14-12-2002

 

HELGA MOREIRA

(N. 1950)

 

 

 

Helga Moreira nasceu a 29 e Abril de 1950. Publicou o primeiro livro em 1978, em 1996, Os Dias Todos Assim  e, em 2002, Desrazões, editado pela Quasi. Colaborou no volume Vozes e Olhares no Feminino, edições Afrontamento, Porto 2001. 

 

     

 

26-3-2003 - Lançamento de novo livro de poesia, "Tumulto", editado pela & etc.

Setembro de 2006 - Livro "Agora que falamos de morrer", editado pela & etc.

 

 

Apago cigarro após cigarro,

a chávena ainda quente do café,

e o corpo todo à escuta.

No sono entrevi o teu olhar e

ao visitar-te, excessivamente te beijei.

Entre temor, entre comas, os lugares

que habito são apenas pontos

de esquecimento e fuga.

 

Tenho medo, por vezes, de estar em casa,

outras, de sair, não sei o que me persegue

ou persigo, movo-me apenas

por entre odores, escombros, e aflita

com perigos indefiníveis.

 

Os dias todos assim, & etc., 1996, pág. 30

Anda de salto alto, meia preta,

o coração ao pé da boca e,

mais que tudo isso, ver passar

ao pé da porta

uma figura como esta.

 

Os dias todos assim, & etc., 1996, pág. 83

 

 

 

Tenho a vida feita num novelo,

não pertenço a lado nenhum,

não tenho

país ou terra, nenhuma raiz,

nem escolhas ou nome,

nada a dizer, nada a calar,

 

nem harmonias ou crenças

nem desígnios.

 

Uma linha apenas

num mar de mós

sem moinhos.

 

Os dias todos assim, & etc., 1996, pág. 85

Soa por vezes bem dizer certas palavras

em francês. Foi ontem o caso de

"le résumé" que escrevi num fax

enviado ao Thierry, um rapaz bonito

que vive em Paris e em casa não tem

T.V.

Tem no currículo um éme bi ei.

 

Os dias todos assim, & etc., 1996, pág. 89

 
 

A tua voz ao telefone

entre um fax,

o correio electrónico

e outras banalidades,

a tua voz,

é o único sinal

de deslumbramento

nesta tarde.

 

Os dias todos assim, & etc., 1996, pág. 92

Do antes só ao mal

acompanhado

preferimos a verdade, a mentira,

a incoerência de opiniões,

a paz com o diabo

um salto em branco

nas desrazões.

 

 

Desrazões, pág. 35

 

 
 
 

 

Mar dentro, costa fora, e

postada do avesso,

que bom!

A minha alma.

 

Nem infinitos, nem glórias,

ou sentimentos,

 

nem sombra nem luz

em janelas, persianas,

varandas.

 

Hoje, só eu, tu.

 

Desrazões, pág. 36

 

 

 

 

 

Apenas do amor quero tão alto preço

do mais pouco ou quase nada peço

dias há em que o verso pede rima

como este a querer o que estima

 

e que não direi; pois que a vida

se se sente desordenada

ou em ardor que começa e finda

imprevisível em cada coisa e nada

 

ninguém assim o determina.

Apenas de quando em quando vestígios

por entre duas cidades, dois rios

 

um a norte, outro a sul que te imagina

ou balouça ou adormenta se o penso

querer dizer aqui o que não posso

 

Tumulto, Pág. 19

 

 

 

 

 

Um outro assunto isento

queria aqui deixar.

Por exemplo.

Levanto-me cedo, tomo o pequeno almoço

fumo um cigarro, ou quantos?

 

Depois de pronta desço

das escadas os três lanços.

E logo em baixo café, tabaco, jornais.

Inusitado no poema –

queriam um lírio, uma açucena –

e não coisas tão banais?

 

Tumulto, Pág. 57

 

 

 

 

 

 

Eu só de luz me sustento

de corpos, rostos irradiantes.

Chega de coisas baças.

Mas adiante.

 

Apenas quero das horas

o instante

a cada instante.

 

 

Tumulto, Pág. 67

 

 

 

 

 

 

Se Deus com um sinal viesse

se em ti me prolongasse

a luz seria toda a luz

que nos merece

 

Se Deus ou quem por ele

em ardor nos encontrasse

apenas o que em nós

é corpo e desejo de súbito

 

todo o amor seria

tempestade, acalmia.

E se Deus for corpo

 

se Deus for ave, te envie

em um sopro, o que me cabe

dizer-te algum dia, quem sabe.

 

Tumulto, fora de texto

 

Mais dia menos dia, dou em quê?

Mendiga, doida varrida, afásica,

tartamuda?

Hoje estou onde se vê

o sol

a debruar o horizonte.

Mais dia menos dia, dou em quê?

 

Tanto me rala se isto não se escreve

se ironizo, banalizo,

se d. juan de saias,

tanto se me faz, nunca me fez

 

Tudo o resto, já se viu,

tanto se me rala,

tanto se me deu.

 

Estou onde se vê

o sol

a debruar o horizonte?

 

Estou onde?

 

Schopenhauer

solta o riso mais astuto?

Aqui agora ou além-túmulo?

 

Agora que falamos de morrer, pág. 25                  

 

 

 

 

 

 

DNa

   10-8-2002

 

 

PÉ ANTE PÉ.

 

Há seis anos que Helga Moreira não publicava – e mesmo este regresso não passa de trinta e um breves poemas. Mas vale a pena ouvir o que, tão discretamente, nos sussurram.

 

TEXTO DE PEDRO MEXIA

 

HELGA MOREIRA (N.1950) estreou-se em 1978 e apareceu em princípios da década de 80 como uma das vozes da jovem poesia portuguesa, juntamente com Eduarda Chiote, João Camilo ou Jorge Velhote. Como se pode ver por estes nomes, as promessas não redundaram em confirmações, em parte por culpa dos próprios, apostados numa publicação esporádica ou numa poesia excessivamente discreta. No caso de Helga Moreira, “discrição” é eufemismo. Da sua escassa produção, hoje impossível de encontrar no mercado, existe uma sucinta antologia, “Os Dias Todos Assim”, de 1996. Sobre esse livro, o sempre atento Eduardo Pitta falou de um “equilíbrio justo entre a força declarativa e a ênfase da dicção”, bem como de uma ironia e de uma escrita alusiva que vão ao “arrepio da vulgata confessionalista”, tecendo antes uma “rede de sentidos” (v. o utilíssimo “Comenda de Fogo”, Temas e Debates, 2002, pag. 82). Helga é autora de uma poesia minuciosamente resguardada, parecida com aquelas pessoas que pedem licença a um pé para avançar com o outro, e não são capazes de gritar mesmo que se afundem no mar alto. É como se fosse um “ser quase etéreo”, para citar uma das epígrafes, de Raul Brandão. A poeta é um ser à parte, não por grandiloquência romântica, mas, simplesmente, por feitio e condição. Eis o poema de abertura do novo livro de Helga Moreira, “Desrazões”:

 

“Em qualquer parte, aqui e agora, sou de fora. Distingue-se mal a manhã.

Nos galhos pousam pássaros ou estão matizados de estranheza e alvoroço?

O que se passou por aqui agora?

Que compasso de música nos escolta?

Sou estrangeira. Em qualquer parte e aqui,

Sou de fora” (pág. 9).

 

Além desse tom recatado, tímido, os trinta e um poemas de “Desrazões” são em geral muito curtos, quase anotações, com vestígio de um enredo, de uma confissão, de uma moralidade. Alguns poemas são tão curtos que parecem não ter ganho sequer balanço para serem poemas, qual aviões que para sempre avançassem na pista sem nunca levantar voo. São vinhetas construídas com cuidado, coisas frágeis que se partissem. Muitas delas são pequenas ironias, sobre assuntos quotidianos: a maternidade, um casamento, uma procura de emprego, uma tarde num café. Ironias, bem entendido, daquelas que não chegam sequer ao sorriso, mas apenas ao seu esboço:

 

“Dei-me ontem ao trabalho de tudo.

Limpei a casa, dormi a sesta,

outra coisa

que não digo, li um livro,

e tive ainda tempo para,

ao fim da tarde,

brincar contigo.

Tudo acompanhado a música

dos anos sessenta”. (pág. 37).

 

Veja-se o maravilhoso verso “outra coisa / que não digo”, intensamente leve e malicioso e irónico.

Os poemas deste livro são muitos deles dilemas morais entre a inocência e a experiência, e não é por acaso que se cita um poema de Blake. Há várias vezes uma quase assunção de um lado perverso, como quando de fala de um “engate” aberto a todas as possibilidades sexuais. Mas em geral o que se mostra é a vida frágil, de alguém metido no seu canto, com o amparo de ansiolíticos e de outras comodidades, bem como de um “tu” que quase não se nomeia mas que parece fundamental:

 

“Vem depressa, são já

três da tarde.

Quero revelar-te

um segredo. Tenho o dia

pela metade”. (pág. 31)

 

Ou em sombra leve de erotismo:

 

“Tive que te formatar no meu espírito.

Dos pés à cabeça passando,

ao de leve,

pelo umbigo. Também

a parte da alma que me toca

e põe de sobreaviso”. (pág. 10)

 

Por outro lado, está neste livro reforçada a ideia – e cita-se mesmo António Damásio – de que não existem só factos e raciocínios mas também sentimentos. Mesmo que esses sentimentos sejam boicotados, como uma nostalgia da infância que não chega a ser. Em Helga Moreira o que prevalece é uma pacatez retirada das paixões do mundo para os pequenos prazeres solitários:

 

“Estou só e devagarinho. Descalço

os sapatos para não fazer

ruído. De verão ando de calções

que é mais fino.

Não durmo nua, sobretudo

da cintura para cima.

 

No Inverno uso sobretudo de

cachemira e gravata de marca.

Por vezes ponho um gorro

se é dia de neve e frio.

Para a chuva gosto de gabardines

compridas

das que nos fazem parecer

maltrapilhos. Na cama tenho

um édredon leve, quentinho,

à cabeceira, muitos livros,

alguns vídeos”. (pág. 15).

 

Vários poemas apresentam uma personalidade fóbica:

 

“Não tenho medidas de coisa

nenhuma e não gosto

de andar entre multidões;

 

sofro de claustrofobia e tenho

medo de andar em elevadores,

aviões (…)    “(pág. 26)

 

e mesmo alguma ciclotimia consciente:

 

“Maré vazante, estado eufórico,

dentro de mim, em sucessão,

vestígios, ausências, destroços (…) (pág. 33)

 

Essa condição é uma espécie de justificação para um estado regressivo, de um “dolce far niente” sem culpabilidade:

 

“Uma aragem, leve depois de um dia

de multo calor. Faltei ao emprego,

não fiz os deveres, não olhei para diante

nem para o lado, não fui

ao supermercado, não fiz

nem refiz abandonos.

 

Fiz de acaso, de imprevisto, não fui

à janela, não olhei o mar,

hoje, fiz todo o dia,

só isto”. (pág. 38)

 

Repare-se na deliciosa palavra “deveres”, que remete para o universo escolar, e na revolucionária ideia lafarguiana do direito à preguiça.

É curioso como, a abrir, a autora usa uma epígrafe de Dickinson (uma notória reclusa sem biografia) sobre a impessoalidade na poesia, sobre o não se confundir o “eu” poético do “eu” civil, ou melhor, sobre a irredutibilidade de alguém ao seu retrato, neste caso, poético.  Essa ideia está num poema bastante semelhante aos que já vimos:

 

“Limito tudo ao incerto. Os ruídos

do coração ou da alma ou o que

isso seja de concreto, ou abstracto.

Escolho ao acaso um livro, calço

estes ou outros sapatos, saio

de jeans ou de saias ou de fato,

escolho perfumes raros,

uma gravata, à refeição

um bom vinho

e tudo isto não ser de mim,

de ninguém,

qualquer retrato”. (pág. 22).

 

Cada poema pode ser, simplesmente, uma espécie de objecto, o retrato de uma curiosidade, como naquele em que encontra a apalavra “podoa” em Cesário e o poema não passa disso, da descoberta dessa palavra, uma espécie de não evento exponenciado. Dessa rotina de não eventos, Helga Moreira faz uma obra voluntariamente “menor”, como são menores os bilhetes de amor face às grandes cartas da paixão. Mas isso corresponde a algo realmente ínfimo e magnífico nas nossas vidas, e sobre isso é quase ilícito falar. Como nos diz a própria autora:

 

“De tentar ver por todos os lados eu fico tonta

e com o coração a milhas não devia falar” (pág. 25).

 

            Helga Moreira, “Desrazões”, Quasi, 48 págs. 2002.

  

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Livros e Leitores

n.º 59, Verão de 2003

Helga Moreira

Quando, no ano já distante de 1978, Helga Moreira (n.1950) publicou o primeiro livro, Cantos do Silêncio, nada faria prever a poeta que um dia diria: “Nunca mais como ontem eu me visse” (p. 13). O ar do tempo era então benevolente, Helga procurava ainda o lugar da voz, a brutalidade das evidências vinha longe, a dor ficaria para mais tarde. Vinte e cinco anos é intervalo bastante para ajuizar uma obra que tudo isso regista nos seus contornos: paisagens, sons e silêncios. Justamente: silêncios. Correndo o risco calculado da rarefacção, os seus versos frequentes vezes fluíram colados à margem do não-dito. Foi assim até há pouco tempo. Agora, tudo mudou. Um punhado de sonetos esteve na origem deste Tumulto, que antes de mais nada, é um livro de despojos, e de despojos que têm nome: choque, lama, entranhas, lixo, equívoco, perda, horror, precipício, memória, chama. Nestes poemas, que são na sua grande maioria sonetos, o recorte dos versos tem uma nitidez que não releva de pirotecnia conceptual ou mera expertise. Contra a erosão do tempo, contra a evidência do corpo que julga perdido, Helga Moreira diz alto e sem rebuço:

 

“Apenas do amor quero tão alto preço

do mais pouco ou quase nada peço” (p. 19).

 

Porque, ao invés da legenda, é quase sempre exorbitante o preço que pagamos pela poesia, lá onde ela se confunde com a vida de cada um de nós. Ninguém chega impune a versos assim:

 

“Um facto é apenas um facto que se entende?

É estar de novo entre o passado e o presente?

Que coisas são os mortos da união?

O que foi ter vivido e já não?

 

Coisas que antecedem outras, por vezes

se outro rumo houver, outra razão,

não serei já tanto o que quiseres

a mim, a tudo, ponho em questão

 

até ao facto de estar aqui sentada

na avenida Brasil ensolarada

ao céu aberta, aberta ao mar

 

entre gente vulgar sou a desastrada

a que cuida e cuida só olhar

para lado nenhum, qualquer lugar”.  (p.25)

 

Temos aqui um bom exemplo da consciência do efémero, bem como dessa espécie de arqueologia da memória que este livro tão eloquentemente ilustra. Se quiséssemos isolar o leitmotiv da obra, eu diria que um sentimento de desapego ocupa esse lugar central. Foi assim nos livros pretéritos, continua a ser assim. A diferença está em que, dantes – com especial ênfase na obra publicada até 1996 -, esse desapego tinha espessura material, enquanto hoje se manifesta predominantemente em clave existencial. A esse respeito, são cristalinas as epígrafes que a autora colocou a abrir cada uma das duas partes do livro. Na primeira, John Donne, poeta metafísico da época jacobina, afirma que ao amor fará sonetos “ainda mais gratos / Que se mais honras, choros e dores fossem gastos”. A proposição é de meridiana clareza. Na segunda, Luíza Neto Jorge, uma poeta que nos ensinou “a cair / sobre os vários solos”, tem um estremecimento no

coração, porque “As letras vêm de lá / e da mão”.  Num caso como noutro, o fio condutor da razão e do sobressalto da emoção. Tal simbiose traduz-se num lirismo de índole reflexiva de que é exemplo parte não negligenciável da poesia de Helga Moreira. Quando a autora se introduz no discurso, e isso acontece frequentes vezes, fá-lo numa acepção dupla. Na acepção ideológica, porque, sem qualquer vénia aos tiques da contracultura, põe em pauta a questão entre todas melindrosa da enunciação identitária. Mulher, sem dúvida, porém forçando a fronteira do género:

 

“Dou indícios tantos quantos

forem precisos”. (p. 43)

 

E na acepção afectiva porque a pulsão sexual não é um conceito em abstracto:

 

“Em rigor, em rigor vos digo:

Hoje se todos descuido,

cuidados

serão apenas para comigo”. (p.71)

 

Colocada na hipotética posição do narrador autodiegético (aceitemos o desvio), Helga Moreira escreve a partir de um tempo ulterior ao do plot: a estória é passado, o presente são estes sonetos. E desse modo estabelece uma fractura entre o sujeito dos versos e o sujeito da intriga. O enfoque, ou ponto de vista da autora, reporta directamente ao poema de Wallace Stevens que nos lembra que “poesia é a ficção suprema”, mesmo quando não é mais do que “algazarra entre as esferas”. Neste caso, podemos dizer que Tumulto é uma forma superior de ficção – toda a grande poesia o é – e, como tal, dispensa algazarra:

 

“Quero apenas o ritmo que desuna

[…]

música atonal, schönberg, gente.” (p.45)

 

Esta peculiar tessitura, que pode por vezes ser confundida com um tom menor, não se confunde de modo algum com a declinação pasteurizada, chamemos-lhe assim, de tanta poesia recente. O grande mérito deste livro é o de esquivar-se à ladainha contemporânea, instaurando no seu lugar um inventário de cicatrizes.

 

EDUARDO PITTA

Livros do trimestre

POESIA, O som e o sentido.

 

 

Nota de EDUARDO PITTA sobre Agora que falamos de morrer, in MIL FOLHAS, 6-10-2006, aqui