18-3-2011

 

O REINO DA ESTUPIDEZ

 

A Inquisição de Coimbra foi especialmente dura com dez estudantes que prendeu no ano de 1779. À morte de Pombal, os Inquisidores sentiram que os ventos da política lhes eram agora favoráveis e afiaram as garras. Os livros proibidos proliferavam em Coimbra, e a simples posse era sancionada pelo Santo Ofício. Bastou que dois estudantes amedrontados apresentassem as suas denúncias, para que os Inquisidores ficassem com um rol de nomes à sua disposição (Ver A Inquisição no tempo da Viradeira). Os estudantes brasileiros estavam mais fragilizados que os outros, porque não tinham em Portugal parentes chegados que os pudessem tentar proteger. Assim, foram presos no grupo os estudantes seguintes vindos do Brasil:

António Pereira de Sousa Caldas (1762 -1814) , o Caldinhas;

António de Morais e Silva (1755 – 1824);

Francisco de Melo Franco (1757 – 1823).

A vingança deste último, foi escrever um poema em que põe a ridículo a Universidade de Coimbra e o seu Reitor, conseguindo fazer a difusão do poema sem ser conhecido. Foi nisso ajudado por José Bonifácio de Andrada e Silva (1763 – 1838), recém-chegado do Brasil, que fez algumas cópias do poema.

Teófilo Braga narrou estes casos na sua História da Literatura (ver aqui) e também na História da Universidade de Coimbra, vol. III, pags. 675 a 697). É o segundo texto que aqui transcrevo e que se refere especialmente ao poema.

 

 

É neste momento critico que aparece manuscrito em Coimbra um poema em quatro cantos, em verso solto, intitulado Reino da Estupidez, descrevendo o estado mental dos lentes da Universidade e do seu reitor, o Principal Mendonça. O poema apareceu ou correu de mão em mão anónimo, e provocou réplicas e Epistolas satíricas, com alguns desgostos causados por infundadas suspeitas. Atribuiu-se ao Dr. António Ribeiro dos Santos, homem grave, erudito e privado de todo o espírito irónico; atribui-se ao jovem poeta brasileiro António Pereira de Sousa Caldas, que sairá da Inquisição de Coimbra, e se achava em 1784 em Paris; também se chegou a atribuir a Ricardo Raimundo Nogueira. Estavam todos inocentes desse louvável pecado. Ninguém imaginava que o Reino da Estupidez era uma sublime vingança do estudante de medicina Francisco de Mello Franco, que jazera nos cárceres da Inquisição de Coimbra por o acusarem de Enciclopedista. O seu poema heroi-comico teve o poder da Nemesis, da justiça implacável: lançou por terra o governo do Principal Mendonça e provocou as novas reformas encetadas sob o governo do Principal Castro. Hoje, passados mais de cem anos, são os versos desse poema um quadro pitoresco, vivo, sarcástico, pintado do natural e com flagrante realidade. Aqui a arte serviu-se dignamente do elemento satírico como instrumento de demolição do que se prolonga além do seu tempo.

No meio da indisciplina geral em que ia caindo a Universidade, era natural que o Dr. José Monteiro da Rocha, que tanto trabalhara na regeneração dos estudos com D. Francisco de Lemos, não considerasse o governo do Principal Mendonça como favorável ao novo regime pedagógico e se visse forçado a manifestar o seu voto individual no Conselho dos Decanos. Tratando-se da nomeação do Vice-Conservador da Universidade, António José Saraiva do Amaral, fez o Dr. Monteiro da Rocha consignar nas actas do conselho o seu protesto contra a inabilidade do nomeado. Foi isto comunicado pelo vice-reitor ao Principal Mendonça, que tratou imediatamente de obter do governo uma carta régia para que o voto individual de Monteiro da Rocha fosse trancado; efectivamente foi passada essa carta em data de 19 de Abril de 1784. [1] O Principal Mendonça, fortificando-se com ela, chamou em 3 de Junho o secretário da Universidade, Gaspar Honorato da Motta e Silva, aquele pobre homem de quem faz engraçada chacota o poema do Reino da Estupidez nos versos:

O douto  secretário, que em Aveiro

Alçou já vara branca, e subescripsi

Põe no fim do papel...  [2]

 

 Mas o pobre homem era um homem digno e forte pela sua probidade; apresentou-se-lhe. Ordenou o Principal Mendonça que lhe trouxesse o Livro dos Conselhos e lhe mostrasse a folha em que estava o voto de Monteiro da Rocha, para ser riscado, conforme a carta régia que lhe notificou. O secretário declarou que nada riscava sem primeiramente lavrar o auto da ordem que recebia e transcrever a carta régia que tal mandava. O Principal Mendonça, defrontando-se com um homem consciencioso, disse-lhe que tinha razão. Depois da leitura da carta régia pelo secretário, na qual ele era censurado, declarou com simplicidade que nada registara, porquanto o voto que escrevera fora no Livro dos Conselhos, nos quais por ordem dos mesmos lavra todas as decisões; e que por assento do mesmo Conselho aí se declara que por unanimidade se resolveu que ficasse escrito o voto do Dr. José Monteiro da Rocha. O Principal Mendonça confessou que ignorava esse facto, atribuindo-o só á deliberação dele secretário. Replicou-lhe Motta e Silva, que logo depois da sessão lhe fora entregue uma certidão autêntica da acta. Apanhado nesta perfídia, o Principal Mendonça confessou que não reparara na acta e que informara mal o governo a respeito dele  secretário. Que se não afligisse, porque trancando-se o assento do Conselho de decanos tudo ficava sanado. Com toda a hombridade declarou o secretário que só riscava o voto, porque só isso mandava a carta régia, e ali no mesmo Livro dos Conselhos lhe mostrou outras decisões unânimes com documento da aprovação régia junto delas exarado [3].

Quando o governo do Principal Mendonça estava nesta situação tensa, em que se achava o corpo docente dividido na Universidade que Deus haja e na Universidade que Deus guarde, como diziam os espectadores a frio, caiu neste microcosmo uma bólide, uma Sátira intitulada o Reino da Estupidez, que foi lida por todos avidamente, apesar de circular em cópias manuscritas. Compreende-se que tempestade levantariam em uma terra pequena, fechada aos interesses do resto do mundo, esses arrastados e mal metrificados hendecassílabos, mas que transudavam o mais fundamental desdém sobre o pedantismo doutoral e monacal, que imperavam na Universidade. Aí se glorifica com toda a efusão o Dr. Monteiro da Rocha, como o porta-estandarte das reformas pedagógicas pombalinas. Como o som da trombeta que fez ruir os muros de Jericó, agora o poema do Reino da Estupidez teve o prestigioso poder de libertar a Universidade, apeando o Principal Mendonça. Isto basta para justificar a necessidade de conhecer este valioso documento literário que se tornou histórico; e mesmo porque ele suscitou muitas outras sátiras em que se pinta a vida da Universidade.

O poema é precedido de um pequeno prólogo, em que se patenteia o intuito do autor, que se conservou no mais rigoroso anonimato, por ninguém esperar o golpe de um desconhecido e perseguido estudante. É o contraste desta impotência pessoal com a omnipotência da ideia que nos faz olhar com respeito para o poema do Reino da Estupidez.

Começa o Prólogo: «Vai ó Poema, não digo discorrer pelo universo, porque sei que estás escrito em português, mas ao menos corre as mãos de todos esses que compõem a Universidade.—... diz somente que o fruto que daqui levam os Legistas é a pedanteria, a vaidade e a indisposição de jamais saberem; enfarinhados unicamente em quatro petas de Direito romano, não sabem nem o Direito pátrio, nem o Público, nem o das Gentes, nem Política, nem Comércio, finalmente, nada útil. Que os Canonistas saem daqui com o cérebro entumecido com tanto Direito de Graciano, sem crítica, sem método, com alguns verdadeiros imensos Cânones apócrifos, dando ao Papa a torto e a direito poderes que lhe não competem por titulo nenhum, e debulhando os Reis dos que por Direito da Monarquia lhes são devidos. Com estes não te abras mais, e acrescenta que é melhor morar em uma casa vazia do que em uma cheia de trastes velhos e desconcertados, onde reina a desordem, a confusão e a imundície. Deves pois confessar que a reforma trouxe à Universidade as Ciências Naturais, que na verdade tiveram e têm ainda alguns mestres dignos de tal nome, mas que estes ficam tão submergidos pela materialidade dos Companheiros que fazem a maior porção, que para os distinguir é preciso ter vista bem perspicaz; tanto reina ainda aqui mesmo a Estupidez. Adverte, enfim, que não reparem em não fazermos menção dos senhores Teólogos, devendo ser os primeiros, porque ex fructibus eorum cognoscetis eos (S. Mat., c. i.) e invertendo, ex illis cognoscetis fructus eorum.

O poema consta de quatro cantos em verso solto, e a sua estrutura geral lembra o Laus Stultiæ de Erasmo; a situação era análoga, apesar de três séculos de distância. A Estupidez, entidade alegórica, sente-se repelida do norte, vem descendo pela Europa, e não achando abrigo na Alemanha, na França, na Inglaterra, aonde prevalece a civilização, resolve, acompanhada do Fanatismo, da Superstição e da Hipocrisia, procurar as amenas regiões das Espanhas.

O bando chega a Lisboa; é o assunto do canto segundo, em que se descreve a petulância dos fidalgos impunes nos seus atentados; a exploração dos Padres Capuchos, exorcistas de mulheres, e a sensualidade de um bispo galante; então a Superstição sustenta que deve em Lisboa assentar a Estupidez o seu trono:

 

Lisboa já não é, torno a dizer-vos,

A mesma que há dez anos se mostrava:

É tudo devoção, tudo são terços,

Romarias, novenas, via-sacras.

Aqui é nossa terra, aqui veremos

A nossa cara irmã cobrar seu Reino.

 

Mas o Fanatismo opôs-lhe uma objecção:

 

Agora pois só resta que assentemos

Se deve ser aqui se em Coimbra

A nossa cara Irmã entronizada.

Nesta corte, anos há, se tem fundado

Uma coisa chamada Academia;

Mas isto, quanto a mim, sem diferença

É um corpo sem alma, que não pode

Produzir acção própria, ou um fantasma

Que em bem poucos minutos se dissipa.

O meu voto é que vamos demandando

O mesmo assento donde foi lançada

A mansa Estupidez injustamente.

 

O canto terceiro é a descrição de Coimbra, cercada de aprazíveis campinas e férteis vales, apresentando «os mais belos passeios do universo.» Corre a fama de que está prestes a chegar a Estupidez:

 

A académica gente alvoroçada

Não pensa, não conversa noutra coisa;

Em quase todos geralmente reina

Excessiva alegria, e nos Conventos

De que consta a cidade em grande parte

Mandam os Guardiães, que os refeitórios

De mais vinho e presunto se reencham.

 

Começa a carga ao Principal Mendonça, que convoca a Universidade para Claustro pleno, para ser solenemente recebida a Estupidez:

 

Da Universidade o grande Chefe

Um Claustro universal convoca logo,

Para que em pleno conselho votem todos

O que deve fazer-se neste caso.

 

Mendonça tira o barrete e acena ao Lente de prima de Teologia que comece; este, tomada a vénia ao auditório, principia com ênfase:

 

De que podem servir estes estudos

Que mais da moda se cultivam hoje?

A bárbara Geometria tão gabada,

Que mil proposições todas heréticas

Aqui faz ensinar publicamente,

Sabeis para que presta neste mundo?

Diga-o a Inquisição e mais não digo. [4]

Ó góticos estudos nunca ouvidos,

Nos tempos em que tanto florescia

Um Seara [5], maior do que o seu nome

Um Pupilo, um Fr. Paulo de San Mauro, [6]

Que sempre chorarão os Frades Bentos!

Historias Naturais, Foronomias,

Químicas, Anatomias, e outros nomes

Difíceis de reter, são as Ciências

Que vieram trazer os Estrangeiros.

 

E depois de deblaterar contra as dissecções «um cadáver humano espatifando» termina que se receba a Protectora, e que o domínio que sempre foi seu em paz governe. Chega a vez de falar Tirceo (José Monteiro da Rocha, lente de prima em Matemática), que faz uma eloquente evocação à memória do Marquês de Pombal e repele o culto da Estupidez que agora se implanta:

 

Ainda reinará, com mágoa o digo,

Na nossa Academia essa tirana

Essa vã Divindade; mas protesto

Que nem hoje o aprovo, e que inimigo

Há-de em mim encontrar, enquanto o sangue

Seu círculo fizer neste meu corpo.

 

No canto quarto o Reitor manda pregar um Edital na porta da sala dos actos grandes para irem em préstito receber a Estupidez, que se vai hospedar no convento dos Cónegos de Santa Cruz, e ali dá beija mão e lhe fazem entusiásticas alocuções. Recitam-lhe uma Oração de sapiência, e a Estupidez, aceitando «a geral confissão de vassalagem», abençoa-os, dizendo: «continuai, como sois, a ser bons filhos.»

O poema apareceu firmado pelo pseudónimo Fabrício Cláudio Lucrécio. Suspeitaram que seria escrito por algum lente partidário da reforma pombalina. Apontaram Ricardo Raimundo Nogueira e António Ribeiro dos Santos [7]; este último, que incorrera nos ódios do Principal Mendonça, era o mais visado. Ele mesmo narra este incidente em duas cartas inéditas que inserimos:

«Meu amigo, as notícias que me mandais não são de contentamento; corre já por lá o Poema da Estupidez, e sou abocanhado por autor dele. Com efeito houve aqui quem se atreveu a imputar-me esta obra: fundou-se em conjecturas que outros colheram como certezas sem mais exame; o que serve de mostrar quanto é crédula a malignidade humana. Porto, etc.» [8]

«Meu amigo.— Desejais saber qual foi o encontro que eu tive com o Principal Mendonça, Reformador-Reitor da Universidade, e qual o caso que ele representou a Sua Majestade como um acto de resistência e atentado contra a sua autoridade. Eis aqui a história tão verdadeira que dou toda a Universidade por testemunha.

«Em 7 de Janeiro deste ano houve uma Congregação da Faculdade de Cânones: o Principal propus nela para se votar:— Se as Conclusões magnas, que os Presidentes pelos Estatutos são obrigados a subscrever, deviam ser subscritas antes ou depois de entrarem na censura.

«António Henriques da Silveira, lente de Prima e presidente dos Actos grandes, assim que o Prelado fez a proposição deu-se por suspeito e pediu licença para se retirar; e ausentou-se. Eu e outros censores da Faculdade ficámos enleados a ouvir isto, e muito mais quando o mesmo Prelado nos intimou que saíssemos também da mesma Congregação como suspeitos. A este passo rompi eu o silêncio, em que ficámos, e lhe representei que tratando-se ali de um ponto literário pertencente à observância do Estatuto não havia interesse pessoal, e consequentemente nem lugar para suspeições. Tornou-me: Que não vinha disputar; que os censores podiam alegar suas razões se quisessem, mas que expostas elas, se deviam ausentar. Respondi que a minha obrigação era votar na Congregação, quando a lei me mandava, e que a não ser nesta figura não podia ali ter outro lugar. Com isto me retirei e comigo os mais censores. Ficaram na Congregação três únicos catedráticos e decidiram a questão de plano.

«Eis aqui o facto referido com toda a simplicidade; à vista dele parecia impossível que o Principal Reformador pusesse na presença da Rainha a Conta a que se refere o Real Aviso que depois apresentou em outra Congregação; Aviso que supõe dissensões na Faculdade, falta de reverência em alguns dos indivíduos, e até espírito de partido e rebelião, etc. Mas quem vê mais de perto as molas desta máquina conhece que as disposições anteriores em que estava o Prelado a meu respeito fizeram que tudo quanto eu dissesse lhe representasse muito diverso do que na verdade era, e que aproveitasse todo o lanço de me vexar e afligir. Deveis saber que ele nunca me viu com boa sombra, e sinto ver-me obrigado a dizer-vos os motivos, e a falar contra um Prelado a quem devo atenção e respeito; mas força-me a isto a necessidade em que ele mesmo me pôs de ressalvar a minha honra. Este fidalgo é muito aferrado aos estudos e opiniões com que foi criado, e é muito sensível à adulação, sempre o governou quem teve a baixeza de o lisonjear por mais grosseira e sórdida que fosse a adulação e lisonja; é por extremo teimoso, e reputa por altivez e atentado sacrílego a mais leve diferença de opinião que encontra nos outros. Ultimamente é parcial declarado do seu Colégio de S. Paulo, e assenta que deve seguir o partido do Colégio em todas as ocasiões que se oferecerem.

«Havendo no Principal estas disposições, logo desde o princípio do seu governo me foi desafeiçoado, primeiramente porque o puseram logo na persuasão de que as minhas opiniões eram diversas das suas; depois considerava-me como criatura do seu antecessor, a quem ele aborrecia como declarado Pombalista; além disto eu era do Colégio das Ordens Militares e não de S. Paulo, a que ele pertencia, e sabeis as intrigas dos Colégios. Demais, suposto que o tratasse sempre com o respeito e reverência devida ao seu lugar, nunca contudo me humilhei a lisonjeá-lo com abatimento e a fazer-lhe elogios aduladores e rasteiros. Porque as pessoas que ele tinha a seu lado, ambiciosas de o dominarem sem competidor, e conjuradas contra todos os que não seguiam o seu partido, fomentaram estas minhas ideias, e se aproveitaram de todas as ocasiões de me malquistarem com ele, representando-me como um homem soberbo, que queria passar por superior aos demais homens.

“Estas eram as disposições do Principal Reformador quando desgraçadamente apareceu o chamado Poema da Estupidez. Parece impossível que houvesse pessoa que me conhecesse, a quem pudesse ocorrer baptizar-me por autor deste Poema. Eu, certamente, não presumo de Santo, nem de Poeta; mas cuido que nem me reputam tão maligno e insolente que me atrevesse a escrever uma Sátira que desacredita os meus companheiros, o meu Prelado e a minha Nação; nem tão ignorante que, resolvendo-me a pegar na pena para compor tais desatinos, tivesse a loucura de publicar versos tão miseráveis. Contudo houve quem aproveitasse a ocasião de me infamar; e apesar da suma improbabilidade para semelhante imputação, da opinião contrária de todos os homens sensatos e desapaixonados, e da gravidade do caso, consta que algumas pessoas das que mais figuram na Universidade tiveram a ousadia de dizerem ao Principal que eu era o autor do Poema, e de fazer circular a calúnia entre os seus parciais e apaniguados.

«O argumento de que principalmente se valeram foi que falando-se no Poema em Colégio de S. Pedro (riscado dos Militares) e aparecendo pelo seu nome alguns indivíduos do de S. Paulo, havia um alto silêncio a respeito dos Colégios dos Militares; logo, diziam eles, o autor pertencia a este Colégio; e como sabiam que eu tinha feito algum verso noutro tempo, concluíram que também agora havia escrito esta Sátira. Se esta casta de gente fosse capaz de proceder de boa fé, e com desejo sincero de descobrir a verdade, conheceria à primeira vista: 1.º que falando o Poema indistintamente em Colégio, compreendida também nesta generalidade o das Ordens Militares; 2.º que ainda quando a respeito deste se guardasse silêncio, podia isto proceder ou do acaso ou ainda a afeição que o autor da Obra tivesse àquele Colégio, sem daí se poder concluir que ele pertencia àquela casa; 3.° que se o autor fosse Colegial dos Militares por isso mesmo havia de tocar no seu Colégio para remover toda a suspeita e evitar que se falasse nele; 4.° ultimamente que, ainda quando contra toda a razão e verosimilhança se pudesse conjecturar que o autor pertencia aos Militares, não havia fundamento algum para se pôr o dedo em mim, sendo constante que eu era naturalmente sério e mui recatado em falar das pessoas da (Universidade?).

“Estas provas, e outras ainda piores inculcadas com arte, em ocasiões oportunas, e ora em tom persuasivo, ora em ar de compaixão, como quem se condoía de que eu aplicasse tão mal os meus talentos, produziram ao que julgo todo o efeito que os caluniadores pretendiam. O Principal estava costumado a crer cegamente quanto eles lhe diziam, e as provas mais fracas, a que talvez acrescentariam factos absolutamente falsos, lhe pareceriam na sua boca argumentos de irresistível evidência; e como tudo isto achava já um animo disposto e preocupado, assentou firmemente que eu tinha sido o autor daquela obra; cresceu por conseguinte a sua antiga aversão, desejou ter meios de se desagravar, e assentou em aproveitar toda a ocasião de me mortificar e oprimir. Ofereceu-se-lhe esta logo na Congregação de 7 de Janeiro. Os seus validos, que me tinham representado como homem altivo, insolente e desatento quando me deram por autor do Poema, lhe haviam dito que eu era um dos que pensavam suscitar na Faculdade de Cânones que o Presidente devia subscrever as Teses antes da censura, só a fim de vexar e descompor os lentes de Prima e de censurar e desaprovar o que eles tinham autenticado com a sua firma; e que todo o meu sistema era singularizar-me dos outros, desprezar a sua literatura e o seu método e mostrar-me superior; cheio destas preocupações entrou o Principal na Congregação, e com tais disposições nem é de admirar que tudo o que eu dissesse, por mais comedido e ajustado que fosse, lhe parecesse cheio de acrimónia e altivez, nem que depois exagerasse as minhas acções na presença de S. Majestade, figurando-as como factos insolentes, altivos e tumultuosos. Dei-vos conta de toda a história, e ficai sabendo cada vez mais o que são os homens. Desejo-vos saúde e paz, únicos bens que vos podem fazer feliz. D.s vos g.de m. am. Porto.» [9]

O atribuir-se a sátira a um lente fez com que lhe ligassem mais importância, e pouco depois correu um poema em sete cantos, em sextinas rimadas, intitulado O Zelo, oferecido aos Admiradores da Estupidez, por Patrício Prudente Calado; aí se apontam entre os autores imputados o Caldinhas (António Pereira de Sousa Caldas) e o Malhão tio e o sobrinho. Mas andavam longe, muito longe, da verdade. Transcrevemos no entretanto algumas estrofes do Zelo que pintam o estado dos espíritos e a situação da Universidade:

 

CANTO I

Fervia a papelada, que inspirava

O rancor, e inveja a vates pobres,

E sem rebuço impávida atacava

Ilustres almas e talentos nobres,

Das batinas, das becas, do Prelado

Querendo ver o crédito ofuscado. (St. 1.)

 

Vê o Chefe de Atenas que a mentira

Intenta profanar o seu respeito;

Mas não arde sua alma em fogo de ira,

Porque habita a clemência em um nobre peito,

Por mais que brade a intriga por cem bocas,

Não se abala ao gritar de Musas loucas. (St. 3.)

…………………………………………………………………………

Um crítico maligno a pena toma

Corta nas becas, morde os estudantes.

Contra os Lentes nenhuma força o doma,

Ataçalha com dentes arrogantes,

Qual pantera ou leão, qual tigre ou ursa,

Batinas, becas e sagrada murça.

 

Com pretexto de amante patriota

Serve ao seu interesse, e desbocado

Intentando tomar diversa rota

É de todos um crítico malvado;

Elefante ferido que se solta

E contra os seus a tromba volta.

Diz sem pejo este bárbaro inimigo

A quem fúria infernal a boca abriu,

Que a Academia de seu fervor antigo

Por culpa de uns e outros decaiu;

Que reina a Estupidez e o Pedantismo,

E que geme no antigo Barbarismo.

 

Mas eu sempre quis que durassem restos

Do gosto depravado de algum dia.

Que fossem testemunhos manifestos

Do estado, em que dizia inda estaria,

Se um Carvalho ao Mondego não mandasse

E se um raio de luz lhe não soltasse.

 

Se um Lemos cuidadoso não criara

Severo executor das leis sagradas

Que o velho venerando lhe ditara,

E se lá das campinas dilatadas

Do aurífero Tejo não trouxera

O benigno Reitor, que hoje impera.

 

CANTO II

Enquanto isto no trono se passava,

A vil Discórdia as serpes ocultando

Por casa dos livreiros se assentava

Em forma de estudante, e conversando

Ao Poema elogios mil fazia

Dando-lhe diversos autores cada dia. (St. 1.)

 

Outras vezes fazendo-lhe censura

Contra o mesmo poeta blasfemava,

Sátira horrenda, filha da impostura,

Batendo nos balcões a apelidava,

Razões diversas dando e recebendo.

Fez opostos partidos ir nascendo. (St. 2.)

 

Há no alto da rua estafadora

Que tem de Quebra-costas justo nome,

Uma loja de livros, em que mora

Um sincero Francês, hum pobre home'

Que é de todo o vadio porta aberta;

Nela se fala a cara descoberta.

 

Ali se ajuntam muitos charlatões

Para verem na fonte as aguadeiras,

E tratando das belas edições

De que viram as páginas primeiras

A bons Autores fazem por fadário

Os juízos que vêm no Dicionário.

……………………………………………………….

Era matéria então à solta gente

A fria Estupidez, que recatada

A poucos descobria a magra fronte

E lhe deu o ser rara a fama honrada

De exceder o Lutrin, o rico Hyssope,

E vencer Wychrelei, e o sábio Pope.

 

Pouco a pouco sentando -se a patrulha

Se falou no Poema a sangue frio:

……………………………………………………………

Que por seus próprios nomes censuradas

Com pejo no libelo infame via,

As pessoas em tudo autorizadas

E zelosas da mesma Academia;

E que este desaforo, esta insolência

Era pecado indigno de indulgência.

 

Contudo é certo que esta Academia

Mui diferente se vê do que dantes fora,

Se era sábia no tempo em que nascia,

Com a inércia de velha existe agora.

E da antiga, fiel, vivo retrato.

Tudo são formulários e aparato.

 

Apenas tinha posto os pés de fora

A famosa discreta companhia

Na casa em que o Borel pequeno mora,

Se escutou uma horrenda gritaria;

E quando a confusão mais amainava

Falar só na Estupidez se escutava.

 

Para lá foram todos: de um mangote

De estudantes se ia rodeando

O Borel, mui vermelho e de capote

Sobre o dito Poema dissertando,

Uns fazendo-lhe crizes bem fundadas,

E o Francês respondendo às gargalhadas.

 

No Canto III do Zelo descrevem-se as principais capacidades catedráticas da época:

 

Um Pedroso, Cujacio lusitano,

Que sendo óptimo desde a tenra idade

Novas luzes derrama de ano em ano

Que há-de com respeito olhar a posteridade;

Na cadeira ditando, ou presidindo

Qual a palma com o peso vai subindo.

………………………………………………………………….

Um Carneiro, das Leis forte coluna,

Em quem a mansidão e saber nobre

Eu prometo que nunca se desuna;

Monteiro, a quem com as asas cobre

A rectidão, a amável diligência,

Alto saber e pura consciência.

 

Um Montanha, Barroso e Castelo,

Que ao Direito civil dão grande nome,

Cujo fervor, justiça e grande zelo

O tempo em vão pretende que se dome.

Além destes alguns de honrada fama

Que em falta deles a ciência aclama.

 

Pus por chefe nos Cânones sagrados

Um Henriques solícito e prudente,

Que aos que cingem Tiara e são sagrados

Aquilo que lhes toca dá somente.

Um Pinto, no saber grande e profundo.

Que honra as letras e o novo mundo.

 

Um Ganhado lhe dei e um Trigoso,

Um recto executor das leis sagradas,

De quem o mundo fala de invejoso..

 

Dei-lhe um Pires, em letras e virtudes

Aos que tenho contado em tudo igual

Que nascido entre povos quase rudes

Sábio ensina o Direito Natural.

Além destes vou outros omitindo

Que a seu tempo os irão substituindo.

 

Nas Ciências, que a mente humana excedem,

Um Monteiro profundo fiz nascer,

Por quem de noite e dia as artes pedem

Que das mãos da morte o livre se puder;

Maia, Veiga, Pereira, e fiz rasgar

Um Viturio as campinas do alto mar.

 

Para o teu simulacro olhei benigna,

E de longe chamei a quem fizesse

Ressuscitar a morta Medicina;

Do meu trabalho o fruto se conhece

Num Pereira, Tavares, e num Leal,

Num Picanso, num Pinto e num Sobral.

 

Dei os braços à sã Filosofia,

Pus-lhe Mestres de nome, promovidos

De outra parte à lusa Academia…

 

Teologia, ciência nobre e santa,

Inda tem por colunas a seu lado

Culmieira, Carneiro; e inda espanta

Guadalupe erudito e o bom Calado,

Honra dos seus ilustre e rara,

Delícias da Faculdade e pátria cara.

 

Era a loja do Alves: lá se achava

Uma corja de mestres de guedelha

Que batendo nas mesas recitava

Acerca do Poema, quanto a orelha

Pescar pôde por casa dos fregueses

Que o peito lhe abrem pelas mais das vezes.

 

O Silva sustentava que a obra fora

Engendrada em cabeça de mais peso.

O Santos diz que ouvira a uma senhora,

Ó caspité! que o traz em ferros preso

Que sabia quem era, e não passara

Daqueles a que a malha fofa honrara.

 

O magro Bruxo erguendo a voz cansada

O desmente dizendo, que o fizera

Um sujeito assistente na Calçada.

O Martins praguejando afirma que era

O Caldinhas, que em doce paz descansa

Nas regiões da astuta e sábia França.

 

Outro disse dali—que tinha sido

O pequeno Malhão, e outro que o velho;

Outro disse que fora produzido

Por homens de saber e de conselho;

Que nas letras há muito floresciam,

Opinião que os mais todos seguiam.

 

A Estupidez, os Sonhos afrontosos

Cartas loucas, Sonetos desmembrados,

Produções de espíritos invejosos

Contra homens mais doutos sublimados,

Servem só de fazer subir seu nome

Até onde o tempo mármores não come.

 

Pretendem, mas em vão, peitos perversos

A glória escurecer do bom Prelado,

Mas nada podem mentirosos versos

Quando o contrário a fama tem cantado.

Quando prova e provou a experiência

O seu zelo, saber, sangue e prudência.

 

O que nos interessa é a reconstrução da vida académica nesta crise em que as reformas pombalinas estavam prestes a afundar-se; entre as numerosas poesias suscitadas pelo Reino da Estupidez importa apontar a Ode a Fileno, dividida em duas partes, em que descreve as duas fases da Universidade, a medieval e a moderna:

 

Em especial começo

Referindo os heróis da Faculdade,

Heróis de um alto preço

Que viverá seu nome em toda a idade.

 

Um Távora, um Sardinha,

Santa Helena, um Jacinto e um Vieira,

E um subtil Doninha,

Chixorros, Daniel, e um Tomás Pereira.

 

Sanches, Valézio, Inácio,

Luz, Santo António, Plácido e um Rocha

Que no imenso Lácio

Cada qual se ostentou brilhante entorcha.

 

Callai, Costa, Cardoso,

Bartolomeu, Cristóvão, Spectação,

Igual sol luminoso

Feliciano atendo e com razão.

 

Jaques, Boaventura,

Outro Vieira, Inácio, em tudo iguais,

Doutrina sábia e pura

Nos doutos Chantres, sábios Magistrais.

…………………………………………………………….

Em ambos os Direitos

Que sábios Mestres, que varões famosos,

Que elevados sujeitos,

Na sábia esfera astros luminosos.

 

Em epílogo abranjo

Os Corifeus dos Cânones sagrados,

A um Miguel Brás Anjo,

Almeidas, Sousas, Pereiras e Berardos.

 

Peço que os astros pises,

Seixas ali vareis, Bernardos, Gomes,

Arúvjos, Denizes,

Custódios, Rochas, Guerras e outros nomes.

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E que brilhantes astros

Houve nas Leis civis de luzes raras,

Os Cardosos, os Castros,

Pires, Moirões, Pinheiros e Searas.

 

Amorins e Casados,

Seabras e Viegas singulares,

Luis, Queirós, togados,

Os Novais, os Ferrazes, os Soares.

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Se falo em Medicina

Ah, que Mestres tão sábios e entendidos,

Sua rara doutrina

Acudia aos enfermos e afligidos.

 

Os Ortigões, os Vales,

Os Pessoas, os Reis, Lopes, Amados,

Desterravam os males

Com remédios felizes e aprovados.

 

Os Alvares e Duartes,

Gomes, Silvas e Amaros, os Mirandas,

Mostrarão em tantas partes

As curas eficazes sendo brandas.

 

Porém sem aparato,

Uma cura fazer quase divina

Pertence ao Doutor Gato,

Como se fosse Deus da Medicina.

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Eis aqui as Ciências

Que ensina a antiga Academia;

Das outras as regências

Ao Colégio das Artes pertencia. [10]

 

Às Faculdades grandes

Em nada acrescentou esta moderna,

Amigo; e quando mandes

Mostrarei que esta é verdade eterna.

 

As Ciências menores,

Porque assim lhe chamou o tempo antigo,

Hoje não são melhores.

Eu vos hei-de mostrar, dilecto amigo.

 

Na chamada reforma

De novo só há nomes de arrogância.

Tudo é plataforma,

Uns baixos acidentes sem substância.

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E se alguns especiosos

Preferem estes estudos aos primeiros,

Ou eles são teimosos.

Ou são aduladores lisonjeiros.

 

Eu sou sincero, e o provo,

Eu tenho aos novos actos assistido;

Não vi questão de novo

Que aqui se não tivesse defendido.

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O Ergo e o Atqui

Lançaram fora com a maior fúria,

Amigo; e eis aqui

A reforma da nova sabia Cúria.

 

No socrático estilo

Querem que os seus alunos argumentem;

Eu desejava ouvi-lo,

Porém eles a Sócrates desmentem.

 

São hoje os argumentos

Termos confusos, mil arrazoados,

São vários pensamentos

Deste e daquele livro enmendicados.

 

Se lhe falam em forma,

Recebem estas vozes com risadas,

Esta é a bela norma

Estas novas cabeças reformadas.

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Se falam nos exames

Não vem aqui Novato insapiente.

Pois torcem-se os arames,

Em havendo padrinho ou mão pendente.

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Aqui faço memória

De Mathesis, que goza um só Monteiro,

Da Natural História

Só merece louvor algum estrangeiro.

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Da Mathesis a empreza

Abraçaram os estudantes com desvelo,

Congresso da pobreza,

Que de graça tiveram o capelo.

 

Destes, toda a ciência

Só o grande Monteiro exceptuando,

É só uma aparência;

Mas poderão saber indo estudando.

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Se isto desagrada,

Não me retrato, sejam inimigos,

Sim;—nada, nada, nada

Sabem, que não soubessem os antigos.

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Nos Estatutos Lemos

Desta monstruosidade foi agente:

Com ódio entranhável

Aos Frades buscou meios sinistros,

Na divisão culpável

Enganando ao seu Rei e aos seus ministros.

 

O Infante a escutar

Estas disposições, depois de ouvir

Disse: Não vai fundar

As Letras o Marquês, vai-as fundir.

 

Eu conheço-os a todos,

Sua ciência, vida e seus costumes,

E eu sei por mil modos

Queimar incensos, exalar perfumes.

 

Eu de um lente moderno

Que fabricou aqui a Estupidez

Por gentil e por terno

Quisera perdoar-lhe desta vez.

 

Se estúpida é a ciência

A quem regula a presente norma,

Vem sua descendência

Muito lá do princípio da Reforma.

 

Os Compêndios os mesmos,

Os mesmos mestres bem cheios de brio,

Que foram os tenesmos

Que tolheu a Ciência e decaiu?

 

Do conceito algum tanto

Caiu o autor da Estupidez moderna

Tendo ao ostentar espanto,

Por livrar a cabeça quebra a perna.

 

Do Trigoso e Pedroso

Falar, e do Morgado dos Alpões

E ímpeto perigoso

Que lhe podem pisar as presunções.

 

Se de um D. Carlos fala [11]

Devera o Stupidante na verdade

Saber que não o iguala

Na sua respectiva Faculdade.

 

Só pode o Stupidante

Dizer que censurava a Anatomia,

Pois o julga ignorante

Como ele na sã filosofia.

 

É Dom Carlos sublime

Teólogo e Filósofo eminente,

Seria um grande crime

Ser contra a Anatomia; o Autor mente.

 

Diz que estimavam muito

Os Frades que esta Estupidez viesse,

E que sobre o presunto

À porfia sobre ele se bebesse.

 

E diz que alvoroçados

Da Estupidez paravam na imagem.

Mandavam os prelados

Que fizessem benigna a hospedagem.

 

Mais coisas semelhantes

Fingiu o Autor dos celebres Colégios,

Licença dos pedantes

Que tiram da ignorância os privilégios.

 

E com esta jactância

Nos Regulares deu esta pancada.

É certo que a ignorância

Sempre no mundo foi bem confiada.

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Que a Estupidez queriam

Os Regulares, disse este Poeta,

E não quer que se riam,

E mil vezes lhe dizem que é Pateta.

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Estupidez nos Conventos,

Nos Colégios da Atenas lusitana,

Pueris pensamentos

De cabeça mais bruta do que romana.

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Já muitos anos antes

Em Coimbra a moderna se sabia

Nos Cónegos Regrantes

E em todos os Colégios da Sofia.

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À memoria me vem,

Fileno, pensamentos eficazes.

Que a Estupidez é mãe

De dois estupidantes, dois rapazes.

 

Subirem aos Capelos

Sem Actos, Argumentos, sem exames,

Podem ser uns camelos,

E sobretudo podem ser infames.

 

Subir ao Magistério

Sem discípulo ser, e adiantar-se

A um congresso sério,

Muito custa, Fileno, isto tragar-se.

 

Mas, Fileno, esquecia

Dizer-te que nas outras Faculdades

Já há muito se sabia

Todas estas questões de novidades.

 

Em ambos os Direitos

Se tinham defendido Conclusões

Por egrégios sujeitos,

Causando á Academia suspensões.

 

Dos Cânones primeiro

Nas Magnas Conclusões tanto brilharam

Um Melo e um Ribeiro

Onde os modernos ainda não chegaram.

 

Nem as altas façanhas

Em Conclusões imensas, coisa rara,

Chegam aos Mascarenhas

E a quem lhe presidiu, o bom Seara.

 

Na cópia do Reino da Estupidez, que se acha entre os manuscritos da Biblioteca de Évora, o poema traz como autor Francisco de Mello Franco; a atribuição a outros nomes e a cooperação de um outro autor mais confirmam esta afirmativa. Assim no Poema dos Burros (Canto único de 1813) diz José Agostinho de Macedo:

 

Tu que ao prosa Diniz ditaste o Hyssope,

E a Estupidez ditaste a Almeida e Franco.

 

Na Lista das pessoas que saíram no Auto de Fé da Inquisição de Coimbra em 26 de Agosto de 1780 encontra-se com o Caldinhas (também incriminado como autor do Reino da Estupidez) «Francisco de Mello Franco, Estudante médico, natural de Peracatú, bispado de Pernambuco: Herege, Naturalista, Dogmatista; negava o Sacramento do Matrimónio.” E na mesma Lista (n.° 13) figura também «Francisco José de Almeida, matemático, filho de José Francisco, natural de Lisboa, herege, naturalista… seguia os mais erros dos seus sócios, lendo pelo Autor Rousseau e outros hereges.» [12] O que se apura desta tradição é que Franco foi auxiliado por um outro escritor, personificando-o em Francisco José de Almeida, por ter como ele sofrido os rigores da Inquisição de Coimbra e também seguir as Ciências naturais; mas o cooperador de Mello Franco foi o seu patrício José Bonifácio de Andrade e Silva, sendo o Reino da Estupidez escrito e copiado em quinze dias, e sub-repticiamente distribuído por ocasião de uma das festas da Universidade. [13]

 

 

[1] «Ex."" e rev.mo sr.— Sendo presente a S. M, a conta que v. ex.ª me dirigiu com a cópia do voto que no conselho dos decanos deu o Dr. José Monteiro da Rocha, para mostrar nele a inabilidade que havia no Dr. António José Saraiva do Amaral, para servir de Vice -Conservador da Universidade de Coimbra; e com resposta na qual v. ex.ª refuta os fundamentos do referido voto; e achando a mesma Senhora que pela ocasião do mesmo voto se praticou a novidade de se registar nos livros do sobredito conselho, sendo um voto singular que não podia ter força de decisão, faltando-lhe ou o consenso unânime do mesmo Conselho, ou a real aprovação de Sua Maj.; é a mesma Senhora servida que v. ex.ª mande logo riscar e trancar de maneira que mais se não possa ler o registo do referido voto; não só por não ser este o costume em tempo algum, mas também pelos inconvenientes que da introdução desta pratica poderiam resultar; fazendo advertir ao secretário que o registou que fique na inteligência de que os livros de registo que tem a seu cargo só são destinados para as reais ordens de S. Maj.; para as decisões do mesmo Conselho, nos casos que lhe estão cometidos e pode resolver; e para aquelas ordens que pelo seu expediente se costumam e devem expedir. O que tudo de ordem de S. Maj. participo a v. ex.ª para que assim o fique entendendo e faça executar nesta conformidade. Deus guarde a v. ex.ª.  Palácio de Nossa Senhora da Ajuda em 19 de Abril de 1784. — Visconde de Vila Nova da Cerveira. — Senhor Principal Mendonça, Reformador e Reitor da Universidade.

[2] Canto III. Em nota acrescenta: «O que então era secretário da Universidade costumava pôr subescripsi em vez de subscripsi.

[3] Instituto, de Coimbra, vol. xxxvii, p. 75 a 77.

[4] Referia-se ao recente e inaudito processo de José Anastácio da Cunha.

[5] Dr. António Cardoso Seara, lente de prima de Leis.

[6] Lente de Gabriel, graduado em 4 de Outubro de 1738.

[7] Soneto contra o autor do Reino da Estupidez. (Ms. da Academia, G. 5, Est. 14, n.º 16.)— «Entre os perseguidos contam-se Ricardo Raimundo Nogueira e António Ribeiro dos Santos, homens cujo carácter circunspecto e princípios moderados deviam pô-los ao abrigo de qualquer suspeita.» (Conimbricense, de 1867, n.º 2058.)

[8] Mss. do Dr. Ribeiro dos Santos, vol. 130, fl. 93. (Na Bibl. Nac.)

[9] Mss. de Ribeiro dos Santos, vol. 130, fl. 27 a 31.

[10] Ode a Fileno, sócio da Academia das Ciências de Lisboa, consultando a Fábio lhe relate os progressos das Ciências em a nova plantação da Universidade, pedindo-lhe juntamente o seu parecer a respeito das Ciências modernas e antigas. Responde Fábio, dividindo a sua Ode em dois cantos; no primeiro no que pertence à antiga, no segundo no que pertence á moderna. (Ms. da Academia, G. 5, Est. 23, n.° 42.)

[11] Refere-se a ele o seguinte significativo documento:

«Sendo presente a Sua Maj.de com informação de V." Ex. e parecer que nele interpôs o Requerimento de D. Carlos Maria de Figueiredo Pimentel, Lente primário da Cadeira Exegética do Novo Testamento, no qual a exemplo das igualações graciosas que a mesma Senhora concedeu a outros Lentes por haverem recitado as Orações fúnebres nas Exéquias do Senhor Rei D. José e da Senhora Rainha D. Maria Ana Vitória, seus augustos pais, pedia uma jubilação na Cadeira que ocupa por não haver outra à qual possa ser igualado, havendo recitado a Oração fúnebre na ocasião das Exéquias do dito Senhor Rei celebradas na Capela real da Universidade na ocasião em que servia de Vice-Reitor e Prelado dela. Foi a mesma Senhora servida resolver que, não havendo exemplo para esta nova pretensão, seria de prejudiciais consequências para a Universidade a concessão de semelhante graça. Determinando que na dita Cadeira não pode caber premio de igualação pelos referidos motivos, sendo ela superior à Faculdade, em consideração da pessoa do sobredito D. Carlos Maria de Figueiredo Pimentel, do seu reconhecido merecimento e em prémio de haver sido Orador das referidas Exéquias, além do ordenado que vence da sua cadeira se lhe dê uma ajuda de custo de cem mil réis cada ano. O que de ordem de S. Maj.de participo a V.» Ex.ª para que, fazendo-o presente na Junta da Fazenda da Universidade de Coimbra, assim o haja de executar. Deus g.de a V.ª Ex.ª. Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, em 14 de Janeiro de 1784.  Visconde de Vlla Nova da Cerveira.» (Ms. n.º 437, fl. 81.)

[12] Vê-se que José Agostinho colheu em Coimbra a tradição. Em uma nota de Ferreira da Costa (n.° 153) ao poema dos Burros (recensão integral) lê-se: «Francisco José de Almeida, médico muito pequeno de corpo, muito verboso, e ainda que ininteligível nas expressões e até nos discursos escritos, os quais eram de uma linguagem obscura e particular. Foi membro da Junta de Saúde Pública. Era sócio da Academia, que lhe premiou um Tratado de Educação Física.»

[13] Consignamos aqui alguns dados biográficos de Francisco de Mello Franco. Nasceu em Paracatu, na provinda hoje estado de Minas Gerais, no Brasil, em 17 de Setembro de 1757; foram seus pais João de Mello Franco e D. Ana Caldeira; recebeu a primeira educação no Seminário de S. Joaquim, no Rio de Janeiro, distinguindo-se pela sua aplicação; veio depois para Coimbra seguir os estudos médicos na Universidade, tendo-se matriculado em 1775 no primeiro ano matemático e no quarto filosófico. Achou-se pois no período de reacção antipombalina, e, como o lente José Anastácio da Cunha fora arrojado aos cárceres da Inquisição, Mello Franco com outros estudantes foi também preso pelo Santo Oficio de Coimbra, jazendo nos cárceres quatro anos (1777-1781) pelo crime de ler livros dos Enciclopediazitas. Aí se lhe acordou a veia poética, escrevendo as Noites sem sono. Acusaram-no também de negar o carácter de sacramento ao casamento, e chamada como testemunha uma senhora de Coimbra a depor contra ele, recusou-se a isso, sendo por tal motivo castigada com um ano de reclusão no Santo Oficio. Logo que Mello Franco saiu solto, desposou essa nobre vítima da humanidade. Por aviso régio de 29 de Agosto de 1782 foi permitido a Francisco de Mello Franco que completasse o seu curso na Universidade. Compreende se quanto a indignação contra o fanatismo bruto que subsistia em Coimbra e dominava na Universidade lhe suscitou essa terrível execução do Reino da Estupidez. Ninguém suspeitou do obscuro estudante de medicina. O efeito foi tal que o Principal Mendonça teve de ser despedido do governo da Universidade, substituindo-o um homem mais simpático, embora mais austero, o Principal Castro. Graduado em Medicina, Mello Franco veio para Lisboa, onde exerceu a clínica, e manteve amizade com José Correia da Serra, António Ribeiro dos Santos e Vila Nova Portugal, publicando na Academia das Ciências obras valiosas como o Tratado da Educação Física e o livro da Higiene, sob influência da leitura de Tissot. Foi um dos fundadores da Academia de Geografia em 1799. Foi vice-presidente da Academia das Ciências, sendo por ele escrito o Relatório de 1816. Era médico honorário do paço; em 1817 foi com ordem régia à Itália para acompanhar para o Rio de Janeiro a Arquiduquesa de Áustria, D. Maria Leopoldina. Vendeu os seus bens para fixar residência no Rio de Janeiro; seguindo o partido político da emancipação do Brasil, de que era chefe o seu amigo José Bonifácio de Andrade, D. João VI o demitiu de médico do paço. Além desta contrariedade, a falência de um negociante seu amigo, que lhe envolveu os seus pequenos recursos e o deixou na pobreza, forçara-o a retirar-se para a província de São Paulo com esperança de convalescer de doença agravada por tantos abalos. Não podendo conformar-se com o isolamento, quis regressar ao Rio de Janeiro, mas na viagem sentiu as últimas agonias, e pedindo que o desembarcassem expirou em uma cabana em 22 de Julho de 1823. O poema do Reino da Estupidez contava já quatro edições: de Paris (1819), de Hamburgo (1820), de Paris (1821) e de Lisboa (1822 e 1823). O poema tem continuado a ser reproduzido, e poderemos apontar mais as seguintes edições: de Lisboa (1833), de Paris (1834, no Parnaso Lusitano) e de Barcelos (1868). Para o estudo da biografia de Mello Franco convém consultar as Memoriais biográficas dos Médicos e Cirurgiões portugueses, por F. A. Rodrigues de Gusmão, p. 126; a Revista trimensal, t. v, p. 345; e Pereira da Silva, Varões ilustres do Brasil, t. II, p. 173.     

 

 

Bibliografia

 

Francisco de Melo Franco, O Reino da Estupidez, Poema herói-cómico-satírico em 4 cantos, 1785, in Parnaso Lusitano, Satíricas, vol VI, Paris, Aillaud, 1834, pag. 149 a 187.

Online: http://books.google.pt

 

Francisco de Melo Franco, O Reino da Estupidez, 1785

Online: http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0006-02096.html

 

Ofélia P. Monteiro – Sobre uma versão desconhecida de O Reino da Estupidez, in Revista de História das Ideias, Vol. IV. Tomo 2 (1982)

Online: http://www.uc.pt/fluc/ihti/rhi/vol4/pdfs/Vol_04_T2_09_omonteiro.pdf

 

Lista dos penitenciados pelo Santo Ofício que saíram no Acto público de Fé, que se fez em Coimbra na Sala do mesmo Tribunal em 26 de Agosto de 1781

Online: http://almamater.uc.pt