4-11-2004

 

K A T I A     G U E R R E I R O

 

           Site: http://katiaguerreiro_pt.blogs.sapo.pt/                

Outubro de 2005: Novo CD, "Tudo ou Nada", ler aqui.

Novembro de 2008: Novo CD, "Fado", ler aqui.

 

   

 

DN mais

 

   

Diário de Notícias, DN mais, 14 de Julho de 2001

Entrevista a Katia Guerreiro

DIAGNOSTICAR O FADO

Com apenas 25 anos de idade, Katia Guerreiro é mais uma voz do fado a deixar excelentes indicações logo ao primeiro álbum. “Fado Maior” faz justiça ao título e coloca mais um tijolo no edifício do novo fado, que não pára de albergar grandes talentos. Como este.

 JOÃO MIGUEL TAVARES            

Katia Guerreiro é médica, mas nas lides do fado não quer que a tratem por doutora. Nesse domínio, ainda lhe faltam alguns anos para atingir a licenciatura (fez-se fadista há menos de dois anos), e, no entanto, surge já com uma segurança admirável na voz e na postura. “Fado Maior” é o seu primeiro álbum, e ela apresenta-o com a modéstia das estreantes mas também com o empenho de quem coloca o máximo de seriedade naquilo que faz.

Já começaram as comparações com a Amália?

Já, já me bombardearam com as perguntas a propósito da Amália. Hei-de defendê-la sempre com unhas e dentes, porque a Amália foi sempre a minha maior referência musical. O que me interessa na música é a expressão, é aquilo que ela consegue transmitir, e nunca ninguém conseguiu transmitir tanto quanto a Amália. Mas se me tentam comparar devo dizer que estou perfeitamente em desacordo, porque a Amália é inimitável, incomparável e insubstituível. Compreendo que se tentem compensar os valores que se perdem, mas nunca ninguém conseguirá ocupar o seu  lugar.

   

 

Mas ainda não chegou àquela fase em que as comparações já aborrecem?

Não se trata de as comparações me aborrecerem ou não. Incomoda-me no sentido em que qualquer comparação com a Amália é sempre injusta. Ficamos sempre a perder, não é? Nunca ninguém há-de chegar aos seus calcanhares. Jamais tentarei imitá-la ou procurarei imitá-la ou procurarei copiar os seus jeitos de cantar, na voz ou na postura. Eu entro num palco e sou eu. Não preciso de criar uma personagem.

Nasceu na África do Sul, não foi?

Sim, e chamo-me mesmo Katia, com “k” e sem acento no “a”. A minha família é de Angola, onde fui feita. Com a independência, passaram para a África do Sul, já a minha mãe estava grávida e acabei por nascer lá. Quando tinha 11 meses, fomos para os Açores, onde fiquei até ir estudar medicina para Lisboa. Agora estou em Évora.

Como é que alguém que passou por um rancho folclórico, esteve numa tuna académica e canta ainda num grupo de música dos anos 60 (os Charruas) vai acabar no fado?

Não sei muito bem como aconteceu, só sei que aconteceu gradualmente. Andei pela música tradicional e gosto muito de rock, o que é que hei-de fazer? Mas o fado sempre esteve comigo. Lá está outra vez a Amália, que era a única pessoa que me levava a ouvir fado. Mesmo quando era muito pequenita, parava de brincar ao ouvir a sua voz na rádio.

Quando é que começou a cantar fado?

Quando ainda estava nos Açores. Comecei a cantarolar nos intervalos dos ensaios do rancho folclórico, onde tocava viola da terra, um instrumento tradicional de 12 cordas. Depois, quando vim para Lisboa, tanto na tuna como nos Charruas, o fado acontecia sempre nas nossas brincadeiras. E houve um dia que a brincadeira se tornou um bocadinho  mais séria, pois o Paulo Parreira (guitarrista) e o João Mário Veiga (viola de fado) ouviram-me cantar no Embuçado, que nem sequer costumava frequentar, e convidaram-me para actuar com eles. Nunca me passou pela cabeça que tal viesse a acontecer.

Isso foi há quanto tempo?

Há um ano e qualquer coisa.

Como é que chegou tão rapidamente ao disco?

À medida que nos fomos entrosando, chegámos à conclusão que trabalhávamos bem juntos e que valia a pena gravar um CD. Quando partimos para o CD tínhamos alguns temas na manga, e os restantes aconteceram à medida que ele ia sendo gravado, desde fins de Outubro até meados de Março deste ano.

Muitos fadistas consideram que o fado tem uma dimensão existencial, não se limitando a ser um simples ofício. Identifica-se com essa ideia?

Sem dúvida que o fado é um estado de alma. É preciso sentir muito o que se está a cantar, embora haja quem consiga debitar fados no tom. Para mim, cantar o fado é, de facto, transmitir o que vai cá dentro; sentir, nem que seja apenas num verso ou dois, coisas que têm a ver comigo, com a minha vida. Um poeta pode escrever para si, mas quem lê a poesia, interpreta-a em função da sua vivência, da sua maneira de estar na vida. É isso que eu faço no fado. Transmito aquilo que sinto, pego em tudo o que tenho e deito cá para fora. Por isso chego exausta ao final dos espectáculos.

E sente-se inserida neste movimento de renovação do fado?

Não... É claro que sou nova, que tenho uma voz nova e que, até há bem pouco tempo, a maior parte dos nossos fadistas eram todos da velha guarda. Mas tirei um curso de medicina, trabalho... o fado é, sobretudo, o meu tubo de escape. Há pessoas que vão jogar ténis, há pessoas que vão ao ginásio, há pessoas que coleccionam selos ou moedas, eu canto fado. No entanto, isso é feito da forma mais profissional possível, não lhe posso chamar “hobby”, porque é sério demais, embora não seja profissional do fado e não viva do fado.

Mas gostava de viver?

Não, não gostava. Pode parecer arrogante, mas, antes do fado, tenho de respeitar a carreira médica, que exige muito de mim. Dou-me ao luxo de estar no fado com rigor e profissionalismo, mas também com restrições.

Ia perguntar se o fado iria ser a sua vida, mas estou a ver que não.

Não posso jurar a pés juntos que daqui a uns anos não abandone a medicina para me dedicar apenas ao fado, mas neste momento não penso dessa forma . O que posso dizer com toda a certeza é que adoro medicina e estudei muito para tirar o curso. Se queimei as minhas pestanas com muito prazer, não é agora que vou deitar fora o privilégio de ser médica. Posso cantar quando e onde quiser, nem que seja na casa de banho, e neste momento tenho um disco, onde me posso ouvir daqui a 20 anos. Mas ser médica implica um estudo e uma actualização permanentes. Tem de se praticar todos os dias.

Está no internato geral. Que especialidade quer seguir?

Pediatria. Mas ainda não estou totalmente decidida.

 

Jmtavares@dn.pt                   

 Mais um nome para fixar

 

O movimento de renovação do fado começa a tomar proporções verdadeiramente surpreendentes. Mafalda Arnauth, Cristina Branco, Maria Ana Bobone, Lula Pena (a seu modo), Ana Sofia Varela (em breve), e agora Katia Guerreiro ... vozes femininas que aprenderam a amar o fado nos discos de Amália Rodrigues mas que não surgem a decalcar a sua referência maior, antes procuram encontrar um lugar próprio dentro do género, seja na sequência da tradição ou em ruptura com ela. O mais curioso em tudo isto é que cada voz afirma, de facto, a sua individualidade, pelo que não se pode falar numa nova escola. Muitos destes nomes cresceram longe da Alfama e da Mouraria, não apreciavam particularmente o género quando jovens, e chegaram ao fado por mero acaso do destino. Assim aconteceu com Katia Guerreiro, que se viu fadista há menos de dois anos, e que agora lança um primeiro álbum a todos os títulos admirável. Admirável, em primeiro lugar, pela segurança que já denota na voz quente e aveludada (ouçam-se as arriscadas subidas de “Algemas”); admirável, depois, pela sobriedade do repertório, com alguns temas de João Mário Veiga (que, com Paulo Parreira, na guitarra, e Armando Figueiredo, no baixo acústico, forma o trio de acompanhantes, também responsável pelos arranjos do disco) e fados da fase final de Amália (o trágico “Amor de Mel, Amor de Fel” e o mais leve “Asa do Vento”); admirável, finalmente, pela qualidade da sua interpretação, que denota uma surpreendente maturidade e sabe fugir à tentação do exibicionismo, da teatralização e do estilar barroco. Katia Guerreiro é médica e não pensa deixar a sua profissão. Mas, se algum dia o estetoscópio lhe pesar no pescoço, pode perfeitamente substituí-lo por um xaile. Deixará de curar corpos, mas passará a alegrar almas a tempo inteiro.

J.M.T.

V I D A S

Expresso, VIDAS, 30-6- 2001

PESSOAS   Revelação

Voz maior

 Katia Guerreiro é considerada a mais nova promessa do fado, que canta por prazer

 Texto de Ana Soromenho

 
 

Quando no Outono passado, um ano depois da sua morte, se prestou homenagem à grande diva, e várias vozes se juntaram no Coliseu dos Recreios de Lisboa para cantar o fado, houve quem não resistisse a compará-la com Amália. Dizia-se que estava ali uma sósia, não só pelas semelhanças físicas mas, sobretudo, pela forma de interpretar e também pela voz. Katia Guerreiro era a jovem fadista, ainda debutante, que subitamente se via colocada no patamar das estrelas. Ela recusa a comparação.

 

Para quem apenas gosta de cantar o fado pelo prazer de cantar o fado, a comparação soa a um exagero provocado pela força do acontecimento: «Não estudo o que faço. Nem faço aquilo de que não gosto. A única coisa que posso dizer é que ela sempre foi uma grande referência para mim».

 

 

Katia acabou de editar o primeiro disco, Fado maior, que está a ser lançado a grande velocidade. Ela tem a vantagem de uma extrema simplicidade e de saber bem o que quer. Médica, recém-licenciada, trabalha no Hospital de Évora, tem 25 anos e define-se como uma pessoa clássica. No fado e na vida: «Fiz este disco com muita calma. As letras são principalmente clássicas porque sou uma pessoa, por natureza, muito clássica, e no fado não me identifico com sonoridades mais contemporâneas. Sou clássica na maneira de vestir e na forma de estar. Não sou uma pessoa extravagante. Gosto das coisas antigas».

Katia Guerreiro nasceu na África do Sul, filha de uma família que vinha de Angola. Em criança foi viver para os Açores, para São Miguel, Ponta Delgada, e aos 18 anos chegou a Lisboa, para estudar medicina. Nos Açores fez parte de um rancho folclórico e aí nasceu-lhe o gosto pela música e pelo canto, que continuou a cultivar enquanto estudava medicina na Faculdade de Lisboa. Foi ela quem fundou a tuna médica de Lisboa e o grupo de teatro Miguel Torga daquela faculdade, foi dirigente associativa e ainda teve tempo para integrar uma banda rock de música dos anos sessenta.

O fado surgiu por acaso, numa noite em que estava numa casa de fados e, por brincadeira, se atreveu a experimentar aquele registo de voz. Nesse entusiasmo cruzou-se com os músicos Paulo Parreira (guitarra portuguesa), João Mário Veiga (viola de fado) e Armando Figueiredo (viola baixo), que com ela trabalharam e lhe deram força para chegar ao disco.

Rui Vieira Nery, no texto de apresentação que dedica ao CD, diz sobre ela: «...penso que aqueles que ouvirem este disco concordarão comigo em que se trata sem dúvida de uma das vozes fadistas mais sedutoras da sua geração e uma das que tudo indica poderem vir a ter no panorama do Fado um futuro mais destacado...»

E sobre aquilo que é possível saber sobre o futuro, Katia garante apenas duas coisas: «Se um dia tiver de optar, é pela medicina que o farei. Entretanto sou fadista com um enorme prazer. Quando fiz este disco, e como não sei se cantarei o fado a vida toda, fi-lo com empenho de o ouvir daqui a alguns anos e poder continuar a sentir-me satisfeita com trabalho que está aqui».

 

                               

PÚBLICO, suplemento Y   20-7-2001

Novas fadas

Fernando Magalhães

Nada foi encenado.

No hospital de Évora, onde exerce medicina, cura os males do corpo. Com a voz cura os males do espírito. Kátia Guerreiro, médica de profissão, canta o fado. Antes cantou num rancho folclórico dos Açores, onde intepretou pela primeira vez "Amar, amar", com poema de Florbela Espanca, "que a Teresa Silva Carvalho cantava", e no grupo "Os Charruas", passando ainda pela Tuna Médica de Lisboa. Em Outubro do ano passado esteve no Coliseu dos Recreios, no espectáculo "Uma Vela por Amália". Deu voz a dois fados, de Amália: "Amor de mel, amor de fel" e "Barco negro". Teresa Silva Carvalho, Maria Teresa de Noronha e Camané, e os poetas Camões, Sophia de Melo Breyner, Fernando Pessoa e "uma grande amiga", Maria Luísa Baptista incluem-se na lista das suas preferências.

   

 

Nessa ocasião, no Coliseu, estarreceu pela voz e pela extraordinária semelhança física com a diva. Aceita as comparações, mas esclarece que "nada foi encenado": "Em relação às minhas expressões, à minha forma de franzir as sobrancelhas, é a minha maneira de estar no palco, de cantar, quando sinto não estou a pensar no que estou a fazer, naquilo que as pessoas poderão estar a ver. Canto com o corpo inteiro, se há coincidências ou não...nunca andei a observar a Amália...sempre cantei assim...a única coisa que posso dizer é que sinto muito em mim a Amália quando estou a cantar...".

Define-se como "tradicionalista": "No fado, não se pode mudar nada. O que é, é. Depois há variações...". "Fado Maior", o seu disco de estreia, mostra uma cantora "apaixonada" que canta "os amores ardentes e os desamores, as paixões e as desavenças, o desânimo, a luta, a solidão, a alegria".

 

 

 

 

DNa

 

   

Diário de Notícias – DNa    3-11-2001

Texto de Sandra Nobre

FOI DEUS

Nos Açores, Katia Guerreiro sentiu o apelo da música. Aos 12 anos, não quis ir para o Conservatório por achar que era “velha” para tal. Aos 15, estreou-se num rancho folclórico. Aos 18, veio estudar Medicina para Lisboa. Uma noite é convidada a cantar numa casa de fados e o seu nome passa a figurar entre a nova geração de fadistas.

É uma espécie de superstição. Katia Guerreiro não começa a cantar antes de se benzer, ainda que na pressa da subida ao palco o tenha que fazer mentalmente já quando todos estão com os olhos postos nela. Nesse instante íntimo, a fadista pede protecção a Deus e aos que já partiram, que acredita estarem em qualquer lado a protegê-la. É no avô que pensa nesses momentos que não gosta de compartilhar. Depois, Katia esconde as mãos atrás das costas e agarra-as com força, sustendo o nervosismo até começar a cantar e fica assim até ao último acorde, diz que se sente mais confortável, que se tivesse as mãos livres não saberia o que fazer com elas.  Mas quem a ouve cantar. Não nota sequer uma pontinha de insegurança ou tremor na sua voz, quando canta é como se se entregasse totalmente ao poema, de olhos fechados. No final da actuação, se os pais não estão entre o público, agarra no telefone para dizer como correu e respirar de alívio.

Quando era ainda uma garota dizia que quando fosse grande queria ser veterinária, que queria curar animais e não pessoas, por medo só de pensar que podia ter a vida de alguém nas suas mãos. Cresceu com essa convicção até ao dia em que quis ser mais forte e ultrapassar a sua insegurança e decidiu que seguiria Medicina, que ela logo haveria de saber dar conta do recado. Nesse tempo, vivia em S. Miguel, nos Açores, depois de uma grande viagem desde África do Sul, quando tinha apenas 11 meses. A família ancorou ali, diante do oceano imenso que sempre a fascinou. E ali ficou.

   
 

A música chegou por influência do irmão que dançava no Rancho Folclórico de Santa Cecília e aprendia a tocar viola da terra, um instrumento típico açoreano. Um acidente de percurso fez com que o irmão partisse uma perna e começasse a ter as lições de música em casa. Katia ficava sempre atenta aos ensinamentos, mesmo quando estudava para os testes. Depois, quando ficava sozinha, tentava pôr em prática o que aprendera, sempre em segredo. Já antes, no colégio, o sentido musical dos irmãos não passava despercebido aos professores, que notavam neles um bom ouvido para a música. Um dia a professora perguntou-lhe por que é que ela não ia para o Conservatório, ao que lhe respondeu que não, que já era “velha” para tal. “Um grande erro”, reconhece, “se tivesse tido formação musical, hoje era capaz de compor, tinha outras bases que me permitiriam evoluir com mais facilidade”.

Um dia o pai, ao chegar a casa, encontra-a a tocar. No imediato achou que Katia devia integrar o rancho folclórico. E assim foi. No rancho começou também a cantar, nos intervalos dos ensaios, aos serões e nas jantaradas, entrava na brincadeira e cantava a par dos outros.

Katia cresceu mas idealizou que seria médica. O sonho trouxe-a para Lisboa. E os Açores lá tão longe… “Apesar das saudades que tenho dos meus amigos e das pessoas que lá deixei, a maior falta que eu sinto é dos meus recantos, para onde eu fugia quando precisava, onde havia sempre uma paz e um sossego que não encontro por muito que procure. À noite, saía do meu quarto, abria a porta e tinha o mar à minha frente. Agora, sempre que volto a Ponta Delgada, passo em frente da minha casa e fico com as pernas a tremer”. É quase o mesmo nervosismo que sente quando sobe ao palco.

Inicialmente, veio sozinha para o continente, mas na primeira oportunidade os pais e o irmão vieram ao seu encontro. “Foi uma mudança radical nas nossas vidas”. Na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, a sua presença não passou despercebida, foi uma aluna exemplar e uma estudante que viveu intensamente o meio académico. “Tive o meu trajo académico no primeiro ano, fui um dos elementos fundadores da Tuna Médica de Lisboa, do Grupo de Teatro Miguel Torga, fui dirigente associativa durante dois anos. Quis aproveitar ao máximo este período da minha vida”.

Na Faculdade esteve sempre próxima de pessoas ligadas à música. Ainda no primeiro ano, integra um grupo de música rock dos anos 60, os Charruas, do Cartaxo, por intermédio de um primo que era vocalista do grupo. Começou por uma brincadeira: ouviram-na cantar, convidaram-na para assistir a uns ensaios e resolve ficar. Até hoje. “Tenho tido a sorte de na vida me cruzar com pessoas com as quais tenho muitas afinidades e laços de amizade quase familiares”, reconhece.

Por brincadeira, começa a ir a uma casa de fados, aventura-se num fadinho e encanta o público e os músicos. Volta sem saber ao que vai e pedem-lhe que cante como da outra vez, os músicos rendem-se à sua voz e ainda hoje continuam a actuar juntos. Katia Guerreiro inscreve a partir daí o seu nome entre a nova geração de fadistas. A brincadeira torna-se séria e culmina com a gravação de um CD este ano, mais do que ela poderia ter imaginado para si. Talvez seja uma bênção de quem a protege, esteja onde estiver.

         B B C

 

Katia Guerreirro
Nas Mãos do Fado
(Ocarina)

Reviewer: Jon Lusk  

If fans of Portuguese fado have overlooked this young singer, it's not because she lacks talent.

Her debut album Fado Maior appeared around the same time as that by her better known colleague Mariza, but Katia's career has been more of a slow burn affair for several reasons. Firstly, she hasn't had as much heavy promotion or any major label backing. And incredibly, she still works one or two days a week as a doctor in a hospital near Lisbon, so she's had to fit a limited touring schedule around her other vocation. Nor does she have quite the same showbusiness nous as Mariza. Onstage, Katia is almost static (though still magnetic), usually singing with her eyes closed and hands clenched firmly behind her back, as on the cover of this, her second album. 

The title means in the hands of fado and refers to the way her devotion to this exquisite and distinctively Portuguese style has changed her life completely. Her take on it is very traditional, and she still uses only the three key instruments of 12-stringed Portuguese guitar, Spanish guitar and double bass, which some purists insist is the only authentic fado arrangement.

A third of the melodies on Nas Mãos do Fado are drawn from the body of over 200 traditional fados which artists such as Katia regularly update by combining them with the words of Portuguese poets. A good example and one of the undoubted highlights is "Ancorado en Mim", which marries the tune of fado "Santa Luzia" with a poem by Ana Vidal. Another example is "Valsa", which employs fado margaridas and one of three poems by António Lobo Antunes on the album. 

Like most up-and-coming female fadistas, Katia is often compared to Amália Rodrigues widely acknowledged as the greatest fado singer of the twentieth century. In fact, Katia's range and tone are remarkably similar, so the comparison isn't entirely inappropriate, even if it does create unrealistic expectations. After all, both "Chora", "Mariquinhas Chora" and "Perdigão" were part of Amália's repertoire. 

Katia's Portuguese guitarist Paulo Valentim and guitarist João Viega also contribute both words and music, as does the singer herself on a couple of numbers. The test of such new compositions is how convincingly they blend in with the traditional ones; suffice it to say you'll be hard pressed to spot them. 

But my personal favourite is the most experimental song. The stunning slow waltz rendition of "O Que Fôr Há-de Ser" (by Dulce Pontes, Portugal's current number one roots-pop diva) is a masterpiece of restrained passion. The full range of Katia's extraordinarily subtle charm as a singer is on show, from a whisper to a wail. She has a very beguiling way of leaning into notes which makes her the equal of any of her contemporaries and on this evidence has easily overcome the difficult second album syndrome.      

 UMA OUTRA LUZ

 

 

A nova geração de fadistas é já suficientemente rica e diversificada para que nela se possam identificar atitudes e (quase) “escolas de pensamento razoavelmente distintas no que ao entendimento do fado e da interpretação que dele realizam diz respeito. Se, por um lado, Cristina Branco, Mísia ou até a própria Lula Pena não têm o menor problema em fazer do fado apenas um ponto de partida para todo o tipo de expedições estéticas que rapidamente o excedem e ultrapassam, por outro, Camané, Hélder Moutinho, Ana Sofia Varela, Pedro Moutinho, Joana Amendoeira, Ricardo Ribeiro ou Aldina Duarte sem que, aqui e ali, alguns deles se sintam impedidos de um ou outro gesto modernizador — preferem manter-se mais próximos da raiz da tradição, enquanto Mariza hesita entre a fidelidade amaliana, o “show off” da encenação e o fado-light e Mafalda Arnauth procura, algures, um ponto de equilíbrio entre todas estas linhas de rumo.

 

 
Katia Guerreiro - 2005
 

Nesta demanda por uma outra identidade do fado contemporâneo pode dizer-se que Katia Guerreiro estará, talvez, mais próxima de Mafalda do que de qualquer um dos outros. E isso, neste novo Tudo ou Nada, é particularmente evidente: a abrir, em “Disse-te Adeus à Partida, “Despedida”, “Ser Tudo ou Nada” e “Muda-se Tudo, até o Mundo”, presta homenagem aos modelos tradicionais, mas, logo a seguir, não hesita em atrever-se por um repertório que tanto inclui originais do seu trio de acompanhantes (Paulo Valentim na guitarra portuguesa, João Veiga na viola, Rodrigo Serrão no contrabaixo e baixo acústico) como “Saudades do Brasil em Portugal”, de Vinícius de Moraes, ou “Menina do Alto da Serra”, de Ary dos Santos e Nazareth Fernandes, e textos de Lobo Antunes ou Sophia de Mello Breyner. A verdade é que essa articulação de tonalidades soa perfeitamente natural (até a “Menina”, de Ary e Nazareth, aparentemente deslocada, encaixa bem no “puzzle”), a muito boa voz de Katia Guerreiro — curiosamente, mais afim da austeridade de Camané do que da exterioridade de Arnauth — ilumina palavras e melodias, abre espaços de respiração para o canto das guitarras e, em “Minha Senhora das Dores”, deixa-se repousar sobre a pequena aguarela para piano de Bernardo Sassetti. Mais um belo disco de fado.

JOÃO LISBOA

 

Tudo ou Nada

Katia Guerreiro

Som Livre

 

 

 

 

EXPRESSO, Actual n.º 1720, de 15-10-2005

  

A JANELA DO DESTINO

 

Segunda-feira é editado o terceiro álbum de Katia Guerreiro. O fado, para ela, é uma  catarse.

 

Entrevista de Miguel Francisco Cadete

 

E ao terceiro álbum Katia Guerreiro levou mais fundo essa ideia de que o fado, afinal, não é senão «poesia cantada”. Num género onde as maiores figuras, à excepção de Marceneiro, nunca se assumiram como compositores, a escolha do reportório a interpretar desempenha, obrigatoriamente um papel fundamental. Desta vez Katia aprimorou ainda mais essa selecção. Tornou aos poemas de Sophia de Mello Breyner e António Lobo Antunes, cantou Ary dos Santos, Vinícíus de Moraes e António Calém, e deixou-se embalar pela música de José Niza, Dulce Pontes e Bernardo Sassetti. Os fados tradicionais nunca descolam, mas os fados novos também comparecem. E até há uma versão de uma canção popularizada por Tonicha neste Tudo ou Nada. Ela explica porquê.

Em que circunstâncias gravou este novo disco?

Desta vez, fomos metódicos. Os outros dois discos foram feitos de uma forma muito irregular ou espontânea. Ou seja, das outras vezes fomos para estúdio com três ou quatro temas na mão e o resto surgiu enquanto estávamos a gravar. Era um trabalho completamente fora do normal: pouco metódico e até pouco profissional. Neste disco tivemos um maior cuidado. Foi tudo preparado antes de entrarmos em estúdio e correu muito melhor. O trabalho em estúdio já não era de ensaio e as coisas já não estavam tão cruas. A interpretação já vinha estudada, ou seja, podia interpretar mais seriamente os poemas que estava a cantar. Esse trabalho de pré-produção teve início no princípio de Junho e desde ai estivemos mais de um mês a ensaiar quase diariamente. Apesar de algumas saídas para espectáculos, inclusivamente no estrangeiro, fizemos por estar concentrados neste objectivo de fazer um disco com muito mais rigor do que era hábito.

Ainda antes desse trabalho de pré-produção teve que proceder à escolha dos temas. Em «Tudo ou Nada» encontram-se fados tradicionais, versões de canções já conhecidas, novos fados. O que a levou a optar por esta variedade de reportório?

Não quero, de todo, abandonar o fado tradicional. Como não cresci no meio do fado, ainda tenho muito reportório tradicional para descobrir e para interiorizar. Ainda nem tenho reportório suficiente para fazer um espectáculo só de fados tradicionais. Se bem que exista a ideia de que o fado tradicional acaba por se repetir, mas isso depende muito da interpretação de cada um e eu dou um cunho muito pessoal a todas as interpretações. E essa a grande vantagem dos fados tradicionais: a liberdade interpretativa. Por isso tenciono manter essa relação muito íntima e próxima com o que é tradicional no fado. Os fados originais acontecem ou porque o João Veiga (compositor e tocador de viola) tinha já um poema musicado ou que musicou no processo de pré-produção; o Paulo Valentim (compositor e tocador de guitarra portuguesa) tinha um ou dois temas na manga e o Rodrigo Senão (contrabaixista) aparece um pouco de surpresa com composições mas, sobretudo, e essa é a grande revelação, com uma certa escrita poética. Ele sempre escreveu prosa mas, durante este processo, e já depois de teremos iniciado os ensaios, aparece com poesia. Um desses poemas, «A Vaga», já estava musicado, mas quando ele me apresentou a música, comecei a interpretar sobre a melodia que ele tinha criado e dei uma volta grande a essa base.

Provavelmente devido a ter nascido fora dos meandros do fado, permite-se escolher outro tipo de temas, como a «Menina do Alto da Serra», uma canção de Ary dos Santos e Nazareth Fernandes. Ou pedir a José Niza que fizesse a música para um poema de Sophia de Mello Breyner. Depois das inúmeras repetições do reportório criado por Amália, sente que esse tipo de pesquisa é cada vez mais relevante?

O que acontece nesse tema é que quis prestar a minha homenagem a Sophia de Mello Breyner. Quando pela primeira vez pensei em gravar poemas dela (em «As Rosas / Promessa”, no primeiro álbum, Fado Maior editado em 2001), enviei-lhe uma gravação para pedir a devida autorização. Pelo que me disse o Miguel Sousa Tavares (filho de Sophia Mello Breyner), ela comoveu-se muito a ouvir-me cantar aqueles poemas. Falei depois com ela ao telefone e foi um momento muito intenso, muito afectivo. Ela queria conhecer-me pessoalmente e, um pouco por timidez minha, acabei por não fazê-lo. Acontece que quando ela morre eu estava em digressão por França e fui contactada pelo Miguel Sonsa Tavares para ir cantar aqueles poemas na missa de corpo presente. Fiquei com um desgosto enorme por não poder ir e sofri imenso com isso. Não exploro rigorosamente nada essas coisas, mas fiquei, de facto, com muita pena por não poder estar presente e partilhar a dor daqueles que tiveram o privilégio de ser filhos daquela mulher. Hei-de lamentar isso para o resto da vida. E este disco é, todo ele, uma homenagem a Sophia de Mello Breyner. Achei que este poema “Quando», do livro Dia do Mar, escrito em 1947, quando a poetisa tinha 26 anos) era a coisa mais bonita para se dizer da própria Sophia e do que ela pensava quando morresse; da sua visão do Mundo e da vida. Esta era a forma ele eu mostrar aos outros como ela continua a ver a vida mesmo depois da sua própria morte. E lembrei-me ele ir ter com o José Niza e levar este poema, «Quando”, de Sophia. Ele recomeçou a compor e a aparecer com novas ideias para música. Parece que renasceu para a composição, de maneira que o desafiei para musicar este poema. Apesar das outras composições que ele me mostrou serem também riquíssimas, achei este tema da Sophia muito feliz por todo o ambiente que ele criou.

Curiosamente, a dada altura, José Niza e Nuno Nazareth Fernandes repartiam entre si as vitórias no Festival da Canção. E aqui também surge uma canção escrita por Nazareth Fernandes com Ary dos Santos, a «Menina», popularizada por Tonicha. Sente algum fascínio especial pela música portuguesa da primeira metade dos nos 70?

Foi uma época que marcou muito. O Festival da Canção era um marco em Portugal, e durante muito tempo assim foi. Agora está completamente esquecido, mas, na época, a música portuguesa era de alta qualidade, não só musical como poética. Existiam grandes nomes a escrever como Ary dos Santos, José Niza, Paulo de Carvalho, Fernando Tordo. Este tema da Menina do Alto da Serra» estava esquecido há 30 anos. Surgiu quando participei num espectáculo de homenagem ao Ary dos Santos, na Festa do “Avante!», e fui desafiada pelo Ruben de Carvalho para o interpretar. Aceitei não tanto por ser da Tonicha, mas porque era Ary dos Santos e porque gostei muito da amplitude vocal quase brutal daquela canção. Quando subo ao palco e o tema começa a soar, o público reagiu de uma forma extremamente entusiasta e percebi que era uma canção que permanecia muito presente na cabeça das pessoas. Ainda antes de acabar de cantar, já estava tudo em êxtase. Quem diria que, 30 anos depois, é um tema que continua a marcar tanto.

Também interpretou poemas de António Lobo Antunes —«Disse-te Adeus á Partida / O Mar Acaba ao Teu Lado» —, um dos quais já havia sido cantado por Paulo Penim.

E verdade, mas aqui vingou a minha vontade de manter o António por perto. Admiro-o imenso, além de termos uma afinidade muito grande, pois ambos somos médicos, o que nos leva a ter uma visão das coisas muito própria, algures entre a fantasia das artes e a realidade da vida. Eu entendo que todos estes desabafos poéticos do António como uma forma muito verdadeira de expressar as suas emoções. Ele só faz isso através da poesia ou das crónicas, pois a sua prosa não é tão reveladora da sua intimidade. E eu gosto muito de mostrar esse lado do António, que poucas pessoas conhecem.

Neste álbum continua a recriar temas popularizados por Amália, como «Saudades do Brasil em Portugal», neste caso com letra de Vinícius de Moraes. Hoje, qual é a sua abordagem a este tipo de reportório? Procura uma perspectiva diversa?

Não. Eu quero é cantar fado. Portanto, não vou à procura de variações ou de abrir os tais caminhos secundários. Aquilo que eu interpreto, seja a nível poético seja a nível musical, tem sempre a ver com a forma como eu vejo o fado E eu vejo o fado como fado, como música simples que nos faz sentir coisas demasiadamente intensas que, por vezes, até nos comovem. Eu não tenho neste disco coisas complicadas. A coisa mais complexa em termos de composição é capaz de ser o tema da Dulce Pontes, que eu faço questão de cantar. Foi feito para mim. Convidei-a a encontra r um tema que ela gostasse de ver cantado por mim e ela andou a rebuscar lá nos seus papéis até acabar por decidir compor uma coisa completamente nova a pensar na minha voz, na minha interpretação, na minha simplicidade. E fez este tema, que está muito bem concebido e que tem muito a ver comigo. Ela deixou o título em aberto mas quando eu já estava a gravar, lembrei-me de lhe chamar «Dulce Caravela». Quando lhe telefonei a perguntar se gostava, ficou emocionadíssima e quase que chorou. Acabou por acontecer esta partilha entre nós as duas.

Tem também uma faixa gravada apenas com Bernardo Sassetti no piano. Não sendo um tema da autoria dele, mas do guitarrista Paulo Valentim, como interagiram?

Muito bem. O tema foi-lhe apresentado numa gravação muito primária feita em casa, tocada em guitarra portuguesa, viola e baixo. E ele disse-me que aquilo lhe estava a dar imensas ideias. Sabia que ele ia pegar naquela simplicidade e marcá-la com a sua interpretação, que é muito forte. Ele trabalhou-o em casa e, na véspera da gravação, disse-me que tinha feito algumas alterações, mas que eram quase imperceptíveis. O Bernardo queria que fosse só piano e quando o ouço a tocar fiquei certa que não era necessário acrescentar mais nada. Ficou com uma enorme subtileza, capaz de tornar aquele tema tão mais leve. Ele ainda me ajudou muito posteriormente, quando coloquei a voz nesta «Minha Senhora das Dores». Apaguei todas as luzes do estúdio e ao ouvir aquele interpretação dele, em rigor, ia ao encontro de tudo aquilo que eu sentia daquele poema e que queria cantar.

Em 2001, dizia, numa entrevista, que o fado era um «tubo de escape» e ainda mais: «Antes do fado tenho que respeitar a carreira médica». Hoje ainda pensa assim?

É exactamente a mesma coisa. Acho que prejudicaria imenso a minha verdade interpretativa se fosse fadista a tempo inteiro. Na altura, eu utilizava essa expressão do «tubo de escape», mas depois deste tempo todo amadureci mais essa ideia. De facto, a Medicina é a minha base ou a minha casa-mãe e o fado é o palco. O palco existe por causa do fado, mas ambos acontecem para me ajudar. É muito terapêutico, ajudam-me muito a fazer a catarse de tudo aquilo que eu recebo, não só a exercer Medicina como noutras situações da minha vida. Não me arrependo nada do que tenha feito e, até hoje, de nada do que não tenha feito. Tenho a certeza absoluta que seguindo este caminho vou conseguir manter unidas estas duas carreiras.

Quais são, então, as suas ambições enquanto fadista?

Não penso muito nisso. Nunca penso muito a longo prazo. Tenho funcionado sempre assim. Sou uma pessoa de aproveitar os momentos e de saborear a vida, sem pressa de chegar a lado nenhum. Sou nova e tenho tempo na minha vida para muita coisa. Hei-de ter tudo aquilo que merecer ter.

 

 

Expresso, ACTUAL n.º 1883, de 29 de Novembro de 2008

 

Em nome do público

 

COM AS MAIS TRADICIONAIS MELODIAS DA CANÇÃO DE LISBOA E NOVOS FADOS, KATIA GUERREIRO ENTREGA A SUA VOZ AOS OUTROS

Texto de Alexandra Carita

 

CHAMOU-LHE Fado. Simplesmente Fado. A palavra encerra tudo o que diz ser, tudo o que quer dizer, tudo o que sente e tudo o que tem para oferecer. Eternamente. É assim que Katia Guerreiro resume o trabalho que acaba de editar, três anos depois de Tudo ou Nada. Um disco sólido, abraçado pelo som tradicional da canção que descobriu ser a sua no final da década de 90, ainda estudante universitária. Pé ante pé, trilhou o seu percurso. Particular, diferente da fadista comum, entrou sozinha no mundo desse fado que é de todos. Cresceu lá fora e cá dentro, num universo de portas mais fechadas. Em festas privadas, espectáculos em circuito empresarial, embaixadas, em representações oficiais do seu país… Em salas maiores. Nesse constante entrar e sair de Portugal, levou mais de um ano a cantar “Eu Queria Cantar-te Um Fado”. O tema foi o mote para a construção do disco que agora chega ao público.

“Quando canto dirijo-me ao público, e é mesmo apara ele que estou a cantar. Quando canto dessa forma, recebo reacções extraordinárias. É esse o meu ponto de partida para este disco”, explica. A ideia implica a vontade máxima de “dar fado aos outros” e implica também uma entrega mais consciente essa vontade, que é ainda uma vontade de agarrar mais público. “Que seja este fado que eu canto que eles percebam e recebam de mim”.

A história de Fado cresce, então, em torno da homenagem. À música, à poesia, ao público. Nesse agradecimento “genuíno” destaca-se o nome de Fernando Tavares Rodrigues, o “Fernandinho”. A força da palavra do poeta desconhecido e já desaparecido surge no disco como figura central, partilhando espaços com nomes consensuais ou nem tanto, desde António Gedeão a Florbela Espanca, Maria Luísa Baptista, João Veiga, Paulo Valentim e Rodrigo Serrão à fadista que escreve de mão própria um tema musicado por Rui Veloso. Nesta narrativa sequencial que Fado encerra há um romantismo latente, embora as palavras vibrem de alegria e cheirem a vida. É a vida de Fernandinho. “Antes de começar o disco, fui buscar tudo o que tinha guardado e que tinha deixado para trás. No meio desse acervo, encontrei uma folha A4 com um poema lá escrito. Não consigo localizar, nem no tempo, nem no espaço, como é que aquela folha me veio parar às mãos. Olhei para o poema de novo e voltou a encantar-me”. Indagou de quem era e teve como resposta imediata: “Isto é do Fernandinho”. Personagem misteriosa para ela, Fernando Tavares Rodrigues foi-lhe sendo desvendado por amigos, conhecidos, colegas de trabalho. Atravessou-se-lhe na vida e passou a fazer parte dela. “Cada amigo que dele me falava, fazia-o com emoção. Percebi que era uma pessoa especial, intensa, com uma forma de se relacionar com os outros fora do comum”. Amante da vida como ninguém ( e “Vida” era o título do poema escrito na velha folha de papel), sofrera um acidente e acabara por pôr termo à vida de livre vontade. A busca de referências sobre Fernandinho levou-a ao contacto som a mãe do poeta, a ler a sua obra completa, a devorar cada poema. Leu e sentiu a vida, o amor, as pessoas, o mundo. Apaixonou-se pela beleza das palavras e pela sua simplicidade. Comoveu-se e quis tirar do anonimato esse homem já transformado em amigo. “Ponham flores na mesa” e “Mundo” foi o que decidiu musicar e tornar memória colectiva. “Acho que já o percebi”, remata, sem saber sequer que Fernandinho gostava de fado. Deste Fado ou de outro qualquer.

A emoção, a alma, o calor e a celebração desta história passam depois a construir um disco de sonoridades oscilantes. Há o “Fado das Horas”, há o “Fado Tango”, há uma capacidade interpretativa exaltada por essas melodias. E há um outro lado. Não menos quente, não com menos alma, não despido de emoção, mas revelador de uma necessidade de chegar a outro ponto num universo de potencialidades múltiplas para a experimentação. É nesse outro lado que Katia Guerreiro assume o atrevimento. A composição musical é o primeiro rosto desse desafio. Mais actual, mais contemporânea. Surge Pedro Pinhal e surge a ousadia de Mário Pacheco.

Atrevido a sério será mesmo “A voz da poesia”, que assina e oferece a Rui Veloso para musicar. O músico “arrumou-lhe a casa” ao compor, simplificando a sua forma de escrita e ajeitando-a à sua maneira. Gravou-o ao piano e emprestou-lhe a sua voz antes de enviar o resultado à fadista. Sem que pudesse ser de outra forma, nasceu um “fado suave, em tom de balada”. Katia, porém, deu-lhe mais alegria: “Era assim que sentia o poema que tinha escrito e assim é que o queria cantar”.

E o que chamar “Lisboa”, um original de Charles Aznavour, cantado pela fadista no mesmo francês ao cantor? “Não me parece um atrevimento. O tema é um fado, fala sobre Lisboa. É a história de amor entre Aznavour e esta cidade, entre Aznavour e o fado, entre Aznavour e Amália, na verdade”, justifica Katia Guerreiro. “Lisboa” é a sua forma de agradecer ao público francês pelo modo como a tem recebido e acarinhado, a forma também para que ele perceba, por minutos breves, aquilo que o fado é, compreendendo tudo o que canta.

Este mimo ao público francês não exclui o português. “Quero que todos saibam e se orgulhem em saber que grandes artistas internacionais amam o fado e esta terra, que lhes dedicam tempo da sua vida e da sua criatividade artística”, explica, estendendo “Lisboa” à necessidade de continuar a celebrar Amália. “Foi dela que parti e é a ela que recorro em todos os meus processos criativos e de interpretação”.

 

FADO - Alinhamento

01 - Fado dos olhos - Florbela Espanca / Carlos Ramos (Fado das Horas — pop)

02 - Pranto de amor ausente - Paulo Valentim

03 - A Voz da Poesia - Katia Guerreiro / Rui Veloso

04 - Ponham flores na mesa - Fernando Tavares Rodrigues / Joaquim Campos Silva (Fado Tango)

05 - Estranha paixão - João Veiga / Pedro Pinhal

06 - Casa da colina - Maria Luísa Baptista / Rodrigo Serrão

07 - A cidade saudade - Rodrigo Serrão / Casimiro Ramos (Fado Três Bairros)

08 - A nossa gente, o nosso fado - Rodrigo Serrão /Mário Pacheco

09 - Renasce - João Veiga

10 - Lírio roxo - António Gedeão / Francisco Viana (Fado Vianinha)

11 - Poema da malta das naus - António Gedeão / Paulo Valentim

12 - Mundo - Fernando Tavares Rodrigues / Júlio Proença (Fado Esmeraldinha)

13 - Lisboa - Charles Aznavour

14 - Eu queria cantar-te um fado - António de Sousa Freitas / Franklin Godinho (Fado Franklin de Sextilhas)

 

 

SOL – 29 de Novembro de 2008

 

A fórmula certa

A fadista Katia Guerreiro lança o seu álbum mais verdadeiro e mais extremo

 

Gonçalo Frota

 

Há pormenores e truques de estúdio a que os músicos recorrem para ultrapassar a situação artificial de cantar ou tocar sem palco, sem público, numa nudez em que cada nota fica totalmente exposta, sem disfarce possível. John Coltrane tocava virado para um canto para evitar o olhar dos outros músicos, Katia Guerreiro tomou uma resolução semelhante para o seu quarto álbum , Fado, acabado de chegar às lojas.

“Era uma coisa que precisava muito de fazer e finalmente percebi ser talvez a f´rmula certa”, explica. Por isso, a solução consistiu simplesmente em: “Estar de costas para a régie, não olhar para lá, para a mesa do com, para o computador, para quem me está a registar. Em vez disso, quis ter à minha frente um vazio, como se fosse um palco em que as luzes às vezes não nos permitem sequer ver o público”.

A partir desse momento, Katia Guerreiro pôde fechar os olhos e tentar enganar-se, imaginando que cada fado, cada história que contava, tinha pela frente um público suspenso nas suas palavras. O resultado, afirma, foi ter colocado em Fado as interpretações em que mais arriscou em toda a sua discografia. “No fado contam-se histórias e há histórias aqui que são muito fortes. Foi exactamente isso que me fez ser atrevida a cantar neste disco. Nos outros não fui capaz e depois, chegando ao palco, senti-me desiludida com aquilo que tinha gravado porque fui capaz de fazer muito melhor. E por isso é que não tenho ouvido tanto os meus outros discos”.

Pela mesma razão, Katia Guerreiro acredita que se trata de um disco com temas mais extremos na interpretação e onde os seus admiradores mais facilmente encontrarão a mesma fadista que costuma pisar os palcos: “Acho qu vão conseguir reconhecer em mim aquela força de palco, aquela capacidade de me ultrapassar, de ser superior a mim mesma num momento tão difícil como é o de estúdio”.

Mas Fado não se esgota na visão artística de Katia Guerreiro. A cantora diz transportar para o disco a preocupação de perceber e representar as pessoas com que se vai cruzando nos passeios de Lisboa. “Se não tivesse e não fizesse questão de ter essa noção da realidade e essa ligação umbilical com as gentes da vida real, talvez vivesse no mundo do sonho, a pairar sobre a realidade”. Assim, recusa liminarmente o papel do artista que “perde a capacidade de comunicar” e “acaba por viver num monólogo ou por ganhar uma forma de vida autista, em que só conta aquilo que vê”. Por isso, canta-se a si para cantar os outros.