o pecado original

não é o reconhecimento

no espelho

nem o complexo

de Édipo

 

*

 

Portugueses:

gente ousada

gente usada

Brandos usos:

abusos grandes

e pequenos

 

*

 

Fariseias

Gostam de ser cumprimentadas

nas praças

e de ter o primeiro lugar

à mesa dos banquetes

são calculistas

formigas carreiristas

cheias de sucesso

e tudo usam e tudo gastam

indistintamente

porque são altas as suas entropias

e depois não sabem dar

os bons-dias às mulheres-a-dias

Estes três poemas pertencem ao meu livro "Florbela Espanca espanca", editado pela Black Sun em 1999. O livro está esgotado.

 

 

Historietas Lisboetas
PÚBLICO, Segunda-Feira, 26 de Agosto de 2002

As Trindades

As Trindades vinham ao Domingo. Elsa e Hedda. A Elsa era alta, loira, branca, de olhos azuis. A Hedda parecia um pardal. Eram filhas de uma alemã e de um militar português. Delicadíssimas. Como eram muito pobres, não podiam comprar prendas. Mas, mesmo assim, traziam prendas. Os sacos de plástico do pão do supermercado muito bem dobradinhos. Tinham ambas a pensão de filhas solteiras de militar. A Hedda tomava conta de crianças e fazia arranjos de costura em casa de uma senhora conhecida. A Elsa tirou um sinal do queixo que tinha degenerado muito. A mãe delas falava mal português. Dizia "aquelas pratas" e apontava para o escaparate onde só havia pratos de loiça. As portuguesas, as mulheres dos oficiais, faziam troça. Era em Chelas no extinto convento.

Uma avó e uma neta

Um dia a minha avó Zé quis levar-me a ver o extinto convento. Metemo-nos num autocarro e andámos por tabernas do Beato a perguntar por esse berço perdido. Em vão. Muitos anos depois li documentos do convento de Chelas na edição da Professora Ana Maria Martins, professora da Faculdade de Letras de Lisboa.

Essa ida a Chelas lembra-me outra saída com a avó Zé. Eu tinha juntado uns papelinhos do queijo Tigre que davam direito a um brinde. Ia-se levantar o brinde a uma morada do Cais do Sodré. Dessa vez andámos pelos bares fechados do Cais do Sodré à procura dos representantes do queijo Tigre. Nem eu nem a minha avó sabíamos o que era um bar. Lá demos com um escritório num primeiro andar. Deram-nos uma caixa de queijo Tigre. Agora vejo, com uma ternura feroz, a nossa figura entre Chelas e o Cais do Sodré: uma menina na puberdade (eu) e uma velha de chapéu preto (a minha avó Zé).

As cuecas

Quando no Colégio do Sagrado Coração de Maria o vento levantou o mini-vestido a uma menina e eu lhe vi as cuecas (eram encarnadas) e a menina não ficou aflita, eu senti-me abalada. Em casa, a Maria, a criada, tinha-me ensinado que o pior que pode acontecer a uma pessoa é mostrar o rabo. É claro que o que eu mais quis, durante um tempo, foi ver o rabo da Maria. Empurrava de repente a porta do quarto dela que não fechava, mas nunca fui bem sucedida. Nesses tempos, o meu pior pesadelo era sonhar que ia para a escola sem cuecas. Mais tarde, as minhas cuecas remendadas foram motivo de graçolas à mesa. O meu pai dizia que na terra dele, Penamacor, uma pessoa com cuecas remendadas era "uma acunapada".

Agosto azul

São quase sete da tarde e o meu relógio está atrasado. Estes fins de tarde de Agosto são um momento de pacificação. As manhãs são de muita actividade e as tardes de muito sofrimento porque tento trabalhar e não consigo. Tento falar com os amigos ao telefone, mas tenho medo que estejam de férias. Agosto é um Domingo prolongadíssimo. E o Domingo é, para mim, o pior dia da semana. Fisicamente tenho sido forte e psiquicamente frágil. A minha mãe achava que eu era uma planta. E, para o meu pai, eu devia ter sido um rapaz e médico. Os meus pais tratavam-me quase sempre pelo Zé. "O meu Zé" dizia a minha mãe mesmo quando eu tinha 34 anos. E continuaria a dizer hoje se não tivesse morrido. As memórias são um moinho. Moem, roem. As águas passadas movem este moinho estranho, este besouro metido na cabeça, nas células. Mas como diz Péguy não é nada tarde para pensar no amanhã. Às vezes Deus esconde-se ou eu não dou por ele. Acho que é uma falha minha, uma quebra de atenção.

Semi-diário

Escrevo aqui para espairecer. É o escape dos mecanismos de retroacção. A folga. As férias. Primeiro escrevia estes textos à máquina, na minha Olivetti azul turquesa. Quando comprei a Olivetti, o homem da loja disse que para ele a máquina ser azul turquesa ou cinzenta não tinha importância nenhuma, o que contava era o maquinismo. Não sei como é que as pessoas podem viver sem cores. Há um texto de Léger que diz que no fim da guerra houve uma explosão de cores, que o mundo da guerra era um mundo de cinzentos. Eu adoro cinzentos, mas não gosto da vida parda, da vida envergonhada, do parece mal, do que dirão os outros, do aos costumes dizer tudo. Isso era o fascismo, as fachadas esverdeadas, cor de caca de pombo rala. Sempre gostei de cor-de-rosa. Tinha vergonha de gostar de cor-de-rosa quando era teenager porque era piroso. A Mimi Botelho ia no autocarro a fazer troça das pobres que vestiam cor-de-rosa e verde alface. Eram cores tabu. Hoje posso dizer que adoro essas cores sem complexos e posso vestir-me com essas cores e até pintar o cabelo de verde alface ou de cor-de-rosa. No tempo cresce a liberdade. Este tempo é bem mais livre do que aquele em que eu fui adolescente.

 

Recordações com lápis

PÚBLICO, 8 de Setembro de 2002

O meu pai fazia as encomendas do material de desenho para a papelaria da escola de que era sub-director, a Pedro de Santarém, em Benfica.  Um dia levou-me à Casa Ferreira, do Sr. Ferreira, na Rua da Rosa, no Bairro Alto. Que a Casa Ferreira ; tivesse um dono chamado Sr. Ferreira era daquelas coisas que ainda hoje me fazem vibrar. Quando me apaixonei pelo meu psiquiatra, de apelido Ribeiro, que tem o consultório na Avenida Casal Ribeiro, achei que me ia casar com ele e que íamos ser o Casal Ribeiro.

O Sr. Ferreira deixou-me escolher uma prenda. Andei pela loja toda, quase toda, e decidi-me por uma caixa pequena de lápis de cor Caran d'Ache. A grande moda infantil nesse ano dos anos 60 era uns quadros pretos em que se escrevia com um pau ou com o dedo e apareciam, como por magia, uns riscos estranhos cor-de-rosa. Explico-me mal. As minhas primas direitas tinham um. Devo ter dito isto porque o Sr. Ferreira, que me queria oferecer esse brinquedo caro, comentou: "não quer fazer concorrência às primas". Eu não conhecia a palavra "concorrência". 

No emprego da minha mãe, no Museu Botânico, perto do Sr. Vasco, que escrevia à máquina, havia uma máquina de afiar lápis. Encantava-me absolutamente ver à transparência as aparas em roscas a enroscarem-se, a partirem-se e a acomodarem-se umas sobre as outras ao cair. Explico-me mal. Era preciso dar à manivela. Coisa deliciosa. Era excitante como a máquina de picar carne, de que saía a carne em minhocas.

De uma vez a avó Zé, mãe da minha mãe, e a irmã, a tia Paulina, a solteirona cacarejante, parecida com uma galinha de figo do Algarve, levaram-me ao médico, o Dr. Carlos Santos Soares. na Rua Marquês de Fronteira. Eram elas que iam ao médico, não precisavam de companhia, mas não me queriam deixar sozinha, embora houvesse em casa a criada, esse dragão a deitar fumo pelas ventas, a bruxa dos lados de Arganil, de Góis, essa hitchcockiana queiroziana juliana criada (a Juliana que colecionava botinas d' "O primo Basílio"). Na sala de espera lembro-me de fazer desenhos com lápis de cor. Acho que, para me recompensarem do frete da espera, para eu estar entretida, tínhamos ido todas à ida para o médico à tabacaria Dória, nessa altura do Sr. Ribeiro, comprar um brinquedo -decidi-me por lápis de cor. Havia dois homens ou três na sala de espera do consultório que falavam da caverna de Platão ou coisa que o valha. A conversa interessou-me muito e espantou-me: nunca tinha visto e ouvido uma conversa assim. Mas tive a noção, sempre muito viva, muito em carne viva em mim, do ridículo. Era uma coisa pedante.

Na parte final do liceu, decidi-me a estudar Desenho. Era Geometria Descritiva. Tive como professora, no 7° ano, a mulher do Vergílio Ferreira. Regina e depois um nome impronunciável possivelmente polaco. Foi no Dona Leonor. Ela era muito exigente. Foi em 76/77. Eu ou tinha 20 ou tinha negativa. Ela dizia-me -e tinha toda a razão -"O rapariga, tu és 8 ou 80!" No fim do ano deu-me 16. Foi a minha pior nota. Deitei todos os meus desenhos (os exercícios de Geometria Descritiva) pela janela fora, literalmente. Cheguei à janela do meu quarto e esses belos desenhos, com as sombras a aguada feita com pauzinho de Nanquim, ficaram espalhados pelo passeio, sobre as pedrinhas da calçada lisboeta. Tenho pena de ter feito isso. Não foi um acto contra a professora, foi um acto contra mim. Estava habituada a suicidar-me todos os dias.

Enquanto estudei Geometria Descritiva (três anos letivo seguidos: de 75 a 78), usei o lápis. Acabado o desenho, exigiam-me às vezes que apresentasse o trabalho a tinta. Usava as Rotring. Talvez tivesse prazer em cobrir com o traço a tinta preta o traço a lápis. Detesto apagar, detesto borrachas. O esfarelar e o anular. Sei que "borracha" é também uma designação popular para o preservativo. As minhas colegas Marília e Natália gozavam com o pauzinho de Nanquim porque lhes fazia lembrar pau de Cabinda, que é um afrodisíaco. Devo à Marília, que tinha a pele gorda como eu, ter-me aconselhado recorrer a um médico dermatologista para tratar o acne. Desde os 12 anos pelo menos que tinha a cara, sobretudo a testa, cheia de borbulhas miudinhas.

Nunca me maquilhei. Só um dia, durante a adolescência, fechada na casa de banho cheia do vapor do banho, desfiz lápis de pastel em leite de beleza tipo pink lotion e pus com o dedo a sombra assim feita nos olhos.

O lápis deixa pó, um rasto de pó. Faz-me lembrar a expressão "Os cães ladram, a caravana passa". Nesta expressão há o pó das estradas que já não há ou por onde já ninguém anda. O Far West. Isto deixa-me um tanto ou quanto melancólica, mas logo me dá a vontade positiva de rever "Stagecoach" (1939) de John Ford que não pude compreender da primeira e única vez que o vi. Agora sei, pressinto, que se o vir o posso apreciar e fruir devidamente e totalmente.

 

pen/pencil

 

Publico, 22-9-2002

 

Nunca gostei de desenhar, de fazer desenhos, certamente por o meu pai ter sido professor de Desenho e não apreciar os meus desenhos. De facto, o meu pai desprezava o Desenho. Desenhar não é prestigiado socialmente. Ser bom a Matemática é que parece dar dinheiro, felicidade, bons casamentos e boas casas. Ser bom a Matemática permite ser médico ou engenheiro, trampolim para o sucesso para quem vem da aldeia como o meu pai. Deste trauma edipiano ou electriano (ainda não li Freud) ficou-me asco ao lápis. Electra lembra electrochoques, mas eu nunca levei electrochoques.

Na minha cabeça, um desenho faz-se a lápis e não a caneta. Também as contas, as medonhas contas de dividir, no Colégio das freiras, eram feitas a lápis. E escrever nas pautas, nas aulas de piano. Tudo coisas enfadonhas. Árduas, a que era preciso voltar e voltar – até revoltar.

Repugnava-me observar o meu pai a desenhar (das raríssimas vezes em que isso aconteceu). Era sempre desenho à vista. Nunca percebi porque é que desenhar assim as jarras mais feias que havia em minha casa e os sólidos em madeira (lembro-me de um cone) valia mais do que pintar com canetas de feltro como eu fazia. No fundo, a minha mãe pensava como eu. No fundo, pintar assim tão minuciosamente a canetas de feltro de ponta fina meninas com rabichos, fitas no cabelo, bichos, quando as meninas da minha idade gostavam de pintar com pincéis grossos, era já escrever. Escrever é pintar.

Hoje em dia, de há anos para cá, uso o lápis apenas para riscar, com um risco só, o nome da tarefa acabada de cumprir da lista de nomes de tarefas que faço para cada dia. Sendo o traço do lápis, depois de usado umas quatro vezes depois de afiado, mais grosso do que o da esferográfica, que é fino, distingue-se deste: o momento é diferente, é posterior (primeiro escrevo a tarefa, depois executo-a).

Uso também o lápis, mas não por sistema, para corrigir os textos escritos por mim à mão e a esferográfica – esferográfica, sempre. E mão, é claro, para pegar na esferográfica e fazer força.

Uso ainda o lápis para sublinhar livros e fazer os meus índices pessoais para os livros dos outros. Sou uma coleccionadora de microenunciados, que depois incorporo eventualmente nos meus textos. Nos livros gosto de escrever com um lápis azul escuro ou roxo. Também uso esses lápis de cores para escrever o meu nome, o lugar e a data, na folha de rosto dos livros meus ou dos outros. Fui e sou terrivelmente ciosa das minhas coisas. Este sentido de posse salva-me porque me impede de me dissolver.

Afinal gosto realmente é de fazer graffiti, de inscrever, de epigrafar. Afinal gosto de tatuar – não o meu corpo que já tem por natureza muitos sinais, mas o papel. Actualmente gosto também de digitar textos no computador. As teclas, os botões. O computador torna-se doméstico como o piano ou o casaco. Rei capitão soldado ladrão. Não, não falo com os meus botões, falo com os vossos. A preciosa ridícula que aperta o mamilo da parceira no célebre quadro do Louvre, Escola de Fontainebleau. Atrai mais turistas do que a Mona Lisa. Não há felicidade sem curiosidade. A curiosidade mata o gato, mas é o que o faz viver. As pessoas porcalhonas, que são cruéis porque não têm imaginação, têm do sexo uma ideia limitada. É como se achassem que a electricidade se reduz a meter os dedos nas tomadas e a apanhar um choque. Podem ser até inteligentes e eventualmente dar grandes torcionários. Como a Raposa da fábula de La Fontaine, não suportam, roídos de inveja, que a Cegonha consiga comer pelo gomil.

Deixo a minha marca, ma griffe, por onde passo. E eu passo no tempo. Entre o lápis e a caneta de feltro encontrei o equilíbrio da esferográfica. O que ficou do desenho é sobretudo a minha caligrafia. A cor, o jogo, o gozo e a dor passaram para o verbo.

“O lápis da morte” de Raymond Chandler chama-se no original, “The pencil”. A edição portuguesa que tenho inclui este romance e outro. O outro é “The big sleep”, “À beira do abismo”, em português. É o número 2 das Obras completas de Raymond Chandler, Colecção Vampiro Grande, Edição Livros do Brasil, Lisboa, 1987. Os títulos de ambos os romances vêm na capa a cor-de-rosa e a cursivo sobre fundo verde meio ervilha meio esmeralda. Rosa pink, verde green. Cada vez mais mal me explico. Não, a minha vida não é um duplo romance de série negra. Quero ter paz de espírito e tempo para ler romances duplos de série negra. E amigos com quem tagarelar.

 

Recomendo dois livros de Maria Velho da Costa:

Irene ou o contrato social

Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000

Porque é a história de um graffer.

 

Lucialima

O Jornal, Lisboa, 1983

(a partir da página 212 há o relato de um experiência sexual infantil: um menino introduz um lápis no ânus de uma menina).

 

 

 

Outono entre Anjos e Arroios

 

PÚBLICO, 6-10-2002

 

Bertha procurou na Bíblia o superconhecido poema “tempo de nascer e tempo de morrer”, chamou-lhe assim para ser eficaz e eficiente. Deu com ele na página 666 da Bíblia protestante traduzida por João Ferreira de Almeida. Começou por copiar à mão para um caderninho o dito poema. É o capítulo 3 do Eclesiastes, livro do Velho Testamento. Versículos 1 a 8. Reza assim:

 

1 Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu:

2 Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;

3 Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derribar, e tempo de edificar.

4 Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de saltar;

5 Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar;

6 Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de deitar fora;

7 Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar;

8 Tempo de amar, e tempo de aborrecer; tempo de guerra, e tempo de paz.”

 

Então Bertha começou a ler o texto em voz alta. A casa velha ressoava com as palavras velhas do Velho Testamento. Pela boca actual da Bertha. Era tempo de saltar. Bertha deu saltos no quarto e na cozinha. Depois foi escrevendo o seu romance da raposa. Havia um prazer tão furioso em fazer Copy Paste Cut que isso, por si só, era já escrever romances como as raposas os escrevem. Raposas caçadas, vacas loucas e ovelhas clonadas faziam tremer a Inglaterra.

 

            Bertha escreve:

            Só quando não procuro encontro. Versos, chaves de gavetas fechadas, namorados, botões, Deus. Batalho arduamente em vão e depois, sem esforço, sem fazer nada por isso, quando já não batalho, ganho, vejo que ganhei. Foi assim com o primeiro poema que escrevi, o da Faruk. Com a postura do candelabro do yoga, que não havia meio de conseguir atingir. Com o primeiro beijo dado por um rapaz. Com Deus. Tento tento e falho. Mas por tentativa e erro, a subir e a cair, a fazer e a desfazer, tenho conseguido tudo o que quero. Vejo que passei a vida a escalar uma montanha com uma pedra às costas e que agora cheguei ao alto e fiz um pic-nic de burguesas.

 

            Um ensaio é um romance (policial) em que se explica por palavras como se faz um laço com um atacador. Também isto pode ser libertador. E é literatura. Pode ser. Eu adoro ensaios mas não os escrevo porque não os sei escrever, fazer. Porque não tenho prazer em os escrever, fazer. Pela mesma razão não escrevo romances. Gosto de dar saltos e acho que sei saltar. Não gosto de correr a maratona. Sou de fôlego curto. Nunca mudei uma fralda. Sou capaz, acho eu, de mudar uma fralda, mas dezenas, centenas de fraldas, não. Não penso ter filhos. E mesmo sapatos de atacador me chateiam. Só me dedico a tarefas laboriosas, morosas por pouco tempo.

 

            A minha avó Maria era Maria Pires, a irmã Ermelinda Pires e os irmãos António Ferreira Saraiva e José Ferreira Saraiva. Pires era a mãe Eugénia Pires ou Maria Eugénia Pires e Ferreira Saraiva o pai, de que não sei o nome de baptismo. Os rapazes eram filhos de ambos mas, pelo apelido, era como se fossem só filhos do pai. Foram estudar para Coimbra. As irmãs eram filhas de ambos mas, pelo apelido, era como se fossem só filhas da mãe. Ficaram na terra, Penamacor, a cozinhar e a coser. A cozer e a coser. A minha avó Maria era analfabeta. A tia Ermelinda aprendeu costura. O irmão, o tio José, meu tio avô, deixou por acabar uma licenciatura em Físico-Químicas. Era preciso verificar tudo isto. Não tenho a certeza absoluta de que seja tudo assim. Para fazer os meus souvenirs pieux era preciso paciência e penitência.

 

            Paro aqui para descansar. Vou tocar piano. Vou tocar “The banjo picker”.Já toquei. Volto agora para a máquina de escrever. Eu sei que escrever assim é como tocar piano sem ser capaz de ler Chopin. Não sou a Marguerite Yourcenar mas sou feliz a escrever assim a toque de máquina. Comecei a escrever esta página com mil cuidados, os mil cuidados da poesia. Mas a prosa são mil cuidados e mil e uma noites. Solto-me. Improviso ao piano e improviso à máquina de escrever. Devo-o ao Marco Franco. Estou-lhe muito agradecida.

 

            A minha casa lateja como um papo de rola. Cresce no ar da manhã como um barco avança no mar. As ondas que rebentam na areia mansa são cavalos alados e selvagens. O que é piroso tranquiliza-me. Na loja dos trezentos apetece-me comprar tudo.

 

            Uma osga moribunda deixa-se acariciar.

 

            Paixões já não são as de Camões. Eneias muda as fraldas ao pai de 80 anos, Vasco da Gama não. Só pensa em índias.

 

            Quando entramos no escuro o escuro não assusta. É cá fora, à porta do escuro que não se vê mas se antevê, que o escuro assusta.

 

            Não teria já isto sido publicado aqui? Pois bem: republique-se, que seja republicado. Replique-se. De República e de réplica.

 

            E depois? E depois? Bertha vai à Villa Bertha: jardins suspensos de Babilónia à Graça.

 

 

Souvenirs Pieux

 PÚBLICO  Segunda-feira, 21 de Outubro de 2002

           A coisa mais antiga de que me lembro é de insultar a minha primeira criada, a Helena. A Helena dormia no quartinho escuro com porta para a cozinha. De manhã, era ela que me fazia a papa. Lembro-me do pacote de Blédine, isto é, lembro-me bem sobretudo do sítio onde se guardava o pacote de Blédine. Era no armário de parede, de porta de vidro martelado, porta de correr. Hoje é onde guardo o saco dos biscoitos do Mémé, o meu gato.

           Sempre me irritou profunda e superficialmente que psicólogos e psiquiatras me fizessem o reparo de que, provavelmente, a papa não era Blédine. Dizem: naquele tempo não devia ser Blédine, devia ser Cérélac. Se há coisa de que me lembro bem é de palavras, especialmente de nomes, especialmente de nomes grafados e de objectos. O pacote de Blédine com a mãe a dar uma colher da papa ao bebé e a palavra Blédine grafada estão na minha memória como o facto de a minha mãe usar óculos e a mãe do pacote de Blédine não usar óculos. Que a criada Helena não era a Helena de Tróia nem a Helena Vaz da Silva, cela va de soi. Mas que uma papa, tão íntima para mim, que dava pelo nome de Blédine fosse Cérélac não aceito. Eu não sou uma trapalhona, não sou uma badalhoca. Não confundo alhos com bugalhos, não vendo gato por lebre. A criada era Helena Duarte da Costa, e era de Arganil, portanto não era de Tróia, nem Vaz da Silva.

           Nas aulas de Introdução aos Estudos Linguísticos, cadeira anual do 1º ano da licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas variante de Estudos Portugueses e Franceses, cadeira que fiz em 1983/84, na Faculdade de Letras de Lisboa, com o Dr. Luís de Sousa Costa, aprendi o conceito de Fonotáctica. Numa língua não pode ocorrer uma sequência de sons qualquer. Por exemplo, em português, não ocorrem em posição inicial de palavra sequências de consoantes tais como um f seguido de um s (fs) e um s seguido de um p seguido de um m (spm). Ao fabricar medicamentos fabricam-se nomes para os medicamentos. E quem diz nomes de medicamentos diz nomes de papas para bebés ou nomes de empresas. Blédine e Cérélac é francês, mas usam-se em português sem desconforto fonotáctico. Verifico no Pingo Doce que hoje é Blédina e Cerelac.

           Descobri que o Dr. Luís de Sousa Costa tinha publicado um romance intitulado "O cancioneiro policial da Menina Alzira" (editado pela Moraes em 1977). Não passa pela cabeça de ninguém pensar que o Dr. Luís de Sousa Costa estava a pensar na Professora Maria Alzira Seixo, professora de literatura da mesma Faculdade de Letras de Lisboa, ao dar o título que deu ao romance. Se dar nomes a xaropes é uma questão de Fonotáctica, dar títulos a romances é uma questão de Fonoestratégia. Saber distinguir entre táctica e estratégia fazia os encantos marxistas-leninistas dos rapazinhos em flor do meu tempo. Eu dedicava-me a observar que os tios reaccionários dos rapazinhos revolucionários podiam dizer "marchismo", fenómeno que nunca ocorria com os sobrinhos revolucionários, estes pronunciavam invariavelmente "markssismo". Distinguir alhos de bugalhos, gatos de lebres e um ch de um kss fazia as minhas delícias portuguesas e proustianas.

           E, neste nó, volto à minha criada Helena. A Helena era dorminhoca e mandriona, julgo que o meu pai, na ausência dela, se referia a ela nestes termos, mas não estou tão certa disto como estou certa de que o nome da papa era Blédine. Um belo dia levantei-me furiosa porque queria a papa e a Helena dormia. Dei punhadas na porta do quartinho da cozinha e bati a sapateta. Habituada a conviver com coelhos, bater com o pé no chão era para mim "bater a sapateta". E gritei. Insultei a Helena: chamei-lhe "lebre" e "escavadora". "Lebre" não sei porquê. "Escavadora" sim: um prédio de esquina, da rua onde ainda hoje moro, estava a ser demolido, havia tapumes e uma escavadora. À janela, com a tia Paulina e a Helena, observar as obras era a grande excitação. O prédio demolido era o prédio do "Farney" ou "Jonney" das farinhas, segundo informação da tia Paulina. O nome terminava em "ey", mas não me consigo lembrar com exactidão da primeira sílaba.

           O Dr. Luís de Sousa Costa já morreu. Escreveu outro romance, mas perdeu o manuscrito numa viagem de comboio entre Paris e Lisboa. A tia Paulina já morreu. Morreu em 1984. A criada Helena casou em 1963 e eu fui a menina que levou as alianças. Como nasci em 1960 e a Helena deixou de trabalhar para os meus pais quando se casou, em 1963, a minha recordação mais antiga tem hoje 40 anos.

           "Souvenirs pieux" é o título de um livro de Marguerite Yourcenar, livro de investigação histórica, documental, sobre a família do lado da mãe desta escritora. A expressão francesa "souvenirs pieux" significa aquilo a que em português se chama "memórias". São pagelas, mandadas imprimir pela família quando morre um membro, com o retrato do morto, as datas do nascimento e da morte, a indicação P N A M (que significa que quem ler a pagela deve rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria pelo morto), uma biografia a dizer bem do morto, etc. Estas pagelas dão-se aos parentes e aos amigos e guardam-se nos livros de orações.

 

 

A Marquesa de Alorna
PÚBLICO Segunda-feira, 04 de Novembro de 2002

Alorna é na Índia, na margem direita do rio Chaporá. E eu ainda não li nenhum poema da Marquesa de Alorna. O título desta crónica tem, na minha cabeça, os seguintes links explícitos: Marquesa de Alorna (1750-1839), poetisa portuguesa neo-clássica, educada no Convento de Chelas, leitora dos românticos alemães, casada com um nobre germânico; a escola preparatória Marquesa de Alorna, em Lisboa, no Bairro Azul; Alorna topónimo indiano; o título nobiliárquico "marquesa" que evoca imediatamente Marquês de Pombal, Marquês de Sade e Condessa de Ségur; a marquesa, peça de mobiliário dos consultórios médicos, que os médicos bonacheirões indicam por larachas simpáticas aos pacientes octogenários; a marquise, essa rêverie tão portuguesa do espaço fechado que leva a fechar os espaços abertos e a abrir espaços para os poder fechar logo a seguir.

Andei na Escola Preparatória Marquesa de Alorna, no Bairro Azul, em Lisboa, entre 1970 e 1972. E foi lá, graças a duas excelentes professoras de Português, Maria Emília Caires, no 1º ano, e Maria Crisanta Santos, no 2º ano, que comecei a ter consciência de ter prazer em escrever. Tenho tantas recordações tão nítidas dessa época que me quero limitar à mais lírica: na aula de Desenho, que tinha grandes janelas, viam-se árvores verde escuro a serem atravessadas pelo vento. Eram árvores banais, podiam ser cedros, lembravam ciprestes. Aquilo dava-me vontade de chorar, emocionava-me a um ponto sem retorno e de onde eu retornava à usura deste mundo trémula como as árvores. Que isto seja banal numa adolescente sensível é o que menos importa. Acho que a literatura e a religião estão aí. Não por acaso vou às vezes rezar à mesquita de Lisboa que entretanto se foi plantar em frente da Escola Marquesa de Alorna. Lamento que não haja um cemitério islâmico perto, uma fonte, água a correr e mais pombas. Nos cemitérios islâmicos, que vi em Sarajevo em 1991, gostava particularmente da força bruta do reino vegetal, as plantas irrompiam pelas pedras tumulares num desalinho natural que não era incomodado. Neste ponto o jardim dos mortos era verdadeiramente um jardim Zen.

Comecei a falar de Alorna, na Índia, na margem direita do rio Chaporá, passei ao Bairro Azul, em Lisboa, e já vou em Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina. As palavras são como as cerejas e os nomes de lugar, os topónimos, fazem sonhar. Os topónimos, mais do que todas as outras castas de palavras, acordam em nós cordas, acordes, acordéons, corações, coros, coroas e cores. Em português diz-se "saber de cor", em que "cor" vem da palavra latina para coração. "Corações ao alto" que ainda hoje se ouve na missa católica era, no tempo em que a missa católica era dita em Latim, "sursum corda". "Corda" é corações. Em chinês "saber de cor" diz-se "saber pelas costas".

Transcrevo de seguida um texto escrito por mim nas aulas da Professora Crisanta.

A bolinha castanha

Saí de casa, era uma manhã fria, sem Sol, em que as árvores pareciam mãos enormes buscando a Primavera no céu sem cor...e a chuva caía...caía...

Comecei a andar, abri o guarda-chuva, a rua parecia-me imensa, toda branca, beijada pela chuva. Os pardais voavam nas árvores talvez lobrigando nelas flores, Sol. Senti que era Inverno.

Virei a esquina e ali no chão estava uma bolinha castanha que já não chamaria mais a Primavera... fiquei parada, contemplando o passarito, como se ele fosse um sinal vermelho que me impedisse de avançar.

Olhei, olhei mais, vi uns olhos abertos, uns olhos sem vida e aquelas penas castanhas...não mais enfrentariam o vento...

Não podia fazer nada. Andei. No ar voavam mais pardais e aquele ali, jamais voaria. Andei. Ouvi a mulher das flores a apregoar e a carroça das hortaliças que chiava longínqua.

Na calçada soaram enfim os meus passos, caminhando sozinhos com a chuva...

Olhei para o céu, brilhava nele o Sol, a chuva tinha parado e o arco-íris era uma cavalgada imensa para o infinito...

Pardal...nascia a manhã dos pregões, das conversas, nasciam nos ninhos mais pardais e aquele sozinho, perdido na multidão das pedras brancas, jamais esperaria o Sol, as flores, o arco-íris, estava morto, enfim.

 

Este texto foi escrito em 1971. Eu tinha 11 anos.

Num dia mau, algures nos anos 90, deitei no caixote do lixo o caderno das aulas da Professora Crisanta. No fim do caderno, no último dia de aulas, a Professora Crisanta escreveu com a sua caligrafia certinha e redondinha "Para a Maria José, para que se lembre de umas palavras apassivantes que eu lhe ensinei, quando for uma escritora conhecida".

Leio na "História da Literatura Portuguesa" de António José Saraiva e Óscar Lopes que a Marquesa de Alorna escreveu poesia cientista, escreveu umas "Recreações Botânicas", e que escreveu também uma autobiografia em "prosa verdadeiramente familiar". É ao que aspiro.

 

 

Uma família cristã
PÚBLICA  Domingo, 10 de Novembro de 2002

E eis: um jurista levanta-se.

Para pôr Jesus à prova, diz:

- Mestre, que tenho de fazer para herdar a vida eterna?
Jesus diz-lhe:

- Na Torah, que está escrito? Como lês?

Ele responde:

- Amarás o Senhor teu Deus

com todo o teu coração

com todo o teu ser

com todas as tuas forças

com toda a tua inteligência”, e

“Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.

Jesus diz-lhe:

- Respondeste correctamente. Faze isso, e viverás.
Mas ele, querendo justificar-se, diz a Jesus:

- E quem é o meu próximo?
Jesus, responde:

- Um homem descia de Jerusalém a Jericó. Cai nas mãos de bandidos, que, arrancando-lhe a roupa e enchendo de pancadas, vão-se embora deixando-o semimorto.
Por acaso, um sacerdote descia por aquele mesmo caminho. Vê-o e passa de largo. Igualmente um levita passa pelo mesmo sítio: vê-o e passa de largo. Mas um Samaritano, que ia de viagem, chega perto dele: vê-o e comove-se até às entranhas. Aproxima-se, cuida-lhe das feridas, pondo-lhes azeite e vinho; fá-lo montar a sua própria montada, condu-lo a uma estalagem e cuida dele.

No dia seguinte, tirando dois denários dá-os ao estalajadeiro, e diz: “Cuida dele; e o que gastares a mais. no meu regresso, eu mesmo to reembolsarei”.
Qual destes três, segundo a tua opinião, se tornou um próximo do homem que caiu  nas mãos dos bandidos?

Ele diz:

- O que fez a misericórdia com ele.

Jesus diz:

Vai! Tu também faze o mesmo!”

 

Esta é uma tradução do texto grego do Evangelho de S. Lucas (10: 25-37) feita por Dimas Almeida. Tenho esta tradução numa fotocópia que encontrei por acaso na barafunda em que está, em que sempre esteve, em que deixará de estar, em que está a deixar de estar a minha casa. Adquiri-a no ano lectivo 88/89. Para mim, esse ano lectivo está marcado por dois acontecimentos: entrei para o Mestrado em Linguística Portuguesa Histórica, a minha avó materna morreu. Ontem, por acaso, encontrei o Pastor Dimas Almeida no metro e pedi-lhe autorização para publicar a tradução.

 

A morte da minha avó materna durou sete anos. De 1982 a 1989, a minha avó esteve metida na cama sem nunca se levantar. Sete anos de casa a cheirar a cocó, de fraldas, de bacios de chapéu alto, de injecções, de papa Cérélac, de boiões de comida para bebé. A minha família cristã – qu’é dela? Mal lhes cheira a esturro, neste caso a cocó, os ratos e as ratas de sacristia são os primeiros e as primeiras a abandonar o barco. Quanto a contas, foi a minha mãe que as pagou. A pensão da minha avó, viúva de um médico que morreu pobre em 1958, não dava nem para mandar calar um cego. Quanto a fraldas, foi a minha mãe e a mulher-a-dias, a Maria do Carmo, quem as mudou. Só se eu fosse sado-masoquista é que tinha mudado as fraldas a uma avó, minha madrinha de baptismo, que sempre me humilhou e me olhou com pena e nojo e desdém. Um monstro de egoísmo, de peneiras, de vaidade, um verbo de encher a desfazer-se em cocó durante sete anos. Passou as noites desses sete anos a berrar pela minha mãe, a tocar a campainha. Muitos bofetões e muitos palavrões teriam siso precisos para a cristianizar!

Dirão: que falta de coração, Adília! O pior que podiam dizer à minha avó materna é que eu era parecida com ela. Ela que fisicamente era tão bela e tão fina. E eu, a filha da galinha da filha, a Zezinha, e do matarroenho das berças, das Beiras, o genro, o Júlio. Quando a prima Maria Carolina Oliveira Martins dizia a meu respeito à minha avó materna: “É parecida contigo”, a avó Zé, que era um nada sofisticado monstro de egoísmo e de vaidade, dizia com um ar horrorizado e enojado “Achas?” Ai, os velhinhos, as velhinhas, as avozinhas, as criancinhas, - quantas vezes que ditadores, que horrores! E as pessoas de 20, de 30, de 40 anos?

Do Mestrado em Linguística Portuguesa Histórica desisti: não podia fazer outra coisa. Debaixo de doses de cavalo de Melleril e de Largactil, receitadas pelo Prof. Dr. (na altura julgo que ainda só Mestre) Filipe Arriaga, não se consegue perceber o que se lê, às vezes nem os olhos focam de modo a que se possam distinguir as letras.

O grande problema, para mim, do texto conhecido por parábola do Bom Samaritano, não é o facto de os sacristas fazerem vista grossa, é o de nada sabermos acerca dos sentimentos do ensanguentado semimorto. Se calhar, ainda acabou a fazer pouco do bom do Samaritano. Mesmo assim, ou sobretudo assim, valeu a pena o gesto do Samaritano.

 

O malvado Zaroff

PÚBLICA  Domingo, 17 de Novembro de 2002

 

O que Deus me tem dado não lembra ao Diabo. Agora são artigos de João Bénard da Costa (PÚBLICO, 4/10/2002 e 25/10/2002). Com a minha casa encantada em obras, e na afobação de responder ao João Bénard da Costa, tenho medo de não poder ser tão precisa nas referências bibliográficas como gosto sempre de ser. Não por acaso havia uma biblioteca na casa encantada de Ingrid Bergman. E a chave do enigma não era uma chave mas um livro. Não sou certamente altíssima e belíssima, loira e super-inteligente, como Ingrid Bergman, a Dr.a Petersen, a psiquiatra apaixonada do filme de Hitchcock. Mas, como ela, uso óculos e tenho a mania das bibliotecas e da bibliografia.  

Diz-se dos lunáticos, ainda hoje oiço isso, que ficaram assim porque viram muitos filmes. Ai de mim se não tivesse visto muitos filmes! Graças a Deus, a Dr.ª Maria José Viana e ao Dr. João Bénard da Costa, vi muitos filmes. A D.ra Maria José Viana era bióloga e era a minha mãe. Morreu a 2 de Janeiro de 1995. 0 Dr. João Bénard da Costa é director da Cinemateca e, antes de o ser, organizou os grandes ciclos de cinema americano dos anos 30, 40 e 50 na Fundação Gulbenkian.  

Repare, João Bénard da Costa, que não escrevi Dr. Deus. Quanto a chamar Dr. a Luis de Sousa Costa, quando meto a chave à porta e o meu gato Mémé tenta fugir para a escada, digo com uma voz falsamente grave: “Para trás, senhor doutor rapaz”. Quase sempre o Mémé consegue escapar-se, galga os três lanços de escadas que separam o meu andar do zimbório do prédio onde vivo, eu vou atrás dele e descemos os dois depois, eu com ele ao colo. Como neste momento estou muito farta de aulas, de escolas e de cursos, não me passa pela cabeça frequentar um ginásio. Assim, a subir e a descer a escada por causa do Mémé, faço um exercício físico que me diverte e que é de graça.  

Prezo alias muito a academia e os académicos. Não estou a ser irónica. Cursos de natação sem água é que não. Tenho horror a aulas com retroprojector, com acetatos ou com modernices informáticas que substituem o professor a escrever no quadro com o giz ou a escrever no quadro com a caneta. Uma coisa são cursos, outra coisa é um faz-de-conta. Tanto congresso, tanto colóquio, tanta acção de formação, tanta pasta de plástico, tanta papelada!

Afinal neste meu tempo de mau tempo, tempo hipocondríaco e de facto doente, gostava de ter, sem perder o dom das lágrimas, o dom do par de estalos. Gostava de poder ser a rapariga despachada, de mão leve. A Claudette Colbert, a Beatriz Costa, a Katharine Hepbum, a Ginger Rogers, a Scarlett O’Hara. A conversar com um rapaz ou com uma rapariga na Tarantela ou no Danúbio, quantas vezes o par de estalos me ocorre. Mas não passo nunca à acção. Chamavam logo uma ambulância, davam-me injecções de Haldol, metiam-me na casa encantada. E, na casa encantada, não se vê “A casa encantada” de Hitchcock. O tocar está hoje de tal maneira sexualizado e diabolizado que um gesto de ternura ou um inocente par de estalos seriam sintomas dos mais negros hábitos, mesmo que não provocassem quaisquer nódoas negras.

Medito. Não premedito. Os meus pretextos são textos. E para tudo tenho pretextos, ou seja, textos. Quando publiquei o meu primeiro livro de poemas, em 1985, chamei-lhe “Um jogo bastante perigoso”. Os pretextos, na altura foram dois:  

a) 0 titulo original d”O malvado Zaroff”. Esse título e “The most dangerous game”, um filme americano de 1932, realizado por E. B. Schoedsack, autor do muito mais célebre “King Kong”. Releio o texto de João Bénard da Costa sobre este filme. Lá estão os contos de fadas. Não há polícias nem psiquiatras. Zaroff não é Dr., é conde.  

b)Uma nota de rodapé do livro de Ruy Belo intitulado “Na senda da poesia” (União Gráfica, 1969). Nota que transcrevo na íntegra:  

“Poetar é a mais inocente de todas as ocupações. Poetar é uma forma de jogo. Poetar é, além disso, uma actividade ineficiente. Poetar é falar por falar, dizer por dizer, isto é, linguagem pura. Mas a palavra é também o mais perigoso dos bens. 0 homem tem de a utilizar para testemunhar o que é. Ao lançar mão dela, expõe o seu ser, isto é, põe-o a descoberto e arrisca-o. (Na esteira de Holderlin, eis as ideias que, a este respeito, Heidegger desenvolve no seu ensaio “Hölderlin und das wesen der Dichtung”, Munique, 1937 (traduzido in “Escorial”, tomo 10 (1943), p. 161 e ss.  

Esta nota de rodapé é a nota 4 do texto de Ruy Belo “Poesia e arte poética em Herberto Helder”. O que a provoca é o seguinte: “na esteira de Alain, o poeta cantava: “Eu jogo, eu juro”. É como em Horácio, a harmonização do “dulce” com o “utile”. É conjugar, como Heidegger, a inocência com a responsabilidade da palavra”.  

A Heidegger, ao Mémé e a Luis de Sousa Costa prometo voltar.

 

Puro é o nojo

 

PÚBLICA  Domingo, 15 de Dezembro de 2002

O tempo, como nunca, é de luto e de luta. Entre deixar esta página em branco e enchê-la com poemas meus inéditos, escolho enchê-la com poemas meus inéditos. Criticaram-me outrora amigos meus por ter uma vez publicado aqui poemas em vez de prosa. Partem do preconceito de que um poema dá menos trabalho intelectual do que a prosa. Não dá. Pelo contrário.

O título desta minha crónica é uma frase de um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen.

Este ano, face a tanta casa pia, a minha casa só pode ser ímpia. Decidi celebrar o Natal intimamente e recolhidamente. Não dou nem compro prendas. Não vou a nenhuma celebração religiosa pública. Não escrevo cartõezinhos de boas festas. Recuso todos os convites para festejos. Quero estar sozinha. Quero estar orgulhosamente sozinha. Imagino facilmente nas missas de Natal a quantidade de padres arrogantes e queques, que só têm olhos para as católicas bon chic bon genre, a pregar a humildade do Presépio de Belém e de S. José.

Seguem-se os poemas. Falam todos de sexo.

 

Poema 1

 

As pessoas

que pena

 

As palavras

que pena

 

As penas

que pena

 

o Palácio da Pena

que bom

 

“Perdigão perdeu a pena”

que bom

 

 

Poema 2  

 

Regarde  

les choux  

ils sont  

couverts  

de bijoux

 

Regarde

mes genoux

ils sont

couverts

de hiboux

 

Regarde

les hiboux

ils te regardent

 

Self-portrait  

 

My cats  

enjoy playing

with my

cockroaches  

 

My cockroaches  

enjoy eating

my potatoes

 

And  

what about  my

potatoes?  

 

My potatoes  

laugh

 

And my frog  

frog frog

Os meus poemas são todos chomskyanos e muito devem à programação em Basic que estudei na Faculdade de Ciências em 1980/81 no 3° ano da licenciatura em Física.

Há anos, num colóquio, durante um jantar, a Professora Maria Aliete Galhoz ensinou-me (ainda há colóquios que servem para aprender e ensinar qualquer coisa) uma oração popular linda (para ela e para mim):

Olhei para o céu  

vi uma cruz  

capela de rosas  

Menino Jesus  

 

Inventei depois esta:  

 

Olhei para o céu  

vi uma cotovia  

capela de rosas  

Virgem Maria

 

 

CRIAÇÃO

 

Pública, 5 de Janeiro de 2003

 

 

A Menina Albertina de que vou falar a seguir, de que já estou a falar agora, não é a famosa personagem de Marcel Proust. Foi a senhoria do meu prédio. E, antes disso, a criada da senhoria do meu prédio. O prédio não é meu nem nunca foi. Digo aqui “o meu prédio” como podia dizer “a minha rua”.

Nos tempos mais recuados de que tenho lembrança havia três mulheres no rés do chão: a Menina Albertina, a Menina Teresa e a Dona Luísa. A D. Luísa era a senhoria. Não me lembro de a ver em pé, a pé. Nem tenho a certeza de a ter visto. Sei que estava de cama. E ouvia-a gritar. Tenho ideia de a ter visto na cama: ela e a cama uma mesma massa imóvel, um só corpo, um monte. Por isso não posso afirmar que vi a Dona Luísa. É que não consigo separá-la da cama.

Depois a Dona Luísa morreu e deixou o prédio à criada, a Menina Albertina.

A Menina Albertina tinha muitos bichos no quintal. Aquilo a que se chama, ou chamava, “criação”. Havia uma capoeira com galinhas e coelhos. Não eram animais de estimação. Eram animais estimados e apaparicados com vista a serem mortos pela Menina Albertina e a serem cozinhados e comidos por ela. O pato era o ai Jesus da Menina Albertina. Ela dava-lhe banho com imenso orgulho e carinho. O pato batia as asas, feliz da vida, dentro do alguidar de alumínio cheio de água. A água saltava por todo o lado. Acho que a Menina Albertina chegava a escovar o pato.

Mas um dia a Menina Albertina matou o pato, cozinhou-o e comeu-o. A minha mãe não percebia isto. Não amava a Menina Albertina o pato? Não era evidente o amor da Menina Albertina pelo pato? Mas era aquilo amor? As pessoas sensíveis gostam de comer galinha mas não gostam de ver matar galinhas. A Menina Albertina terá gostado de matar o pato?

Marcel Proust, sempre atentíssimo à crueldade e ao sofrimento, conta que a criada Françoise, quando matava uma galinha, não a matava rapidamente, gostava de a deixar andar de pescoço cortado meio caído, entre a morte e a vida, um bom bocado. Há pessoas que gostam de matar galinhas e de fazer durar a morte. Não são monstros. São o comum dos mortais. Gostar de provocar sofrimento e de assistir ao sofrimento do outro é banal. Terrivelmente banal.

O sado-masoquismo não aparece forçosamente encarnado em esbeltas senhoras de lingerie de couro e de chicote a postos. A estética do melodrama radica no sado-masoquismo. O sado-masoquismo é absolutamente banal. E ainda mais terrível do que isto é a indiferença com que praticamos a crueldade. Estou a resumir Marcel Proust.

 

 

BORGES PARA COMEÇAR, CHAGALL PARA ACABAR

 

Pública,   19 de Janeiro de 2003

 

Quando Jorge Luis Borges (1899-1986) foi falar à Faculdade de Letras de Lisboa, ao Anfiteatro 1, não perdi a oportunidade de o ir ver.  Foi há anos, não sei quantos agora. Lembro-me de o ver ser amparado, içado e levado pela escadaria do Anfiteatro 1 abaixo por uns quatro rapazes. Borges era muito bonito, estava muito bem vestido e era velho e frágil. A minha tia Paulina tê-lo-ia achado um homem muito fino.

De facto, ser fino ou fina e ser casca grossa era uma distinção que ocupava muito espaço na cabeça da tia Paulina. E suponho que ocupa muito espaço na cabeça de muito boa gente. Eu tive a sorte de ler muito Marcel Proust, entre os 15 e os 18 anos, que, ao contrário do que quem o não leu e só ouviu uma dicas pensa, ensina a relativizar a importância que se dá às cascas. Prefiro aqui a palavra “cascas” à palavra “castas”.

Sem querer ser “désobligeante” com nenhuma das duas estadistas, nem com a minha tia Paulina, lembro-me de esta última passar pelo televisor quando estava a falar Margaret Thatcher, na altura primeiro-ministro do Reino Unido, e de exclamar “Esta é muito mais fina que a nossa!” A “nossa” era Maria de Lurdes Pintassilgo, primeiro-ministro de Portugal quando a tia Paulina passou pelo televisor e exclamou isto. Os preconceitos causam prejuízos. E, se não é possível viver sem preconceitos, há que limitar os estragos.

Reparo que Borges era um rapaz do tempo da tia Paulina. Nasceram ambos por volta de 1900. Borges em 1899 e a tia Paulina, não sei ao certo, talvez em 1903 ou 1904. E ambos em Agosto: Borges a 24, a tia Paulina a 31.

Não me lembro de nada do que Borges disse essa tarde ou essa manhã no Anfiteatro 1 da Faculdade de Letras de Lisboa. Lembro-me de Maria Kodama, a última mulher dele, vestida de branco, também muito bonita, elegante, fina e frágil, mas nova. O tecido do vestido parecia papel de arroz. Entregou Borges aos rapazes da organização do evento e foi sentar-se, muito discreta, nas bancadas, num lugar anónimo entre a multidão. E a multidão era muita.

Quando chegou a altura das perguntas, um rapaz de tipo indiano aproximou-se da mesa que estava no palco e onde estava Borges ao centro, pegou no microfone, sem subir para o palco e perguntou: “Mestre, o que é a Verdade?” Na altura eu era muito verde e achei a pergunta absolutamente pirosa. Reparei depois que essa é uma pergunta que Pilatos faz a Cristo e que fica sem resposta verbal. Tenho para mim que a verdade não é da ordem do verbal, não é verbalizável. Mas aqui corro o risco de ser mística. Portanto a pergunta do rapaz trazia muita água no bico. Não me lembro da resposta de Borges.

Tenho uma recordação das aulas de literatura portuguesa medieval do Professor João David Pinto Correia que vai de certeza encantar Borges lá na biblioteca dodecaédrica do Céu onde pode trocar impressões com a tia Paulina, com Marcel Proust, com Homero. O Professor João David, perguntou a cada aluno na primeira aula, na aula de apresentação, quais eram os escritores portugueses de que mais gostávamos. Um aluno respondeu sem hesitar “Jorge Luís Borges”. De facto Borges era argentino, nasceu em Buenos Aires. Mas Borges estava convencido que descendia de portugueses e que os factos históricos se prestam à falsificação. Considerava-se a si próprio um falsificador, o que não é de estranhar, uma vez que escrevia contos. Aliás, a passagem do tempo, por si só, é já de si tão alucinante que já ninguém chora os mortos das guerras púnicas embora as guerras púnicas continuem a ser matéria que vem para o teste.

Escrevi “encantar Borges”. “Encantar” pode parecer piroso em português, mas julgo que em castelhano não tem essa casca grossa.

Com estas minhas lembranças de Borges himself despeço-me por agora. Acrescento um poema em prosa feito à imagem dos quadros de Chagall.

 

The Second Coming

Quando Jesus chegou pela segunda vez ao mundo, desenrolou o tapete enrolado que era o mundo, do fim para o princípio, de diante para trás. De joelhos, com muitos apetrechos, com linha e agulha, paciência, persistência e doçura e lamparinas de azeite acesas, pôs-se a remendar o tapete esburacado absurdamente. Já não havia tempo porque o tempo tinha acabado. A eternidade será isso: Jesus a remendar o tapete ajudado pelos Anjos. E o tapete plano do mundo a tomar volume. As rosas e as araras e as aranhas remendadas, consertadas, libertadas. As pessoas consoladas. As feridas, todas as feridas, pensadas e saradas. As cinzas e o pó de novo carne e osso. E o pó de ouro primordial cairá sobre as cabeças como no Natal nupcial como a neve. A árvore da vida à porta do Paraíso, entre o Tigre e o Eufrates, deixará de precisar de ser guardada por querubins e por uma espada inflamada que anda ao redor porque terá triunfado do medo e da morte e do medo da morte. O velho jardim de Adão e Eva e a Arca de Noé, por um lado, o Presépio e a Cruz, por outro lado, levam inevitavelmente a Deus, esse centro incrível. O Natal coincidirá com a Páscoa. E a Semana Santa e a Quaresma não mais terão lugar. O Calvário será só um monte, o monte do Gólgota. E as lágrimas choradas por todos em todos os tempos farão um mar. Nada mais que um mar.