6-4-2004

GUERRA E PAZ

война и мир

  

Lev Nikolayevich, Count Tolstoy

Лев Николаевич Толстой

(1828 – 1910)

 

Em 22 de Outubro de 2003, vi em Lisboa esta magnífica peça extraída de Guerra e Paz, de Tolstói, uma apresentação excelente da companhia russa, que chegou de autocarro a Lisboa, vinda de Lion. Para mim, que não sei russo, o espectáculo deu algum trabalho, alternando o olhar entre a cena, a legendagem electrónica lá no alto e ainda puxando dos binóculos para ver a expressão dos actores. Mas valeu a pena, pois foi uma esplêndida representação.

 

 

 

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Действующие лица и исполнители:

 

Анна Павловна Шерер

Князь Василий Сергеевич Курагин

Виконт де Мортемар

Пьер Безухов

Князь Андрей Болконский

Княгиня Елизавета Болконская  

………………………………

Княгиня Анна Михайловна Друбецкая

Элен Курагина

Тетушка

Долохов

Анатоль Курагин

Стивенс

Яков

Старый гусар

Графиня Наталья Ростова

Граф Илья Андреевич Ростов

Наташа Ростова

Николай Ростов

Петя Ростов

Соня

                                                

Борис Друбецкой

Марья Дмитриевна Ахросимова

Митенька

Граф Кирилл Владимирович Безухов

Катишь

Лоррен

Духовное лицо

Доктор, немец

Князь Николай Андреевич Болконский  

Княжна Марья Болконская

Жюли Карагина

                                                

Мадемуазель Бурьен

Тихон

Михаил Иванович

 

 

Галина Тюнина

Рустэм Юскаев

Карэн Бадалов

Андрей Казаков

Илья Любимов

Ксения Кутепова

Ирина Пегова

Мадлен Джабраилова

Полина Агуреева

Людмила Аринина

Кирилл Пирогов

Томас Моцкус

Карэн Бадалов

Сергей Якубенко

Борис Горбачев

Галина Тюнина

Рустэм Юскаев

Полина Агуреева

Кирилл Пирогов

Олег Талисман

Ксения Кутепова

Ирина Пегова

Олег Любимов

Людмила Аринина

Сергей Якубенко

Борис Горбачев

Людмила Аринина

Томас Моцкус

Сергей Якубенко

Карэн Бадалов

Карэн Бадалов

Галина Тюнина

Ксения Кутепова

Полина Агуреева

Мадлен Джабраилова

Сергей Якубенко

Борис Горбачев

 

     

 

As personagens e os intérpretes:

   

 

Anna Pavlovna Scherer

Príncipe Vassili Sergueiévitch Kouraguine

Visconde de Mortemart

Pierre Bézoukhov

Príncipe Andrei Bolkonski

Princesa Elisaveta Bolkonskaïa

…………………………….

Princesa Anna Mikhaïlovna Droubetskaïa

Hélène Kouraguina

Tia

Dolokhov

Anatole Kouraguine

Stevens

Lakov

Velho Hussardo

Condessa Natália Rostova

Conde Ília Andreiévitch Rostov

Natácha Rostova

Nicolaï Rostov

Petia Rostov

Sónia

……………………………

Boris Droubetskoï

Maria Dmitrievna Ahrossimova

Mitenka

Conde Kirill Vladimirovitch Bézoukhov

Catiche

Lorrain, médico francês

Mordomo do Conde Bézoukhov

Médico alemão

Principe Nicolai Andreiévitch Bolkonski

Princesa Maria Bolkonskaïa

Julie Karaguina

…………………………….

Mademoiselle Bourienne

Tikhone

Mikahïl Ivanovitch

 

 
Galina Tyunina
Rustem Yuskaev
Karen Badalov
Andrej Kazakov
Ilya Lyubimov
Kseniya Kutepova
Irina Pegova
Madlen Dzhabrailova
Polina Agureeva
Lyudmila Arinina
Kirill Pirogov
Tomas Motskus
Karen Badalov
Sergej Yakubenko
Boris Gorbachev
Galina Tyunina
Rustem Yuskaev
Polina Agureeva
Kirill Pirogov
Oleg Talisman
Kseniya Kutepova
Irina Pegova
Oleg Lyubimov
Lyudmila Arinina
Sergej Yakubenko
Boris Gorbachev
Lyudmila Arinina
Tomas Motskus
Sergej Yakubenko
Karen Badalov
Karen Badalov
Galina Tyunina
Kseniya Kutepova
Polina Agureeva
Madlen Dzhabrailova
Sergej Yakubenko
Boris Gorbachev

 

 

 

LEV TOLSTÓI

Tolstói nunca quis considerar-se nem que o considerassem um “literato”. Via a sua obra  literária apenas como mais uma faceta da sua vida. Da sua biografia, com efeito, ressalta mais o empenhamento cívico, a preocupação social, a inquietude espiritual, a ânsia de reformar e renovar, principalmente no sistema agrícola e na pedagogia. A obra Iiterária reflecte tudo e foi buscar à sua vida intensa e combativa, necessariamente, as suas características maiores.

Lev Nikoláevitch Tolstói nasceu em 1828. O seu pai era o conde Nikolai Iliitch e sua mãe Maria Nikoláevna, em solteira princesa Volkónskaia (note-se que o nome de uma das famílias centrais de Guerra e Paz é Bolkónski; e aqui vamos encontrar uma das características da primeira fase da obra do autor, a dos chamados heróis “autobiográficos” ou “autopsicológicos”, recorrente também nos grandes romances como Anna Karénina e Ressurreição. Com a morte dos pais, Tolstói viveu sob a tutela de uma tia em Kazan, cidade onde entrou para a universidade, primeiro para a Faculdade de Línguas Orientais, depois para a de Direito. Não chegou a completar qualquer dos cursos. Entre 1852 e 1856 esteve no exército (foi um dos defensores da Sevastópol sitiada).

Em 1856 instalou-se na Iásnaia Poliana, a sua aldeia (literalmente sua: o conde Tolstói possuía não só toda a aldeia, campos e florestas envolventes como a totalidade dos seus camponeses). Neste mesmo ano, ofereceu a alforria a todos os seus servos, que não a aceitaram, talvez por uma qualquer desconfiança. Fez longas permanências no estrangeiro aonde ia em viagens de estudo e informação, principalmente dos métodos pedagógicos. Voltava sempre desiludido à pátria e rejeitava os métodos ocidentais. Estava no estrangeiro quando saiu o  manifesto de Alexandre II decretando a abolição da servidão. Durante um ano, foi «mediador da paz” (os mediadores eram pessoas idóneas encarregadas de aplicar a reforma agrária com a equidade e a justiça possíveis): Tolstói foi acusado pelos latifundiários de favorecer os ex-servos.

Entretanto, Tolstói nunca parou de escrever. Foram saindo os seus livros A Adolescência (da trilogia A Infância, A Adolescência e A Juventude), Os Cossacos, História de um Cavalo, etc. Entre 1863e 1868 trabalhou em Guerra e Paz. Seguiu-se Anna Karénina (completado em 1875). A partir de 1880 passa por uma longa crise moral e religiosa. Ao mesmo tempo que condena a Igreja estabelecida, insurge-se contra as estruturas sociais vigentes e contra a miséria do campesinato. Escreve Confissão, A Igreja e o Estado, etc. Em 1886 sai a lume A Morte de Ivan Iliich (sobre o. horror da morte depois de uma vida vazia). Depois  O Poder das Trevas (sobre a crueldade o embrutecimento dos camponeses atrasados em choque com as novas forças industriais), depois Sonata a Kreutzer (o tema é a condenação do casamento e do amor carnal), outros contos, peças teatrais. É a partir dos anos 80 que se inicia o período «tardio» da sua obra, com preponderância do «sermão» sobre a arte; arte de que o escritor parece envergonhar-se; é o novo cristianismo tolstoiano, reduzido não apenas ao Evangelho mas ainda a um Evangelho purificado, livre dos milagres e das profecias, contendo apenas os legados morais – em resultado dessa posição, é excomungado pelo Santo Sínodo em 1901. A obra mais importante do último período de Tolstói é o conto Khadji Murat, em que faz como que um regresso à sua juventude caucasiana e ao sentimento jovem da vida (o conto centra-se na resistência dos montanheses do Cáucaso contra os conquistadores russos). Tolstói lutou até ao fim da vida. Em 1905, tal como se tinha insurgido contra a autocracia, insurge-se contra a violência da revolução, contra a primazia do proletariado industrial e preconiza a distribuição das terras pelos camponeses. Tolstói nasceu quando Púchkin era ainda vivo e morreu quando Tchékhov já tinha morrido, Foi longa a sua vida humana e literária (uma obra de 90 volumes). A sua personalidade artística abrangeu o século XIX e a primeira década do século XX, mas deve acrescentar-se que Tolstói foi ainda mais abrangente: “recupera" para a Rússia o século XVIII, o do iluminismo europeu, no plano filosófico e também literário (influência de Sterne e Rousseau), Teve um papel capital na sociedade do seu tempo. Dizia-se que na Rússia havia dois czares: Nicolau II e Lev Tolstói, mas o primeiro temia o segundo, enquanto o segundo não temia o primeiro.

A morte de Lev Tolstói (em 1910) é carregada de simbolismo, ligado também às crónicas russas antigas em que as mortes aconteciam em viagem, na fuga aos convencionalismos da vida quotidiana. Assim morreu também Lev Tolstói, depois da fuga de casa, numa pequena estação de comboios. Diz Dmítri Likhatchov em Lev Tolstói e as Tradições da Literatura Russa Antiga: Tolstói, com a sua consciência que não se resignava à paragem e à rigidez, era por carácter um peregrino, o típico peregrino russo, na vida e nas buscas criadoras e éticas. "

NINA GUERRA

Outubro 2003

 
   

 

 

   

 

TOLSTOI, A LUZ CORRUPTA DO MUNDO

Não quero, a este respeito, armar-me com a pistola descarregada do optimismo. Não acredito que no século que há-de vir Guerra e Paz seja tão lido como no século que passou. Não acredito que Tolstói continue a ser entendido como um daqueles escritores que nos demonstram a arte suprema do romance como criação europeia; Não acredito, por fim, que Lev Nikoláevitch ToIstói continue a ser amado. Ficará como um escritor de escritores, alguns filósofos políticos, alguns historiadores. Alguns amantes tardios da literatura, uma seita que dia a dia se esmorece e desaparece. A idade contemporânea, na extensa celebração do efémero e do ignorante como deuses civilizacionais, se encarregará de sepultar esse mundo real, e nada idealizado, do conde de Yasnaya Polyana. Ficará, isso sim, como uma citação empregue a torto e a direito para comparar guerras futuras, a simplicidade eterna das palavras guerra e paz. Que, aliás, servem de títulos de sites sobre guerras modernas, como a do Médio Oriente. E mais nada.

Em princípio, nada seria mais estranho à nossa civilização europeia ocidental, a de Paris e Londres, a da mitteleurope, a do império austro-húngaro ou das afirmações bélicas prussianas, do que a alma russa. No tempo de Tolstói, nascido em 1828, a Rússia era um território amassado em sofrimento e violência. No topo da pirâmide social estavam os senhores, uma aristocracia alheada da realidade da gleba, e no fundo estavam os servos, menos do que os escravos porque nem direito à alma tinham. O tempo se encarregaria de inverter esta pirâmide, não o ciclo infernal de sofrimento e expiação, de crise moral e redenção. Neste mundo dilacerado pela consciência do artista ou do moralista, e Tolstói era os dois, tal como Dostoievski era os dois sendo mais um do que outro, a guerra era o grande nivelador. Distribuía a morte em doses iguais, ignorava as classes e os tratados, e espalhava a sua perfeita brutalidade. A guerra destruía e reconstruía as verdades da sociedade, e nesse sentido era um instrumento divino mal utilizado pelos homens. Divino porque arrogante e evidente na sua manifestação de potestades e majestades. A guerra matava e humilhava, e não precisava de explicação científica para fazer e desfazer. Ou para existir, sendo anunciada como desumana consequência do humano.

Guerra e Paz, esse conjunto de livros que quase ninguém lerá, escreve-se sobre os efeitos da guerra sobre os homens. Sobre o seu amor, o seu poder, a sua dor. No Inverno de 1812, o inverno russo derrotou Napoleão, somo se só a Natureza pudesse, num derradeiro esforço, derrotar o Homem. O romance começa de forma pouco ortodoxa; em discurso directo, com uma frase de salão sobre as terras anexadas pela família Bonaparte. As personagens são-nos apresentadas uma a uma, com pormenor e precisão, e nada nos faz suspeitar a devastação física e moral que se segue. Nada nos faz suspeitar que o Príncipe André Bolkonski perderá a vida depois de encontrar o amor, e que Pedro ficará com Natasha que era o amor de Bolkonski. Podia ser um romance sobre a amizade destes dois homens, com a tragédia da invasão francesa da Rússia por trás. Não é. É sobre o destino dos homens, e sobre o bendito desconhecimento do futuro. Se soubéssemos o que nos espera morreríamos desfeitos pela queda depois de olhar o sol de frente, como Ícaro.

Tolstói, cujo misticismo falhado lhe autorizou o génio, acreditava no sofrimento como instrumento da perfeição, como tentativa de resolução do dilema moral. As suas experiências sociais e filosóficas falhadas não o impediram de reconhecer que o mundo precisa de uma grelha de leitura, qualquer que ela seja, e que uma vez habituados os olhos, a luz corrupta do mundo desaparece. Não é ainda a perfeição, é um princípio de clareza e de claridade.

Guerra e Paz dá aos leitores uma chave para ajudar a decifrar o mundo. E mostra-nos portas possíveis. Vamos ver se na corrupta luz do século XXI, que é a luz parecida com a de uma televisão acesa no escuro, falando sozinha para todos e ninguém, Guerra e Paz durará. Eu acho que não, e tenho pena. O mundo não mudou assim tanto.

CLARA FERREIRA ALVES

Outubro 2003

 

 

GUERRA E PAZ

Piotr Fomenko, o criador destes quadros cénicos da primeira parte de Guerra e Paz, diz que não esqueceu o seu primeiro mergulho no romance: “Tinha 10 anos, era a guerra, vivia com a minha mãe em Moscovo. Durante os bombardeamentos, escondido debaixo da mesa, eu lia Guerra e Paz”. Lev Tolstói, que morrera uns escassos 30 anos antes desta outra guerra, escrevera as seguintes palavras premonitórias que é comovente pôr agora em paralelo: “Se me dissessem que escreveria um romance em que demonstraria incontestavelmente a justeza de um ponto de vista a todos os problemas sociais […] não dedicaria nem duas horas a um romance destes; mas se me dissessem que as crianças actuais iriam ler daqui a 20 anos o que eu escrevo, chorando, rindo e apaixonando-se pela vida, dedicaria a este romance toda a minha vida e todas as minhas forças.” Esta memória íntima que o grande livro de Tolstói deixou parece ter-se reproduzido nas gerações futuras: talvez porque, mais do que de guerra e de paz. O romance trata da vida e da morte, espraiadas num vasto espaço artístico em imagens e motivos tão variados e de maneira tão livre como nunca acontecera nem aconteceria em nenhuma das outras obras de Tolstói.

É que em Guerra e Paz não há paz, absolutamente, mas tão-só a guerra – e o amor, a família, o cruzar de vidas em tempo de guerra, seja na frente, seja na retaguarda. (Por tradição, atribuiu-se ao segundo binómio do título do romance, também na Rússia moderna, o significado de “paz”, “sossego”, “ausência de guerra” – mir em russo – tudo o que não existe no romance a não ser na morte - , palavra que no russo moderno

Também significa “sociedade”, “universo”, “Terra”; mas, no tempo de Tolstói, havia duas palavras diferentes, homófonas, para significar cada uma das acepções, e Tolstói utilizou o termo referente à segunda acepção. Não fora a tradição e quase nos apetecia traduzir o título da obra por “A Guerra e o Universo Humano”).

Guerra e Paz, no seu intento de fugir aos espartilhos dos géneros, tornou-se uma obra única na literatura russa e mundial – não é um documentário (embora tudo no livro seja documentado historicamente), não é uma crónica de famílias (embora algumas personagens chave se centrem nas famílias Bolkonski e Rostov), não é um romance histórico (embora a história europeia e russa seja o eixo de Guerra e Paz), não é um romance psicológico (embora o autor concentre também a atenção na vida psicológica dos heróis, criando a ilusão de um processo psicológico a decorrer ininterruptamente, processo que incide na procura da verdade e da justiça rompendo através da inércia da vida e dos costumes sociais), nem sequer é definido pelo próprio autor como “romance” de acordo com os critérios europeus do género: é um afresco épico com mais de quinhentas figuras em que a personagem central é a Rússia e o povo russo (incluindo os fidalgos patriotas que tomaram conta da unidade nacional para fazer frente ao invasor napoleónico). Apesar de não ser um puro romance histórico, o que salta indiscutivelmente à vista na leitura de Guerra e Paz é o seu carácter histórico (o livro conta essencialmente, com um distanciamento de 50 anos, a guerra pátria de 1812 contra as invasões napoleónicas). Aqui, Tolstói também inovou: em contradição com a historiografia da sua época, que considerava força motriz da história as acções livres de personalidades notáveis, Tolstói, em Guerra e Paz, recorreu de algum modo ao conceito de história contido nas antigas crónicas militares russas dos séculos XIII a XVII. Tais crónicas só falam de guerras de defesa, não de guerras de conquista. O que nestas crónicas mais interessa a Tolstói é o código moral da querra nelas elaborado, código que, pode dizer-se, se encarnou em Guerra e Paz. Para o cronista antigo, a imagem do invasor é determinada apenas pelo seu acto – a invasão. Por isso, o invasor é sempre apresentado como arrogante, convencido e oco, e o defensor da pátria é sempre portador da verdade ética e, daqui, a sua imagem “positiva”. Assim acontece com o binómio Napoleão/Kutúzov. Para alcançar a vitória, não interessa a força, a estratégia, o talento militar – apenas a verdade moral. Não interessam os “grandes homens”. (Napoleão – sempre presente mas nunca visto – é ridicularizado pela pena de Tolstói), Kutúzov não é apresentado como “grande homem”, é descrito com todos os seus defeitos físicos e todas as suas hesitações. Neste sentido, como Tolstói parte do conceito da “guerra do povo” contra o invasor, é justificável o desprezo e a falta de respeito pelos estrangeiros invasores, não tendo cabimento as acusações de xenofobia que alguns historiadores da literatura têm feito a Tolstói pela maneira como ele retrata Napoleão e os generais alemães e austríacos (embora estes últimos sejam aliados dos russos, mas sem motivações patrióticas). No romance, as verdadeiras façanhas são feitas pelas pessoas mais modestas e desinteressantes. Não é Kutúzov quem alcança a vitória, Kutúzov é apenas o herói nacional que leva o povo a alcançar a vitória.

Literariamente, Tolstói é contra o formalismo, as etiquetas, os esmeros, procura sempre libertar-se das peias literárias que atam as mãos à verdade. O heroísmo é despojado das suas formas heróicas, os homens, individualmente, são frágeis e mostram-no, só a ideia é grande: por exemplo, Kutúzov quase não dá ordens, dirige os acontecimentos com a sua atitude. Disse N. Berdiáev, a propósito de Guerra e Paz: “Tomei uma vacina tolstoviana para toda a vida. Consistiu no profundo desprezo por quaisquer relíquias falsas, pelas grandezas históricas falsas, pelos grandes homens falsos”.

NINA GUERRA

Outubro 2003

 
 

 

 

                               

Porque Vamos à Guerra?

ALEXANDRA LUCAS COELHO

Terça-feira, 21 de Outubro de 2003

Chegaram a Belém num autocarro, ontem de manhã. Vinham de Lyon, França. 27 horas de viagem. 16 actores, cenógrafos, figurinistas, técnicos. 34 pessoas, ao todo. Costumam ser 35. Faltava Piotr Fomenko, encenador, o russo teimoso que um dia, em 1994, propôs a estes mesmos actores fazer em teatro "Guerra e Paz", de Lev Tolstói.

Passaram nove anos e esta noite eles sobem ao palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, para a 100ª representação (seguem-se mais duas, até quinta, sempre às 20h). Por razões de saúde, o encenador foi de Lyon directamente para Moscovo.

Fomenko, 71 anos, é um dos nomes míticos do teatro russo. E, desde meados dos anos 90, as suas passagens por festivais europeus (sobretudo em Paris) têm sido aclamadas pela crítica e enchem salas.

Entre os muitos autores que encenou (Shakespeare, Molière, Camus, Ostrovski, Tchékov, ou Weiss) - num percurso que vai em mais de 60 peças - , nenhum será tão antigo nele como o Tolstói de "Guerra e Paz". Tinha dez anos, quando lá fora caíam as bombas da II Guerra. Lembra-se de ficar debaixo da mesa, a ler uma edição barata, em quatro volumes. Debaixo da mesa tornou-se um espaço dele. O primeiro palco. De Moscovo - onde começou a estudar teatro com 19 anos - a Leninegrado - quando o regime soviético começou a achá-lo muito arisco -, a Tbilissi, na Geórgia - sempre encenando, onde podia -, até Moscovo, novamente - para onde veio ensinar, já nos anos 80 -, "Guerra e Paz" acompanhou-o toda a vida.

Mais de mil páginas, escritas há século e meio (1863-1868). Fomenko sabe que hoje poucos as lêem. Que não é por aplaudir de pé o seu espectáculo que a plateia vai a correr para casa percorrer os salões dos Rostov, dos Bolkónski, espreitar a primeira dança de Pierre e Natacha, despedir-se de Andrei que vai para a guerra, nesses anos em que a aristocracia russa falava francês e ser proprietário de terras significava ser proprietário de almas, servos, estava o século XIX ainda a começar.

A questão central, para Fomenko, é que o que aconteça em palco seja teatro - matéria, corpo, voz, movimento, luz, texto vivo, agora, aqui. E se, pelo teatro, um leitor vier, tanto melhor.

"A ignorância da literatura clássica sob a sua forma inicial não contempla apenas Lev Tolstói, mas todos os clássicos mundiais", diz ao PÚBLICO, por e-mail, entre os espectáculos de Lyon e a estreia em Lisboa. "Hoje, raros são aqueles que conseguem ler os quatro volumes do romance de Tolstói, tanto na Rússia como no exterior. Frequentamos muito mais o cinema, a TV, a Internet, sinopses. Não temos ilusões de que graças ao nosso espectáculo todos os espectadores se vão precipitar na leitura do romance, e, no entanto, sabemos de casos em que isso aconteceu, o que reforça a nossa firmeza (de resto, não era objectivo do nosso trabalho, porque o espectáculo existe em si-mesmo). O teatro cumpre a sua vocação preenchendo a lacuna entre a nossa vida de hoje e o espaço dos clássicos."

Os "fomenki"

À roda da meia-noite, depois do primeiro espectáculo no Théâtre National Populaire de Lyon (dia 15, sala esgotada, longo aplauso final), os "fomenki" juntam-se no bar onde é servida uma ceia. Vêm de cara limpa, camisolas, jeans, esfomeados, ao fim de 3h40 de espectáculo (com dois intervalos).

À mesa a que nos juntamos, começam por ser cinco, chegam a ser dez, trazem copos de vinho, brindam, comem com apetite. Chamam-lhes "fomenki" porque começaram com Fomenko e com ele continuam. No fim dos anos 80 entraram para o Gitis, o Conservatório de Moscovo. Fomenko foi o mestre deles. Era uma turma rara, sentiu ele. Tão rara que, com eles, decidiu criar uma companhia. O Teatro-Atelier Piotr Fomenko nasceu assim, em 1993.

Todos os que estão nesta mesa eram dessa turma.

Galina Tunina, a da longa, longa trança que agora acende um cigarro - ainda há pouco era a princesa Maria Bolkónskaia a pôr uma medalhinha ao pescoço do irmão Andrei, que vai combater Napoleão.

A loura Ksénia Koutiepova, de delicadas maçãs do rosto, que quer tanto saber se fará frio em Lisboa - em palco é Lisa, a grávida e coquette mulher de Andrei, que não entende porque há-de ele ir à guerra, porque vão os homens à guerra.

O robusto e silencioso Andrei Kazakov - que deu corpo ao robusto e falador Pierre Bezukhóv (é com ele que Fomenko abre o espectáculo, num monólogo inicial que no livro não existe, mas corresponde, palavra por palavra, a palavras escritas por Tolstoi, como as desse apêndice em que volta a pergunta que sopra ao longo das mil e tantas páginas: porque vão os homens à guerra?)

Um jovem actor (que não tem idade para pertencer à turma inicial, e representa pequenos papéis) vem de outra mesa a saltar, numa pantomima: "Trabalho, trabalho, trabalho, trabalho", repete, fazendo flexões com os braços, até cair, enrolado no chão. Os "fomenki" mais velhos, aplaudem, a rir.

Foi numa sala da Casa dos Actores na velha Rua Arbat de Moscovo que os "fomenki" se juntaram em 1994 para ler "Guerra e Paz". Vão contando (um aqui, outro ali, acrescentando a memória) como leram tudo, do princípio ao fim. Ao fim desses quatro meses pararam. Não tinham ainda um teatro deles, um espaço onde pudessem montar um espectáculo como "Guerra e Paz".

Durante anos foram fazendo outras peças, em diversos locais, sempre com Fomenko. Ensaios das 11h às 15h, mais três, quatro horas à tarde, todos os dias, fora as noites de espectáculo. Em 1999, houve a promessa de um espaço, disponibilizado pela câmara, o antigo cinema Kiev.

Voltaram a "Guerra e Paz", à mesa de trabalho, de leitura, de onde Fomenko faz nascer os espectáculos, com os actores.

A "leitura teatral" - é assim que Fomenko lhe prefere chamar, em vez de adaptação - foi sendo feita. O projecto inicial, desmedido, abrangia o romance inteiro. Começariam por um espectáculo com a primeira parte do primeiro livro (cerca de 150 páginas, na edição russa). E, ao longo dos anos, continuariam, desde 1805 a 1820, atravessando todas as batalhas da guerra, na rectaguarda, entre quem fica, na frente de combate, entre quem parte - e muitas vezes não volta, como os homens que morreram em Borodino, no ano de 1812, meio milhão.

Em Outubro de 2000, o teatro de Piotr Fomenko é inaugurado - uma equipa de 150 pessoas, 28 actores, duas salas com cem lugares. Em Fevereiro seguinte, "Guerra e Paz" estreia finalmente, em casa, sete anos depois de os "fomenki" terem lido juntos o texto. É o espectáculo inicial, correspondente às primeiras 150 páginas, até Andrei partir para a guerra. O "pressentimento" da guerra, chamou-lhe Fomenko. O que Lisboa verá por três noites.

Mas, confirmou o encenador ao PÚBLICO, a este não se seguirão outros, romance fora. "Tínhamos essa intenção, mas a vida não permite realizá-la. E verificámos que o prólogo, tal como está, era suficientemente completo, significativo, continha todas as ideias que para nós eram importantes. Para levar este trabalho até ao fim, precisaríamos de 20 anos, no mínimo... E mesmo assim..."

Em palco

Uma cortina com um mapa da Europa, que abre ao meio, permitindo maior ou menor profundidade de cena. Um painel de cada lado com o rosto dos dois líderes, Napoleão à esquerda, o czar Alexandre à direita. Sobre o palco, cadeiras, escadotes, uma passadeira em ferro erguida, permitindo dois planos em altura - e a alternância sincopada de cenas sem mudança de cenário, apenas através da iluminação.

Solução soberba para entradas e saídas num palco tão nu: duas molduras (uma de cada lado) que, assentes num pé, rodam, trazendo e levando as personagens. Faz parte dos mecanismos de distanciação trabalhados por Fomenko algumas das personagens serem pouco ágeis a passar por esta roda - há uma que desconfia, outra que até lhe cospe em cima.

Pôr as personagens com o livro de Tolstoi na mão, lendo partes, ajustando o movimento à descrição do autor, executando gestos acabados de nomear, é outro recurso distanciador. Está tudo à mostra, não há efeitos especiais, é no teatro que estamos, esse é o centro do trabalho de Fomenko.

As personagens são mais de 30, o que significa que os 16 actores se desdobram, vivíssimos (voz, canto, movimento). Elas, para se moverem mais ligeiras, com sapatilhas de bailarina. Parece simples e é exacto. Não por acaso. Um mês e meio antes da estreia de cada espectáculo - contaram-nos os "fomenki" em Lyon -, os actores passam a quase viver no teatro. Fomenko - que acredita que o teatro é, sobretudo, uma arte do actor - trabalha com eles de manhã à noite. Só vão a casa dormir. E depois da estreia, continuam a ensaiar. Nenhum espectáculo é completamente igual a outro. Nenhum espectáculo está, para sempre, acabado. Na manhã seguinte à estreia em Lyon, havia ensaio marcado às 11h. Para o 98º espectáculo.

                     Fotos