16-12-2005
José Crisóstomo Gomes Bação Leal
nasceu em Lisboa a 1-7-1942
morreu em Nampula a 1-9-1965
As poesias nascem dum silêncio
ou duma conversa que temos a sós
com uma dúvida ou uma madrugada
que faz de nós que não somos nada
a própria dúvida mas concretizada
Encontrei-me. Sou poeta
cantem estrelas para mim
murmurem flores os meus versos de sangue
que eu farei da noite
o mais belo gesto de oferta.
Nesta hora sou poeta.
Cantem estrelas e chorem nuvens
porque esta é a hora do delírio.
As flores
que vistam as suas cores mais gritantes
e gritem ao vento os meus versos de sangue.
As folhas
que vistam as árvores dum verde agonia
e berrem aos montes a imensidade da loucura.
Que quando se chegar ao auge da orgia
eu ligarei a vida à morte
por uma ponte de ternura.
Se por acaso acontecer
o que nunca foi previsto
como o sol não nascer ou a liberdade reaparecer
não hesitem!
Telefonem ao Cristo.
Mas primeiro…
cortem as asas aos dias
para os pássaros poderem voar
e aceitem como verdadeiro
um mundo sem orgias
onde o homem possa pensar
Berram traidores
culpam-se inocentes
nesta terra banhada em dores
Homens morrem absurdamente
apenas por acreditarem
que o pão pode nascer quente.
Ergam-se vozes solidárias
Afastem-se os abusadores
que se arvoram em libertadores
do que eles próprios esmagaram.
Basta de delatores
Já muitas mães choraram
Noite
Se tivesses boca e fosses mulher
conheceria o morrer de amor
Toma uma almofada e dorme
Não insistas em compreender
o que julgas que te faz sofrer
será melhor que adormeças
que pura e simplesmente te esqueças
que existes numa sociedade
que aceita a fome como uma necessidade
na medida em que ela
lhe alimenta a conversa
quando não tem nada para dizer
Esquece o lugar onde vives
e transporta-te para outro mundo
onde possas ser à vontade um vagabundo
e onde alguém sofre quando dizes
que pensas seriamente em desaparecer.
Absoluta e contente
vem ao encontro dos meus gestos
e dos meus silêncios de pedra
as nuvens
morrem nas fendas do vento
e eu morro nos gritos da terra.
Vem! deusa dos olhos verdes
dos meigos cabelos louros
vem sem medo
vem descobrir os tesouros
que se escondem para lá do mar.
Vem descobrir o segredo
que fez um homem naufragar…
Desconhecida da mesa do lado
quando sorris
vejo primaveras na flor da tua boca
e passarinhos
na brancura quente das tuas mãos
Se eu fosse poeta…
Tornava-te imortal num verso selvagem.
Fazia desse teu olhar verde e puro
um sonho de oiro
no meu sono atormentado de vencido
Docemente
hei-de agarrar a tua mão
e juntos
seremos os donos da floresta,
Levaremos o Outono
às folhas que tombam na Primavera.
Seremos em cada pôr do sol
uma dádiva de amor
uma carícia à morte.
Juntos
enfrentaremos o tempo
com um olhar firme.
Uma estranha angústia
saboreia a essência dos meus gestos.
No tempo sem memória
esvoaçam ao acaso
folhas arrancadas a um ramo de tédio.
O amor continua sobre a mesa
como um insulto ao vinho
da chávena de café.
Ao longe na imensidão
vi uma estrela a sorrir
tapando a boca com a mão
parecia querer fugir
à minha ingénua indiscrição
Tentei a aproximação e sorri também
ela porém. receou uma traição
e fugiu no Além
Amor… um dia
terei de beijar o vidro rasgado
terei de moldar um passado.
Mas nesse dia não chores
espera que eu surja entre a bruma
com o corpo envolto em espuma.
Transforma as certezas
em flores murchas na madrugada
em gritos de sangue numa evasão
Depois para teu bem
e enquanto esperas que chegue alguém
vai falando em mim
como se eu continuasse a viver
e o morrer não fosse o fim
Decididamente não sei
como pensei encontrar em ti
serena deusa dos cabelos louros
doce princesa dos olhos tristes
esse longínquo e místico nada
que o meu corpo anseia
quando morre a madrugada.
O meu sangue corre.
Não sei se isto representa a minha vida
ou apenas um conjunto de palavras.
Decididamente
tudo tem um sabor pesadamente inútil.
Eu sei.
Uma estranha angústia
saboreia a essência dos meus gestos.
A tua voz recordou-me um mundo
abandonado há muito
um mundo onde as papoulas sorriam
onde os cravos se erguiam
para glória dos campos.
A angústia
num rasgo apoteótico e puro
condena-me à morte.
Resignadamente
escrevo o poema do sangue
na tábua da ausência.
Pego serenamente no revólver do silêncio
e com poesia nas mãos
abro o ventre dos deuses.
Avivo o azul cinza no meu cérebro exaltado.
Numa distância sem tempo
musas cantam a misericórdia dos astros.
E o gesto...
não passa dum gesto.
Morre na espuma do medo.
Tudo é um branco demasiado vago
na tarde imensa…
A árvore do tédio exala um calor ébrio
que abre o pano do medo
e aprofunda as feridas do tempo
A rotina com a sua cor sem memória
elogia os vultos que afagaram o Outono.
Estende a cidade na poeira das sombras.
Eu vagamente bêbado de incertezas
deponho o meu fantástico desprezo
na tristeza redonda do momento.
E deixo-me morrer
na curva austera dum silêncio nevrótico.
Porque voam os pensamentos no ventre da solidão?
se a minha mão adormece numa chaga bêbada…
Porquê? Pergunto-me na transparência do meu mundo.
As respostas batem na parede espelhada
que esclarece as cores do desespero
e caem
pesada inutilmente no tapete da consciência.
Por momentos sei que pensar não ajuda as coisas.
Gasta o tempo mudo
e coloca-nos na obliquidade da vida.
E como não sou uma parede com alma
que sangre em silêncio
fecho as portas da angústia e entro
Como um príncipe bêbado na festa dos vivos.
Sucedem coisas curiosas
Ontem imaginei poder beber
um calmo desespero por uma incerteza
um suave adorno das rosas negras
que são o sangue do meu sofrer.
Não consegui porém e bebi tristeza
uma tristeza feita de angústia serena
quase reconfortante mas sem paladar.
Ah vazio! eterno vazio!
Vais-me matando aos poucos
estou farto de não viver
não tarda estarei louco
ou morto sem morrer.
O que me cegou? Não sei.
Talvez uma boca desfolhada
talvez o som duma balada
talvez mesmo
o que ainda não pensei
E durante a mais sólida das noites
quando o silêncio descer sobre os ciprestes
meus lábios roxos de poeira
possivelmente vermes imprecisos
cantarão entre caveiras
versos de sangue à memória dos vivos.
ORAÇÃO DE VENCIDO
Já se esqueceram as nuvens.
A alegria voltou ao rosto das luzes.
Os homens do campo
que poderiam ser meus irmãos
são agora estranhas sombras
formulando gestos.
Eu vou descendo os degraus da noite
com o passo marcadamente incerto
dos que não sabem perder
e perderam
Caminho em busca da renúncia
com flechas de vento
nas asas da derrota.
Levo na cinza dos meus olhos
toda aquela angústia branca
que viceja na espuma dos meus medos
Por entre pedras e poemas
bêbado e só
eu vou cantando
a minha oração de vencido
Perdido no nada
encontrei-me um dia
faltava-me tudo
apenas vivia.
De:
José Crisóstomo Bação Leal, Poesias e Cartas, Tipografia Vale Formoso, Porto, 1971
Poesias recolhidas pela mãe do autor de rascunhos que este deitava fora e que assim escaparam à fogueira em que Bação Leal destruiu as suas poesias antes de embarcar para Moçambique.