12-10-2014

 

Freiras do Alentejo, na Inquisição

 

Também no Alentejo houve no séc. XVII uma grande revoada de freiras presas pela Inquisição, de que já fiz uma lista que pus aqui. Em geral foram reconciliadas, mas ainda houve duas relaxadas sem qualquer motivo, o que deu escândalo, quer em Portugal, quer, sobretudo, em Roma.

As freiras cristãs novas viviam aterradas pelo temor de serem denunciadas, sobretudo pelos parentes que entretanto iam sendo presos. É que estes acabavam por denunciar também as freiras, para salvarem a vida, pensando, talvez, que elas se conseguissem defender. Pura ilusão.

Vamos relatar aqui um processo que por qualquer motivo se encontra digitalizado. O processo inicia-se com a apresentação da Ré, que, sabendo ser cristã nova, quer a reconciliação da Inquisição para viver em paz. O processo não diz a data da apresentação nem documento que a ela se refira, a não ser a confissão de fls. 25 img 49.  O que deve ter acontecido, foi que a Ré soube que sua irmã Soror Ana Baptista a denunciaria ou já a tinha denunciado e mandou recado à Inquisição dizendo que se queria apresentar para “confessar” as suas culpas.

No sentido de simplificar procedimentos, a Inquisição passou uma comissão ao Notário L.do Simão Álvares Pereira para receber as confissões e a abjuração no próprio Convento da Ré.

Entretanto, tinham já entrado na Inquisição de Évora bastantes mais denúncias contra ela de declarações em forma na crença na Lei de Moisés.

O Assento da Mesa segue as rotinas da Inquisição. Mas o processo subiu ao Conselho Geral, não se percebe bem porquê.

A Ré foi condenada a ter instrução religiosa e em penas espirituais, mais nada. Como veremos, outras sofreram penas mais pesadas.

 

VOZ ACTIVA E VOZ PASSIVA

NOS CONVENTOS

 

Refiro a seguir um processo da Inquisição de Lisboa, em que duas irmãs freiras do mesmo Convento de S.ta Clara da vila de Moura pedem em 1676 que lhes sejam levantadas as penas da “Privação para sempre de voz activa e passiva na vida do Convento e mandado que servissem nos ofícios humildes da Religião”, que lhe foram aplicadas no Auto de Fé de 22 de Setembro de 1670.

O que eram a voz activa e a voz passiva?

Embora a expressão soe como algo estranho, a explicação é muito simples:

Voz activa – era a faculdade que tinham as freiras de votar, eleger ou escolher um companheiro ou companheira para algum cargo.

Voz passiva – era a capacidade que tinham de ser eleitas ou escolhidas para algum cargo do convento:

Voz activa = eleger, escolher

Voz passiva= serem eleitas, serem escolhidas.

O Inquisidor escreve que já em 1674, tinha informado favoravelmente o levantamento da privação da voz activa e a obrigação de servir nos ofícios humildes do Convento. Achava, porém, que a voz passiva lhes devia ser negada (estava a pensar certamente no sangue “impuro” de cristãs novas). Possivelmente, o levantamento da voz activa produziu efeitos, mesmo sem um despacho do Conselho Geral em Lisboa.

As freiras, porém, queriam mais, queriam subir na hierarquia, daí o pedido.

O processo está incompleto e termina com uma exposição da abadessa mais nove freiras, apoiando o pedido.

 

 

GENEALOGIA

 

Simão Gomes casou com Maria Álvares e tiveram:

1-Manuel Gomes Biscardo, casado com Isabel Quitéria (Pr. n.º 3884), que tiveram

 Pedro Gomes que, sendo solteiro, se ausentou não sabe para onde

 Soror Maria do Espírito Santo (não aparece o processo de Évora), de 50 anos, Religiosa do Convento de S.ta Clara na vila de Moura

2 - Lourenço Álvares que não tem ofício, casado com Iria Lopes, de quem teve Simão e Branca, que morreram pequeninos e ainda Catarina Gomes (Pr. n.º 6627), casada com um cristão novo de que não sabe o nome.

3 - Leonor Nunes (Pr. n.º 5824), viúva de Manuel Mendes, natural e moradora na vila de Moura, que teve:

Soror Ana Baptista, Religiosa Professa de véu preto no mesmo Convento (mais velha que a declarante) – não aparece o processo

Soror Maria do Nascimento, de 27 anos, Religiosa do Convento de S.ta Clara, em Moura

Afonso Mendes (Pr. n.º 1688) casado com Catarina Tovar (Pr. n.º 6307), de quem tem Manuel, de 5 anos e Joana.

Simão Gomes (Pr. n.º 371) , boticário, casado com Luzia da Cruz (Pr. n.º 5827)  e não têm filhos

Lopo Fernandes (Pr. n.º 1033), solteiro, de 17 anos

 

 

Processo n.º 1947, da Inquisição de Évora,  de Soror Maria do Nascimento, natural de Moura, freira professa do Convento de Santa Clara, da mesma vila, de 27 anos.

CULPAS

fls. 3 img. 5 – Depoimento de 29-7-1669, de sua prima , Soror Maria do Espírito Santo, de 50 anos, freira professa no Convento de S.ta Clara da vila de Moura, filha de Manuel Gomes Biscardo – não aparece o processo de Évora – foi apresentada

fls. 4 v img. 8 – Dep. de 26-7-1669, de sua irmã Soror Ana Baptista, de 28 ou 29 anos de idade, freira professa do mesmo Convento, - não aparece o processo de Évora – abjurou no Convento em 7 de Junho de 1671

fls. 6 img. 11 – Dep. de 29-7-1669, de Soror Catarina de S. José, de 25 anos, freira professa do mesmo Convento, fila de João Baptista, natural de Moura – processo n.º 7322, de Évora.

fls. 7 v img. 14 – Dep. de 15-10-1669, de seu irmão Simão Gomes, de 25 anos, reconciliado no Auto da Fé de 16-6-1669 – Pr. n.º 371, de Évora.

fls. 9 v img. 18 - Dep. de 15-10-1669, de seu irmão Afonso Mendes, de 33 anos,  reconciliado no Auto da Fé de 16-6-1669 – Pr. n.º 1688, de Évora.

fls. 11 img. 21 – Dep. de 23-11-1669, de Soror Maria Josefa de S.to António, do mesmo Convento de S.ta Clara de Moura, de 21 anos – não aparece o processo, figura na Lista do Auto da Fé em Évora de 22-9-1670, sob o n.º 69.

fls. 13 img. 25 – Dep. de 28-11-1669, de Soror Leonor de S. Miguel, do mesmo Convento, de 35 anos –  proc. n.º 5815-A, de Évora.

fls. 14 v img. 28 – Dep. de 6-12-1669, de Catarina Mendes, casada com Belchior Nunes, barbeiro, de 35 anos, residente em Moura –proc . n.º 5500 e 5500-1, de Évora.

fls. 16 img. 31 – Dep. de 14-1-1670, de sua mãe, Leonor Nunes, de 56 anos, residente em Moura – Pr. n.º 5824, de Évora

fls. 20 img. 39 – O Notário Simeão Tomé certifica que foi nomeado o Notário Simão Alves Pereira para ir a Moura tomar declarações neste processo da freira Maria do Nascimento.

fls. 21 img. 41 – 26-7-1669 – Apresentação da Comissão do Notário Simão Alves Pereira.

fls. 22 img. 43 – 22-7-1669 – Comissão da Inquisição de Évora ao Notário Simão Alves Pereira.

fls. 25 img. 49 – 27-7-1669 – Confissão. Confessa culpas de judaísmo. Denuncia Soror Inês de S.to António, defunta, seu pai, Manuel Mendes, também já defunto, Lopo Rodrigues Mendes seu 2.º tio (Pr. n.º 764, de Évora), seu tio materno Manuel Gomes Biscardo, casado com Isabel Quitéria, seu irmão Afonso Mendes (Pr. n.º 1688, de Évora), e as companheiras no Convento, sua irmã Ana Baptista, Soror Maria do Espírito Santo e Soror Catarina de S. José (Pr. n.º 7322). sua mãe Leonor Nunes (Pr. n.º 5824, de Évora), seu irmão Lopo Fernandes (Pr. n.º 1033, de Évora), sua cunhada Catarina Tovar (Pr. n.º 6307), Soror Leonor de S. Miguel, do seu Convento (Pr. n.º 5815-A), Soror Maria Josefa de S.to António (não aparece o processo).

fls. 29 img. 57 – mesma data – GENEALOGIA

É filha de Manuel Mendes, mercador, já defunto, e de Leonor Nunes, ambos cristãos novos, naturais e moradores em Moura.

Seus avós são todos defuntos e se chamaram os paternos Afonso Mendes e Isabel Dias e os maternos, Simão Gomes e Maria Álvares, todos naturais e moradores em Moura.

Por parte de seu pai não sabe que tivesse tio ou tia algum.

Por parte de sua mãe, tem dois tios, a saber, Manuel Gomes Biscardo que foi sizeiro, casado com Isabel Quitéria, de que tem Pedro Gomes, que se ausentou há anos não sabe para onde, e Soror Maria do Espírito Santo, Religiosa professa no mesmo Convento; e o outro tio é Lourenço Álvares, que não teve ofício e foi casado com Iria Lopes, de quem teve Simão e Branca, que faleceram pequeninos.

A declarante tem três irmãos e uma irmã a saber: Afonso Mendes, casado com Catarina Tovar, de quem tem Manuel e Joana, sendo o primeiro o mais velho, de 5 anos;  Simão Gomes, boticário, casado com Luzia da Cruz (Pr. n.º 5827) que não têm filhos; Lopo Fernandes, solteiro, de 17 anos e Ana Baptista, freira com ela no mesmo Convento.

Sabe escrever.

fls. 31 v img. 62 – 27-7-1669 – 2.ª sessão – Crença

fls. 34 img. 67 – 3-1-1671 – O Promotor de Justiça aceita a confissão

fls. 35 img. 69 – 3-1-1671 – Assento da Mesa da Inquisição

“(…) e pareceu a todos os votos quer, visto dizer de si bastantemente, de seus Pais, irmãos, Tios e de outras pessoas suas conjuntas e não conjuntas, com algumas das quais não estava indiciada; e assentar na crença de seus erros e judaísmo, de que não estava delata ao tempo que se apresentou, e satisfazer a maior parte da informação da justiça que contra ela havia, ela seja recebida ao grémio e união da Santa Madre Igreja e que ouça sua sentença no Locutório do seu Convento ante um Ministro do S.to Ofício, e o escrivão deste seu processo; e duas testemunhas que serão o Confessor e o Capelão; e aí abjure seus heréticos erros em forma; e que incorreu em sentença de excomunhão maior da qual será absoluta. E nas mais penas de Direito; e terá penitências espirituais e instrução ordinária; e pague as custas.

fls. 36 img. 71 – 19-1-1671 – Assento do Conselho Geral

Confirma inteiramente o Assento da Mesa.

fls. 37 img. 73 – 6-6-1671 – Diz mais.

A Ré pediu ao Notário Simão Álvares Pereira, que viesse ao Convento para a ouvir em audiência e denunciou sua cunhada Luzia da Cruz, já defunta, Brites Mendes, irmã desta, também já defunta, e Catarina Mendes (Pr. n.º 5500), sobrinha das mesmas, casada com Belchior Nunes, cristão velho, barbeiro na vila de Moura.

Denunciou mais sua segunda tia, Soror Catarina de S. Boaventura (Pr. n.º 3281), filha de Gaspar Mendes, Maria Mendes, irmã desta, casada com António Mendes Castanho, e Margarida Dias, filha destes, que agora é freira com o nome de Soror Margarida do Rosário (Pr. n.º 2499, de Évora).  

Denunciou ainda Iria Lopes, viúva de seu tio Lourenço Álvares e sua filha Catarina Gomes (Pr. n.º 6627, de Évora), agora casada com um cristão novo de quem não sabe o nome.

fls. 41 img. 81 – 24-1-1671 – O Conselho manda que o L.do Simão Alvares Pereira vá ao Convento de Moura receber a abjuração de duas freiras.

fls. 43 img. 85 – 7-6-1671 – Apresentação de uma Comissão dos Inquisidores de Évora

fls. 43 v img. 86 – 7-6-1671 – Juramento do escrivão

fls. 44 img. 87 – 2-6-1671 – Comissão da Inquisição de Évora ao Notário L.do Simão Alves Pereira para ir a Moura receber a reconciliação de Soror Maria do Nascimento

fls. 47 img. 93 – Sentença

fls. 49 img. 97 – 7-6-1671 -  Publicação da sentença no locutório do Convento

fls. 50 img. 99 – 7-6-1671 – Abjuração em forma

fls. 52 img. 103 – 8-6-1671 – O Pároco da Igreja de S.to Agostinho em Moura certifica que instruiu a Ré e a ouviu de confissão. Noutro termo o L.do Simão Alvares Pereira comunica à Ré que o seu processo está findo e lavra o termo de segredo.

fls. 53 v img. 106 – Conta de custas: 1$155 réis

 

*   *   *

 

Soror Leonor de S. Miguel e Soror Maria Josefa de Santo António, irmãs, freiras do Convento de S.ta Clara em Moura, presas em 1 de Junho de 1669

Soror Leonor de S. Miguel – Pr. n.º 5815 A, da Inq. de Évora – Foi ao Auto da Fé de 22-9-1670, figurando na Lista sob o n.º 67

Soror Maria Josefa de S.to António – não aparece o processo – Foi ao Auto da Fé de 22-9-1670, onde figura sob o n.º 69

Foram ambas privadas para sempre de voz activa e passiva na vida do Convento e mandado que servissem nos ofícios humildes da Religião.

 

Processo n.º 13380, da Inquisição de Lisboa, de Soror Leonor de S. Miguel e Soror Maria Josefa de Santo António, irmãs:

fls. 1 img. 1 –21-11-1676 -  As duas irmãs freiras requerem ao Conselho Geral que lhes sejam revogadas as penas acessórias de não ter nem voz activa nem passiva e de servirem nos ofícios humildes do Convento. Um despacho pede informação à Inquisição de Évora.

fls. 2 img. 3 – 7-12-1676 – O Inquisidor Nuno de Pina Pereira diz que já em 27 de Fevereiro de 1674, informara outra petição destas duas freiras no mesmo sentido e que então escrevera que se “podia dispensar com elas nas penas de voz activa e ofícios humildes, e não na voz passiva, em que todo este tempo fazem excessiva instância para serem dispensadas, querendo ter os ofícios melhores da Religião, o que não convém e o mesmo nos parece agora.” 

fls. 4 img. 7 – 21-9-1670 – Pena acessória no Auto, de Soror Leonor de S. Miguel

fls. 6 img. 11 – 21-9-1670 - Pena acessória no Auto, de Soror Maria Josefa de S.to António

fls. 8 img. 15 – Penitências impostas às duas irmãs em 1671.

fls. 10 img. 19 – A Abadessa Soror Peregrina Baptista e mais 9 freiras assinam uma petição a favor das duas suplicantes.

fls. 10 v img. 20 – 6-11-1676 - Reconhecimento das assinaturas na petição no verso.