4-7-2001
VASCO VIEIRA DE ALMEIDA
(N. 11-4-1932)
Conversa com vista
para ... "Un
bel'uomo"! Para além de ser um grande advogado, de ser casado com "una bella
donna", senhora de uma serena inteligência-com-dengue (só para entendidos
que nasceram e viveram em África!), de ter salteado a política quando ela se
praticava em clandestino e, já em liberdade, a ter revisitado de passagem,
quase à ilharga dos convencionais percursos do poder, de ter a memória
fresca e grata dos tempos de formação (menino de casa de seus pais), este
lisboeta impenitente que ainda larga o escritório nas tardes de sexta-feira
para ir a correr para casa, para o piano que o espera com uma partitura
aberta, Vasco Vieira de Almeida é de facto, insisto, um belo homem. Quando o
convidei para esta "Conversa" reagiu, com o sentido de humor que pratica
mordazmente: " O melhor é entrar já em estágio!". Telefonei-lhe para casa,
numa tarde de sexta-feira e interrompi-lhe o estudo do "Concerto Italiano"
de Bach. O encontro ficou marcado para a semana seguinte, com almoço, no seu
escritório. No prédio, ali para o Marquês, alguns andares têm placa com o
seu nome. Lisboa derrama-se, linda como poucas, de quase todos os ângulos
das varandas. No interior do último andar, onde conversámos, as paredes
dão-nos a ver muito do melhor da pintura portuguesa. Sem tempo para derivas,
passámos à sala de jantar. Ampla, luminosa, sóbria, de bom gosto. Papaia "farcie"
com "cocktail" de gambas, pato deliciosamente lacado, batata palha e vagens
como acompanhamento e, a fechar, um aveludado leite creme - esta a ementa
com que a exímia cozinheira, transferida de sua casa para o escritório, nos
brindou. Sem esquecer, claro, um excelente tinto do Dão. As duas horas
previstas correram céleres e souberam-me a pouco, de tanto mais que havia a
arrecadar para estes registos impressos em tiragem dominical de princípio de
mês. Mas eu sabia que o tempo de uma sociedade de sucesso como aquela não se
compadece com o outro tempo, o tempo destas "Conversas". Nem mesmo para um
melómano, como o meu conversado de hoje, o metrónomo da casa que comanda
poderia parar e conceder um qualquer ritmo de excepção. Regra aceite,
conversa acabada!
Maria João
Seixas - Vasco, diz-me quem és.
Vasco Vieira
de Almeida - Tudo aquilo que eventualmente possa ter de bom, não tenho disso
qualquer dúvida, tem uma ligação directa com meu pai, que era uma pessoa
extraordinária, em todos os aspectos. Talvez o homem mais inteligente e
culto que conheci, com um grande sentido de humor. Era um homem de valores,
extremamente simples e tinha uma forma única de comunicar as coisas que
sabia e em que acreditava; não as ensinava, comunicava-as porque existia.
Nem meu irmão nem eu fomos à escola. Fizémos a primária em casa. O meu pai
fez uns livrinhos, um de gramática portuguesa com 16 páginas, um de francês
com 20 e tal páginas e um de matemática com 30. E as lições eram dadas
conversando. O que aprendi nesses quatro anos de instrução primária, o que
ele me quis ensinar e tudo o que me transmitiu sem me ensinar, foi de uma
riqueza excepcional.
P. - Estamos a falar dos anos 40? R. - Sim,
isto passa-se na década de 40. Esses anos marcaram-me profundamente e meu
pai influenciou-me para o resto da vida. Era senhor de uma grande coragem
(foi preso aos 74 anos, depois das eleições do Delgado). Com ele e com o
apurado sentido de humor que tinha, aprendi a não me levar excessivamente a
sério. Também foi dele que herdei o rigor de raciocínio que, ao longo do
tempo e profissionalmente, me tem sido indispensável. Insistia sempre na
necessidade de busca permanente de uma sólida lógica interna do pensamento
que não permita pôr em causa as conclusões, a não ser que se rejeitem as
premissas.
P. - Qual era a área de formação do teu pai? R. -
Filosofia. Era professor de Filosofia na Faculdade de Letras. A um dado
momento quis que eu fosse estudar para França, porque achava que o ensino em
Portugal não era grande coisa. O que diria hoje... Não fui capaz. Quando
começou a aproximar-se a data de ir para Paris dei-me conta que seria uma
enorme estupidez partir, porque estando ao pé dele aprenderia muito mais do
que em qualquer Universidade francesa. Foi a coisa mais inteligente que fiz
na minha vida. Portanto, tudo o que tenha de positivo foi-me transmitido por
ele; as coisas más essas ganhei-as eu, com muito esforço próprio. Fiz sempre
o que quis, e o que não fiz foi o que não tive qualidades para realizar.
Esta consciência dá um razoável sossego. Sou livre. Não dependo de ninguém.
P. - Esse grau de independência foi sempre o objectivo da tua vida? R. - Sempre.
P. - E a política, como é que a política habitou essa tua liberdade? R. - Poder
fazer o que queria, juntamente com os valores que meu pai me tinha ensinado,
deu, entre outras coisas, que me metesse na política. Estive no MUD Juvenil,
onde conheci muita gente, entre a qual pessoas notáveis ligadas ao PC. Na
altura eu era um fanático marxista, tendo devorado uma boa parte de "O
Capital"! Por outro lado, tive a sorte de conhecer e conviver, lá em casa,
com os amigos do meu pai, pessoas fora de série num país atrasado, cinzento
e opressivo como era o nosso, como Jaime Cortesão, António Sérgio, Mário
Soares, Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes Graça, Câmara Reis... Alguns
vinham à noite para jantar e ficavam horas à conversa. Discutia-se sobre
tudo, num tom muito despretensioso. Assistir a essas reuniões foi um banho
de cultura e civilização, depois do qual só um burro não absorveria para o
resto dos seus dias uma série de valores, de princípios, de conhecimentos.
P. - O teu gosto pela música veio por influência da tua mãe? R. - Dos meus
pais. Meu pai, embora não tocasse nenhum instrumento, tinha um grande
sentido musical. Minha mãe cantava. Comecei muito cedo a ir a concertos e
aprendi piano. Tive as primeira lições com uma professora excelente, Maria
Beatriz Soares, depois com o Campos Coelho, a seguir fiz exames de solfejo e
piano no Conservatório e, durante dois anos, fui aluno do Lopes Graça de
Composição e História da Música, na Academia de Amadores de Música.
P. - E a política? Voltemos a ela para me falares dos teus envolvimentos. Viveste situações de risco antes do 25 de Abril? R. - De
grande risco, não. O regime tratava os chamados "intelectuais" presos de um
modo completamente diferente do aplicado aos dirigentes clandestinos, aos
operários e aos camponeses. Fui preso duas vezes. A primeira, por ter
agredido o agente da Pide quando foi buscar o meu pai a casa para o levar
preso. A outra, em 63, por ter colaborado na fuga de Caxias de alguns
dirigentes do PC. Na altura, era já director do Banco Português do Atlântico
e a Pide imaginava que, por ter aquele lugar, devia ser eu quem tinha a
responsabilidade de arranjar financiamentos para o partido. Mas a repressão,
que era violentíssima para algumas pessoas, tinha também aspectos de um
provincianismo caricato. Foram-me buscar a casa às 6 da manhã. Por lá
estiveram algum tempo, como era habitual, a apreender livros e
correspondência - um dos agentes cismou que a "República" de Platão era uma
obra perigosíssima e só quando lhe expliquei que o autor da obra fora, em
tempos, comunista mas entretanto renegara completamente a ideologia, é que
acedeu em deixar-me o livro em casa - e, acabada essa função, saímos. Dei-me
então conta que nem carro tinham levado e estivemos todos, em plena Lapa, a
chamar um táxi que nos transportasse para a António Maria Cardoso.
P. - Foste maltratado? R. - Não.
Estive oito dias nos curros. Obviamente há experiências mais divertidas, mas
para mim foi uma época inesquecível. Conheci então pessoas excepcionais,
entre elas, um amigo para a vida, o Dr. Arménio Ferreira. Numa das celas,
por onde passei depois, estava também um juíz, o Dr. Sebastião Ribeiro, já
de certa idade, que tinha ajudado o Henrique Galvão a fugir da prisão, e um
médico, Maldonado Freitas, de uma família muito conhecida das Caldas. Certa
noite o juiz sentiu-se mal, pareceu-nos que estava a ter um ataque cardíaco.
Enquanto o Maldonado Freitas lhe punha panos molhados na cara e lhe dava
umas palmadinhas, passei toda a noite a bater na porta da cela a pedir que
alguém viesse socorrê-lo. Ninguém apareceu. No dia seguinte, durante a
visita da Ana Maria, pedi-lhe que avisasse a filha do Dr. Sebastião Ribeiro
de que o pai estava mal, sem assistência médica, que podia morrer ali e era
preciso denunciar a situação. A filha escreveu imediatamente uma carta
duríssima ao Salazar, dizendo-lhe que se o pai morresse, ela considerá-lo-ia
o assassino. Em qualquer ditadura que se preze isto teria dado logo prisão
para quem escrevera. Em Portugal deu que o Salazar lhe respondeu. Com um
cartão, que vi e sei de cor. Tinha em cima o nome - António de Oliveira
Salazar, em baixo - Presidente do Conselho de Ministros, sendo que a
profissão estava delicadamente riscada. O texto: "António de Oliveira
Salazar, cumprimenta V.Exa. e informa que seu pai se encontra bem e goza de
assistência médica permanente." De facto, o Maldonado estava na mesma cela e
era médico.
P. - Estiveste preso durante quanto tempo? R. - Dois
meses. Não sabia ainda a razão porque tinha sido preso e pedi à Ana Maria
que tentasse perceber de que é que se tratava, quanto tempo poderia ter de
cumprir e me desse um sinal. Combinámos que no dia das encomendas, a seguir
a essa visita, ela me mandaria dois pastéis de nata se a coisa não tivesse
muita gravidade, meia dúzia se fosse grave, uma dúzia se fosse gravíssimo e
desse para eu ficar anos. Quando a encomenda chegou, fiquei varado e julguei
que ia ser condenado a prisão perpétua: quarenta e oito pastéis! O que eu
não sabia é que a Ana tinha combinado o mesmo sinal com as mulheres dos
outros presos, porque na altura estava numa cela com muita gente...
P. - Como é que foste recebido no Banco quanto te libertaram? R. - Fui ter
com o dono do Banco, que era o Cupertino de Miranda e disse-lhe que não
valia a pena dizer-me nada, que ia pedir a demissão naquele instante, porque
era óbvio não poder retomar as funções que tinha depois de ter sido preso
por ajudar comunistas a fugirem. Libertava-o assim da incomodidade de me
despedir. Nota que durante os dois meses que estive preso o meu ordenado foi
religiosamente entregue à Ana. O velho Cupertino disse-me: "Oh homem,
deixe-se de disparates, vá para a sua secretária que os depósitos até
subiram !".
P. - Hás-de convir que foi uma surpreendente atitude. Reveladora das contradições que o regime também comportava. R. - A minha
entrada para o Banco já tinha sido curiosa. Eu era estagiário de advocacia
no escritório do Mário de Castro, tinha vinte e poucos anos, tratava de uns
tristes casos de divórcio e não via a minha vida a andar para a frente. Um
dia recebo um convite para ser director-geral de um Banco. Não conhecia a
pessoa que me falou de lado nenhum. Disse-lhe que mal sabia distinguir um
cheque de um piano de cauda, ele achou que isso não tinha a mais pequena
importância e marcou-me um encontro. Naquele tempo eu achava que os Bancos
eram a marca mais visível do capitalismo fascista e preparei-me a rigor para
a entrevista: vesti-me de camisa preta e levei na mão um livro de um
economista marxista, Maurice Dobb, "On Economic Theory and Socialism", bem à
vista. Quando chego ao gabinete, vejo um homem novo que me diz, ainda eu não
tinha dado dois passos: "Até que enfim tenho um marxista aqui no Banco!"
Chamava-se José Fernando Martins de Carvalho e foi, até morrer, o meu maior
amigo. Morreu cedo, num desastre de aviação. Era o director-geral do Banco e
ia passar a administrador. Acabei, mais tarde, por vir a suceder-lhe. Era
uma pessoa absolutamente rara, de enorme carácter e inteligência, que me
disse ser monárquico integralista e que era óptimo que eu fosse marxista
porque, como íamos trabalhar juntos, as posições, assim, ficavam
equilibradas.
P. - Esses anos no Português do Atlântico acabaram por te agarrar à tal actividade fundamental do "capitalismo fascista", já que ainda tentaste outras experiências bancárias antes do 25 de Abril. R. - Foi
profissionalmente uma experiência muito estimulante e divertida e onde
aprendi imenso. O Cupertino de Miranda era, também, um homem excepcional. Um
dia acordei com a sensação que, com trinta e poucos anos, para além de estar
a ganhar o que para mim era muito dinheiro (já era administrador nessa
altura), nada mais de muito excitante poderia acontecer-me
profissionalmente. Senti que começava a morrer, se continuasse no mesmo
lugar. Fui ter com o Cupertino de Miranda e disse-lhe isso mesmo, sugerindo
que o Banco tomasse a liderança no financiamento de actividades mais
directamente ligadas a projectos de desenvolvimento estrutural do país. Ele
achou que essa tarefa não podia partir de uma única instituição de crédito e
compreendi que teria de afastar-me. Tive então a ideia de recomeçar de novo,
com um Banco que eu pudesse inteiramente dirigir. Foi quando Manoel Boullosa,
outro homem extraordinário, veio ter comigo e deu-me carta branca para se
comprar o Crédito Predial. O arranque a sério deu-se por volta de 71/72, mas
só lá estive dois anos, porque entretanto aconteceu o 25 de Abril...
P. - ... que te convocou de imediato para a actividade política, agora a céu aberto! R. - E a Ana
Maria deu-me então um grande apoio. Concordou inteiramente com o facto de,
tendo eu tomado sempre posições contra a ditadura, não poder, agora que a
liberdade nos tinha sido restituída, pôr-me de lado sem colaborar no
processo de construção da democracia. E a 26 de Abril de 74 aceitei o
convite da Comissão Coordenadora do Programa do MFA, para tomar medidas
económicas de emergência, evitar fugas de capitais, corridas a Bancos,
etc... É aí que faço grande amizade com o Ernesto Melo Antunes e o Vítor
Alves. São, para mim, as duas grandes referências do 25 de Abril. Tinham
ambos uma percepção exacta do estado do país e da prudência que era
indispensável usar para conduzir as coisas. Tanto mais que, de um dia para o
outro, só se encontravam anti-fascistas radicais. Gente que antes nunca
tinha feito nada, nunca se tinha pronunciado... O meu receio a seguir ao 25
de Abril era que, com a nossa situação geo-estratégica, num país muito
conservador (como ainda é hoje), com uma Igreja muito forte (como continua a
ser), qualquer forma de extremismo seria profundamente contra-revolucionária
e só poderia trazer a direita outra vez de volta.
P. - Não te surpreendeu a forma como o regime caiu, esboroando-se como um castelo de cartas? R. - Não.
Sabia que o regime estava podre e que a guerra colonial forçosamente
acabaria com ele, mas achava que podre iria manter-se mais algum tempo. Não
lhe via o fim. Ainda por cima tinha havido, durante o Caetanismo, uma grande
abertura económica, as pessoas tinham sentido uma certa descompressão,
tínhamos entrado na EFTA. Marcelo Caetano - de quem era amigo e que foi o
melhor professor que tive na Faculdade - tentou imediatamente uma
liberalização, mas hesitou e não teve força para controlar a extrema-direita
do regime e gerir as contradições agudizadas pela guerra. Não era fácil,
pelo menos até ao "16 de Março", prever a queda rápida do regime, apoiado
num exército que tinha sempre sido um pilar do sistema, com uma oposição
dividida e uma polícia política que, embora de má qualidade, funcionava bem
com as denúncias que de todo o lado recebia. Só de facto com um golpe
militar, como aconteceu, provocado pelo cansaço da guerra colonial e no
quadro de quase total isolamento do país.
P. - Aceitaste depois ser Ministro da Coordenação Económica no primeiro Governo Provisório? R. - Foi uma
experiência muito frustrante. Naquelas condições, em que quase ninguém era
realmente o que era e poucos tentavam agir com uma visão estratégica, não
era possível impor qualquer directriz de fundo, tudo se passava a quente, no
momento. O Ernesto Melo Antunes disse-me muitas vezes - "Queres suster a
onda, mas o que é preciso é cavalgá-la." Saí na crise Palma Carlos.
P. - Regressaste à tua vida civil de antes? R. - Voltei
para o Crédito Predial, onde estive até ao fim de 74. Depois, no princípio
de 75, tive um convite, creio que do marechal Costa Gomes que mandou alguém
falar comigo, para saber se eu queria ir para Angola e integrar o Governo de
Transição, que devia preparar a passagem para a independência. O MPLA, de
que eu conhecia bem alguns dirigentes, também me contactou e convenceram-me
a ir dar uma ajuda na área económica. Levei a família, que lá ficou até
rebentar a guerra de Luanda. Estive em Angola de Janeiro a Setembro de 75.
Foi uma experiência fabulosa, mas muito complicada.
P. - Queres descrever-me o quadro dessa "complicação" e das maiores dificuldades com que foste confrontado? R. -
Portugueses éramos dois - o engenheiro Antunes da Cunha, que tinha a pasta
das Obras Públicas e eu, como ministro da Economia. Depois havia os
ministros angolanos, para além de três primeiros-ministros, representantes
dos três Movimentos. Muitos vinham para o Conselho de Ministros com as
pistolas Walter 9 mm em elegantes pastas Samsonite.
P. - Chegou a haver tiroteio no Conselho de Ministros? R. - Não. Mas
creio que todos estávamos preparados para nos atirarmos para debaixo da mesa
em caso de necessidade. As dificuldades principais resultavam da falta de
orientações de Lisboa, do extremar de posições políticas que era um reflexo
da situação conturbada em Portugal, das repercussões da guerra fria em
Angola e do choque dos três Movimentos de Libertação que, obviamente, apenas
estavam interessados em tomar o poder. Sobretudo, rapidamente se tornou
claro que era impossível impedir os erros resultantes de se tentar implantar
um regime de planeamento económico centralizado e estatizado, como queria o
MPLA. Tentei fazer um esboço das linhas de orientação a adoptar para evitar
o colapso económico e permitir o desenvolvimento futuro do país, que foi
aceite pelos três Movimentos, mas que ninguém pensava em adoptar. Nesse
aspecto a experiência foi absolutamente falhada.
P. - Também trabalhaste na preparação do primeiro Orçamento Geral e no projecto de Constituição do futuro Estado angolano. Correu bem? R. - Não,
como é que querias que neste quadro corresse bem? Nem a FNLA nem a UNITA
tinham quadros minimamente preparados para governar o país, mas o pior é que
não tinham consciência da própria ignorância. Um dos ministros, quando se
discutia o Orçamento, queria que lhe entregassem pessoalmente, e em notas, a
verba atribuída ao seu Ministério e, como isso lhe fosse recusado, assaltou
o Banco Central com quarenta soldados para recolher os fundos. Ao MPLA, com
alguma gente de qualidade, cabem as maiores responsabilidades por tudo o que
aconteceu depois, quer na fase imediatamente a seguir à tomada do poder, com
uma pseudo-ortodoxia marxista copiada do figurino europeu e completamente
inadaptada ao contexto sociológico de Angola, quer, mais tarde, pela criação
de um Estado totalmente indiferente ao sofrimento do povo e assente na
corrupção de uma pequena classe oligárquica. Tive várias conversas com
Agostinho Neto sobre os perigos da concepção totalitária do poder que
deixara se instalasse. Nesse sentido, o afastamento de grupos como a Revolta
Activa e de homens como Mário Pinto de Andrade e Gentil Viana, foi um erro
fatal.
P. - Como é que reportavas ao governo português essas tuas experiências e o estado das coisas em Angola? R. -
Comunicava frequentemente com o Melo Antunes. Mas quando a guerra de Luanda
começou a crescer em brasa e numa escalada imparável, que vi de perto (não
consegui evitar que matassem, no quintal da minha casa, diante de mim, dois
homens, cena que fotografei; nem que bombardeassem parte da casa, comigo lá
a morar; nem impedir que me enchessem o jardim com gatos pretos pendurados
nas árvores), quando era evidente ser inevitável a destruição do país e
totalmente impossível qualquer forma de entendimento a nível político,
escrevi uma carta aos três presidentes dos Movimentos, contando o que
pensava da situação angolana. Agostinho Neto ficou muito zangado comigo e
Jonas Savimbi entendeu que eu devia deixar Angola. Vim a Lisboa falar com o
Presidente da República e com a Comissão dos Vinte e expliquei-lhes o meu
ponto de vista - ou nós tomávamos militarmente o controle da situação até à
data da Independência, o que já parecia impossível, ou então era melhor
começar, de imediato, a preparar a evacuação dos portugueses que lá viviam e
que quisessem voltar, o que de resto estava a ser preparado por uma equipa
de militares de grande capacidade.
[Ao ouvi-lo,
pedi-lhe se me deixava ler a tal carta, polémica e dura. E não resisto a
transcrever o seu final. Datada de princípios de Setembro de 1975, foi
dirigida ao Colégio Presidencial e aos presidentes dos três Movimentos de
Libertação de Angola e é assim que Vasco Vieira de Almeida termina: "...
Estou em Angola, apenas para ajudar o povo angolano a libertar-se das
sequelas do colonialismo e a construir por suas mãos, democraticamente, o
futuro que escolher. Sei que não é a via da violência e da corrupção que o
povo pretende. Enquanto estiver neste cargo, que não pedi, cabe-me apontar a
prepotência e a incapacidade, venham de onde vierem, e tenho o dever único
de defender os superiores interesses da nação independente que Angola quer
ser. Fá-lo-ei enquanto estiver convencido de que a minha presença tem
qualquer utilidade. Mas pretendo que fique bem claro que não colaborarei na
farsa trágica que é neste momento o Governo do país, nem aceitarei ser
cúmplice passivo num desastre que se me afigura inevitável e que venho
denunciando há largo tempo, se não se alterarem as condições políticas
nacionais. Quero, por isso, afirmar que, a manter-se o quadro actual, não
vejo sentido em continuar no meu posto e deixarei aos que ficarem a
responsabilidade histórica pela destruição dos destinos deste país, que lhes
competia defender."]
P.- Regressas a Portugal e regressas à advocacia. De vez. R. - De vez,
sim. Esse regresso à advocacia, em 1976, depois de vir de Angola, foi também
complicado. O país vivia um clima de grande agitação e os advogados não eram
propriamente um género de primeira necessidade. O André Gonçalves Pereira
foi um grande amigo e cedeu-me uma sala no seu escritório, sem nenhuma
contrapartida. Naquela altura eu estava sem um tostão, todas as minhas
acções tinham voado em fumo, com as nacionalizações. Estive um ano à espera
do meu primeiro cliente. Passei esse ano a estudar de novo e furiosamente os
manuais de Direito. Tinha estado muito tempo longe deles. Um dia, como tenho
muita sorte, começaram a aparecer-me clientes e, passado algum tempo, montei
o escritório, onde estás e onde trabalham advogados, na maioria dos casos
muito jovens e muito bons profissionais.
P. - Estamos a chegar ao fim, Vasco, mas vou ainda disparar três ou quatro questões, das breves. Do teu ponto de vista qual é a pior herança que o regime fascista nos legou e que ainda se faça sentir na sociedade portuguesa? R. - O
conformismo e o corporativismo.
P. - Achas que o país entrou em depressão? R. - Entrou,
do meu ponto de vista de forma injustificada, tão injustificada como a
euforia de há poucos anos atrás. Há razões de grande preocupação, no plano
económico, é verdade, e também porque as pessoas sentem a inexistência de um
projecto político e não reconhecem autoridade no exercício do poder actual.
O projecto dos Estados Gerais ficou por cumprir. Tenho pena, porque era
mobilizador. Mas é uma situação que, como todas em política, é reversível,
desde que todos nos empenhemos nisso e nos corresponsabilizemos.
P.- És do que pensas que os novos de hoje pertencem a uma "geração rasca"? R. - De todo.
Jovens rascas houve-os em todos os tempos, tal como velhos rascas. A
sociedade portuguesa está em transição. Foram gerações mais velhas que
criaram um sistema de ensino ineficaz e complacente, que contribuíram para
destruir em grande parte o papel da família, que confundiram liberdade com
irresponsabilidade, que só falaram de direitos e não de deveres, que criaram
um clima de cepticismo e de cinismo. De que é que estavam à espera?
P.- Para ti, continua a fazer sentido falar-se em "esquerda" e em "direita"? E, caso aches que sim, o que é que melhor caracteriza "ser de esquerda"? R. - Claro
que continua a fazer sentido. Há valores que são historicamente património
da esquerda: a liberdade, a solidariedade, a capacidade de projectar o
futuro, de olhar para a História com optimismo... Ser de esquerda, hoje,
exige uma solidariedade global e uma exemplaridade individual que, em cada
momento e na acção prática, traduza esses valores com eficácia. O grande
desafio é sempre o mesmo - acreditar ser possível realizar a utopia.
P.- A "direita" não tem utopias? R. - Não. O
sonho e a utopia são próprios à natureza da esquerda.
P.- Dá-me uma palavra de eleição. R. - Ana.
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ENTREVISTA: VASCO VIEIRA DE ALMEIDA Na
adolescência leu muito, conheceu Cortezão e Sérgio, descobriu a política. Em
casa a figura tutelar do pai foi desde cedo a referência fundamental, hoje
ainda intacta, na saudade e na memória. Na
Universidade, o curso de Direito seguiu de par com uma intensa actividade
politica começada nos bancos do liceu no MUD Juvenil. Entre 70 e 74, passa
com brilhantismo pela Banca onde é olhado como um "sobredotado": é
administrador do Português do Atlântico e, depois, Presidente do Conselho de
Administração do Crédito Predial. Nos intervalos, continua a devorar livros,
a praticar desporto, a tocar piano. A queda da
ditadura e o advento da democracia fazem-no de novo mergulhar na politica,
desta feita, à luz do dia: é ministro da Coordenação Económica do primeiro
governo saído do 25 de Abril de 74. Mas, logo a seguir, deixa o Terreiro do
Paço na célebre crise Palma Carlos. Em 75 muda-se
para Luanda e em representação do Governo Português, é o titular da pasta da
Economia no Governo de Transição de Angola. Duas experiências que ele resume
de forma tão seca quanto frontal: "Foram duas reais derrotas". Talvez também
por isso - mas certamente pela sua aversão a cingir-se a disciplinas
partidárias e outras -, desiste da politica e escolhe a advocacia. Hoje
possui um dos mais reputados escritórios de Lisboa. Vinte anos
depois de ter vivido muita coisa, visto quase tudo e ouvido outro tanto,
aceitou viajar por esses anos - tão polémicos quanto ele próprio. Não contou
tudo: a sobriedade, a discrição - e porque não dizê-lo, a aura de mistério
que sempre o envolveu -, traços essenciais da personalidade e do carácter de
Vasco Vieira de Almeida, impedi-lo-ão sempre de romper os segredos e os
silêncios até ao fim.
PÚBLICO - Como chegou à
politica antes do 25 de Abril? Pelo ambiente familiar, a personalidade de
seu pai, a universidade? VASCO VIEIRA
DE ALMEIDA - Por isso tudo. Mas o ambiente familiar foi definitivo. O meu
pai, que teve sempre uma grande intervenção cívica e politica, era
excepcional pela cultura e pela inteligência, marcou-me muito. Foi preso
duas vezes, a ultima das quais com setenta e tal anos. Em casa tive sempre
um ambiente liberal, não empenhado ideologicamente, o meu pai era
anti-ideologia. Por tudo isto lidei desde novo com gente da oposição: o
Cortezão, o António Sérgio, etc. E no final do liceu entrei para o MUD
Juvenil onde tive grande actividade política. P. - Que
prosseguiu na Faculdade de Direito? R. - Sim, uma
época em que conheci muita gente da oposição de quem passei a ser amigo:
Carlos Brito, Pedro Ramos de Almeida, Veiga Pereira,João Monjardino,João
Pulido Valente, ainda hoje grande amigo... P. - ...
gente mais ligada ao PC, ao contrário de outra esquerda, que já marcava a
Faculdade nesse tempo... Isso influenciou-o desde logo? R. - Não.
Todos os meus amigos eram da oposição ao regime mas de todas as espécies...
Havia os da Seara Nova - como o Vasco Martins - que nada tinham a ver com o
PC e outros que provavelmente nessa época, ainda não eram comunistas, tinham
apenas começado uma luta política. É verdade que discutíamos ideologia - eu
discutia muito -, que estive muito próximo de gente ligada ao Partido
Comunista - eram aliás pessoas que respeitava pela coragem política e por
terem uma acção consequente -, mas não tiveram influência directa em mim. P. - Não
tiveram? R. - Não.
Aquilo que penso que aconteceu foi uma reacção minha contra o liberalismo do
meu pai. Eu não era certamente um liberal, naquela altura estava muito
próximo das ideias da esquerda, e influenciado pelos autores que lia.. P. -
Quais, por exemplo? R. -
Fartei-me de estudar os revolucionários do século XIX, estudei o Marx
concerteza e isso influenciou-me durante toda a vida. Ainda hoje sinto essa
influência em certos aspectos... com as devidas reservas e distâncias. Nesse
sentido, é verdade, estive muito próximo de muita gente que depois foi do
PC. P. - Mas
você nunca foi? R. - Não. P. -
Porquê, se tudo se encaminhava ou o encaminhava para lá? R. - Pela
mesma razão pela qual nunca fui para partido nenhum. Nunca fui. Na altura o
que contava era sobretudo o meu gosto lúdico pela luta politica. Além disso
era suficientemente heterodoxo para poder encaixar-me em partidos, sobretudo
naquele que tinha a disciplina mais apertada. Mas naquela altura, no tempo
da ditadura, não tinha duvidas em colaborar em acções concretas com o PC. P. - O que
o leva a ser preso mais que uma vez... R. - Duas
vezes: a primeira no dia das eleições do Humberto Delgado, em 58. A segunda,
em 63, estava já na direcção do Banco Português do Atlântico. P. - Da
segunda vez, lembro-me de que se atribuía essa prisão ao facto de constar
que era você quem dirigia e orientava as finanças do Partido Comunista... R. - Era o
que dizia a PIDE, nos interrogatórios... P. - Se
fosse só a PIDE que dissesse isso não me valeria a pena colocar-lhe hoje a
questão. Justamente, havia sectores - alguns da oposição - onde isso
circulava. R. - Sim,
isso constou na altura. A razão por que fui preso é simples: ajudei
comunistas a fugir na célebre evasão da prisão de Caxias, abriguei-os na
minha casa e depois distribuí-os pelos locais combinados. Havendo uma
ditadura, eu ajudaria quem quer que fosse a lutar contra ela. E tive o maior
gosto em fazê-lo naquela altura. P. - Esse
gesto não lhe causou "maçadas" com a administração do Banco onde trabalhava? R. - Não e
reconheço que isso foi extraordinário. Quando saí da cadeia disse ao
Cupertino de Miranda que me ia embora por ele não poder ter na direcção um
tipo que fora preso pela PIDE. O Cupertino respondeu-me apenas: "volte para
a sua secretária e continue a trabalhar, os depósitos subiram". Foi o que
fiz, voltei para a secretária, continuei a trabalhar... P. - Já
conhecia o dr. Álvaro Cunhal nessa altura? R. - Não, só
o conheci depois. P. - Soube
antes do 25 de Abril que ele iria ocorrer naquela data? R. - Não. P. - Mas
logo a seguir começou a colaborar? R. - Sim. Fui
contactado horas depois. A primeira pessoa que falou comigo foi o general
Galvão de Melo. Pediram-me que ajudasse a tomar as medidas económicas de
emergência que se achava - e com razão - que eram necessárias dado o
solavanco que o 25 de Abril iria provocar: as corridas aos bancos, etc. A
seguir conheci o general Spínola e depois aquele grupo com quem viria a
entender-me especialmente bem: o Melo Antunes, o Vítor Alves etc, que
integravam a Comissão do Programa do MFA, creio que se chamava assim... Dois
dias depois já estava a trabalhar na Cova da Moura. P. -
Trabalhava na direcção de um banco, estava a fazer uma carreira, tinha nome
e prestígio. O que o fez saltar, de um minuto para o outro, para a Cova da
Moura, para a revolução e para os militares? R. - Várias
coisas: o estar na Banca não era incompatível com uma acção politica e a
história da minha prisão mostrava-o bem. Por outro lado, convenci-me naquela
altura de que poderia ter interesse fazer política, construir qualquer coisa
de novo. Mas não me passou pela cabeça, quando surgiu o 25 de Abril, que
viria a integrar, logo a seguir, o I Governo Provisório... P. - Foi
convidado para Ministro da Economia, o país estava em efervescência e sem
regras. O que disse a si próprio? Como mergulhou em tudo aquilo? R. - O que
disse a mim próprio? Basicamente que estavam criadas as condições de
liberdade em Portugal e esse era para mim um objectivo fundamental. Mas por
outro lado, nunca achei que a democracia fosse apenas o objectivo final: se
era um objectivo em si mesmo, tinha também de ser instrumental na
concretização de um projecto politico. A democracia formal só por si não me
interessava... P. - E
esse projecto consubstanciava-se em quê, definia-se como? R. - Naquilo
que fora a minha posição ou no que era a posição da esquerda... P. - Qual
esquerda? Tratava-se do socialismo? R. - Não, não
era catalogável nesse aspecto. Era preciso fazer avançar a economia - que
conhecera um desenvolvimento grande na época -, estabelecendo ao mesmo tempo
regras de justiça social. Uma mistura de desafio com a necessidade de evitar
um tipo de injustiças e desequilíbrios que eram patentes. P. - E
julgou isso possível? Até quando?
R. - Nos
primeiros tempos julguei... Com entusiasmo, pensei que era possível
construir a base de qualquer projecto... Mas rapidamente verifiquei que era
impossível fazê-lo de forma concertada - apareceram logo todas as
diferenças: de posição, de exigências, de intervenção política... P. - Mas
isso era natural! Estava uma revolução em curso... Como esperou que fosse de
outra maneira? R. - Era mais
complexo do que eu pensara à partida: havia o PC com o seu projecto político
e, para além dele, dois partidos praticamente inexistentes quando surge o 25
de Abril: o PS, que não tinha nem estrutura ideológica nem aparelho, era
Mário Soares à frente de um pequeno grupo; e o PSD, a cujo nascimento
assisti, na Cova da Moura, quando Sá Carneiro o foi apresentar ao general
Spínola. Ficou claro
naquela altura que em vez de se revolverem os problemas concretos dando
simultaneamente tempo a que se fizesse uma qualquer sedimentação, fez-se o
contrário: começou-se a luta pelo poder, deixando a resolução das questões
para depois. P. - Do
entusiasmo passou à preocupação? R. - Passei.
Por verificar que aquele caminho conduzia à destruição do tecido económico
português o que mais tarde não podia senão desaguar em formas de capitalismo
selvagem - a ultima coisa que eu queria que ocorresse. P. - Fez
ouvir a sua voz no Conselho de Ministros contra a ideia - que começava a
circular - de que era preciso nacionalizar, por exemplo? R. -
Lembro-me de dizer que o acto de nacionalizar por si só, não valia nada. E
de acrescentar que em Portugal estávamos sempre atrasados de uma
revolução... Aquela era a revolução de há 50 anos na Europa! Simplesmente,
era muito impopular dizer isto naquela altura. E foi aí que percebi que não
tinha jeito para a politica... Tinha a sensação de dizer coisas certas no
momento errado quando o que correspondia à politica útil, era dizer coisas
erradas no momento certo. P. - Dá-se
então, em Maio de 74, a queda do I Governo, você sai na célebre crise Palma
Carlos. Mas ainda antes: como se comportavam, no Conselho de Ministros,que
atitudes tinham, Sá Carneiro, Mário Soares, Álvaro Cunhal? Como intervinham? R. - Mário
Soares - de quem era amigo há muito tempo -, devido a ser ministro dos
Negócios Estrangeiros, viajava muito, vi-o relativamente pouco nessa altura.
O Francisco Sá Carneiro - um verdadeiro social-democrata -, conhecera-o na
época da Faculdade. Admirei-lhe a frontalidade, os princípios e o facto de
actuar sempre de acordo com eles. Corria todos os riscos, era um homem livre
a pensar, senti-me muito próximo dele em muitos aspectos... Embora vindo
cada um de nós, de caminhos diferentes, e de posições politicas distintas,
concordávamos no essencial: evitar a desordem e o caos, que levariam a
extremismos de direita ou de esquerda. Lembro-me que fomos os dois um dia à
Manutenção Militar, expôr ao MFA o que seriam as consequências daquela
radicalização. Isto foi considerado uma terrível tentação de direita para
evitar o processo que a ala mais radical do MFA queria pôr em marcha!
P. - E
Cunhal? R. - O dr.
Álvaro Cunhal é pura e simplesmente fascinante. Perante ele, temos a
sensação de conhecer um dos grandes personagens da história do nosso país.
Um homem que pelo menos no Governo, sempre percebeu a necessidade de alguma
moderação. Percebia o riscos dos excessos... P. - ...
só no Governo? R. - Bem, a
certa altura compreendeu que não podia ser ultrapassado por uma extrema
esquerda muito activa. Mas a impressão com que fiquei - e que guardo hoje -
é que, para além da figura excepcional de homem que é, sempre procurou -
pelo menos no Conselho de Ministros -, ter alguma prudência. P. -
Intervinha muito no Conselho? R. - Tenho a
ideia de que o fazia fundamentalmente nas questões de princípio e não tanto
nos problemas concretos que se punham na altura. P. - Tem
vindo a dizer-me que percebeu muito cedo o rumo que as coisas tomavam.
Preocupou-se. Mas no entanto, ficou-se com a ideia de que poderia ter
colaborado mais com o general Spínola... Bem ou mal, era ele que
institucionalmente encarnava, pelo menos no início, o tal travão que você
achava indispensável. Como Ministro da Economia, não lhe patrocinou - nem
proporcionou - as reformas que ele terá querido... R. - Não sei
se se pode individualizar dessa maneira. Além disso, o poder não estava no
Governo. Estava no MFA e nalguns partidos que o procuraram instrumentalizar.
E havia duas posições: quem queria alguma ordem nas instituições para levar
a cabo as reformas - grupo onde eu estava - e quem queria radicalizar,
quebrar pontes, fazer roturas, para sobre isso construir de novo. P. - O PCP?
A extrema esquerda? R. - A
extrema-esquerda, nitidamente. Mais aquele batalhão colossal de oportunistas
que sempre aparecem nestas coisas... Pessoas sem passado e sem projecto -
que hoje vemos que não tinham o menor desejo de intervenção política - mas
que procuravam navegar naquela confusão... P. - Em
quem está a pensar? R. - Em
grupos que nem sequer eram partidos... Grupúsculos que se situavam à
esquerda do PS, como por exemplo o MES... Um núcleo pequeno, fechado sobre
si próprio, extremamente radical e inconsequente. E como dentro do MFA os
grupos mais radicais tiveram de início alguma superioridade, quem procurou
resistir-lhes foram aquelas pessoas que se juntaram à volta de Melo Antunes
e de Vítor Alves. E enquanto esta contradição não se resolveu dentro do
próprio MFA, a confusão continuou... P. -
Entretanto, sai do Governo por solidariedade para com Palma Carlos? R. - Não só
devido a essa solidariedade, que existiu. Também por constatar a
impossibilidade de implantar as tais medidas de estabilização para proceder
às reformas. P. - Foi
uma derrota? R. - Foi,
obviamente. P. - O que
fez no dia seguinte? R. - Recusei
o convite para participar no II Governo... Nada mudara, não era um II
Governo que iria fazer o que não fizera o primeiro. Como não fez. E como
entendi que houvera uma clara derrota política daquilo que eu defendera,
dispus-me a colaborar apenas em coisas concretas, não queria ser um político
profissional.Aproximei-me mais de Melo Antunes e de alguns militares que
viriam a formar o Grupo dos 9. P. -
Apoiou-o, por exemplo, na elaboração daquele Plano Económico, redigido em
Sesimbra no final de 74... R. - ... não
colaborei com ele nessa altura. Mas a ideia do Ernesto Melo Antunes - e
desse Plano - correspondiam exactamente àquilo que fora a minha própria
visão dos problemas e da forma de os encarar. Mas depois meteu-se o 11 de
Março. De resto, ele não é senão uma reacção contra essas pessoas e esse
Plano... P. -
Entretanto, havia África e a questão colonial... R. - ... que
era extremamente importante! O golpe de estado do 25 de Abril surge
fundamentalmente em função das guerras coloniais... P. - A
razão prioritária, final, do 25 de Abril foi, a seu ver, a situação
colonial? R. - ...
julgo que foi. A experiência que eu tinha é que eram poucos os que lutavam
activamente contra o regime. Havia uma massa gigantesca de gente,
despolitizada, desinteressada, que deixava andar... É a guerra colonial - um
problema insolúvel naquela altura - que cria a movimentação dos militares. P. - Como
é que olhava para essa questão antes do 25 de Abril? Defendia negociações
rápidas tendentes à independência ou... R. - Desde a
universidade que defendia a independência, nunca acreditei na possibilidade
prática de manter as colónias. Visitei Angola diversas vezes e percebi
várias coisas: havia a justaposição de duas culturas, Portugal não tinha
capacidade económica para desenvolver aqueles países e havia gente que, de
facto, queria a independência. Parecia-me justificado, inevitável, e além
disso, sempre fui anticolonialista. P. - Mas
assim como se preocupou aqui com o rumo das coisas, também o inquietou o
rumo da descolonização ou achou-o inevitável? R. -
Parecia-me óbvio que a situação que então se vivia aqui, iria influenciar
esse processo. Era fatal que as contradições internas vividas em Portugal se
reflectiriam na descolonização, que iram ser transpostas para lá... O
problema era conter as coisas... Quando fui para Luanda, constatei que havia
nos soldados a sensação de que a guerra tinha acabado, queriam regressar o
mais depressa possível... E nessa altura era impossível alguém bater-se pela
ordem, ou mesmo bater-se pelo que quer que fosse. A ideia da independência
imediata fazia sentido, desde que acompanhada por um sistema e um regime que
estivesse a funcionar solidamente em Portugal. Não estava. P. - No
inicio de 75, aceita de novo um cargo ministerial, desta vez em Luanda, no
Governo de transição. Repito a pergunta de há pouco: o que o fez saltar para
Luanda, acreditar naquilo que mesmo de longe parecia uma tarefa
"impossível"? Também pesou na decisão o facto de - como também circulou - a
sua mulher ter simpatia pelo MPLA e de a sua família ter bens em Angola
pelos quais convinha zelar? R. - Eu sei
que isso foi dito na altura mas não teve nada a ver uma coisa com a outra.
Nem é o meu estilo ir daqui a correr para um cargo político em Angola salvar
uns tostões seja de quem for! Fui porque me vieram dizer que iria haver
ministros portugueses no Governo de Transição e que o meu nome fora apoiado
por todos os Movimentos de Libertação... P. - Quem
lhe veio dizer isso? Quem foi o mensageiro? R. - Não me
lembro, mas fiquei espantado com o convite. Os únicos que admitia que me
pudessem apoiar, eram os do MPLA, conhecia-os a todos, tinha sido testemunha
num julgamento do Agostinho Neto, etc. Entendi que deveria ir, era um
desafio, em Portugal não poderia fazer muito mais. Além disso, julguei que,
indo, ajudaria a evitar o que não conseguira aqui. P. - Que
realidade foi lá encontrar? R. -
Encontrei comunistas que queriam ligar Angola à então URSS; oportunistas que
queriam manter os negócios; gente que queria fazer uma federação. E, como
pano de fundo, três movimentos de libertação, um dos quais tinha recebido
auxilio logístico da União Soviética e onde estava muita gente que eu
conhecera na Faculdade e que entendi que poderia ter nessa altura, uma visão
oposta ou diferente da que vieram a ter sobre alguns problemas... Havia uma
UNITA que no fundo tinha sido criada pelos portugueses e uma FNLA apoiada na
época pelos americanos, mas que era um movimento sem grande expressão. P. - Como
vira os Acordos de Alvor? R. - Tiveram
consequências terríveis: meteram na mesma panela três movimentos que nunca
poderiam entender-se, tanto que originaram a primeira guerra civil em
Luanda, em 75. Parece-me um bocado complicado vir dizer hoje que as coisas
poderiam ter sido diferentes... P. - E
dizer que foi tudo "inevitável"? R. - Discordo
que se diga exclusivamente isso, porque parece uma boa escapadela para a
incapacidade política... Mas naquele caso era de facto impossível aguentar a
situação. Aliás, quatro meses depois de lá estar, escrevi uma carta que
dirigi aos três movimentos... [levanta-se, procura um papel, dá-mo a ler].
Com a redacção desta carta pretendi fazer o retrato daquilo que estava a
ocorrer: a destruição de Angola através da luta pelo poder. Na prática não
foi possível fazer de outra maneira. P. -
Teria, se pudesse, advogado outra orientação? R. - Teria
porventura apoiado logo desde o inicio o MPLA. Tinha quadros, eu conhecia
bem o Agostinho Neto, o Lúcio Lara, o Mário e o Joaquim Pinto de Andrade,
pareciam-me pessoas com quem se podia falar.. P. - Mas
nesse caso, Portugal teria tido a capacidade - e a vontade - para diminuir a
influência soviética sobre o MPLA? P. - Não sei.
Não nos podemos esquecer de que havia a guerra fria, o que fazia com que não
fôssemos os únicos envolvidos nesta teia. Éramos apenas um dos peões naquele
jogo. O choque entre os Estados Unidos e a União Soviética na guerra fria e
a nossa passividade lançaram mais directamente e mais depressa o MPLA para
os braços dos russos e dos cubanos do que se a nossa atitude tivesse sido
mais clara. P. - Tinha
boa relação com o MPLA, era amigo pessoal de Agostinho Neto. Que lhes dizia? R. - Entre
muitas outras coisas, dizia-lhe que tivesse cuidado com as soluções
socializantes... Se já não eram solução na Europa, um socialismo tropical
seria ainda mais complicado! Além disso, o funcionamento de uma sociedade
controlada economicamente -para além de ser aberrante com a revolução
tecnológica - exige quadros e necessita de uma estrutura muito mais afinada
do que uma economia de mercado. Ninguém fez muito caso, nacionalizou-se o
comércio externo - uma coisa sem sentido nenhum... P. - Mas
você estava lá, era ministro, podia impedir! R. - Vim-me
embora quando isso foi feito... P. - O que
evitou então enquanto lá esteve? Nada? R. - Não
evitei grande coisa. Só estive cinco meses, procurei conciliar, no plano
económico, o que os três movimentos queriam fazer. P. - O
êxodo e o escorraçamento dos portugueses não o afligia? R. - Foi um
erro colossal. Os portugueses que lá estavam não eram politicamente
influentes, queriam simplesmente que os deixassem ficar: estavam há muitas
gerações e nem sequer eram facilmente substituíveis. Havia muita coisa
válida feita em Angola. A guerra obrigou a que se desenvolvesse, mas é
indiscutível que muita coisa estava feita e bem feita. P. - Falou
com o Agostinho Neto sobre a perseguição dos portugueses? R. -
Lembro-me de que uma vez estava a ouvir no carro um discurso e quando o
Agostinho Neto acabou de falar, fui imediatamente ter com ele. Disse-lhe que
acabara de criar uma situação diabólica, sem resolução possível: por um
lado, o querer socializar a economia, por outro, correr com os quadros
portugueses. Os quais não só não lhe iriam criar nenhum problema político
como estavam dispostos a aceitar a chefia política de um governo angolano. P. - E
também aí não conseguiu nada? R. - Não
consegui nada. Nesse aspecto a minha intervenção política - em Portugal e em
Angola - salda-se por duas reais derrotas... P. - Como
era a vida em Luanda em 75? Como se vivia todos os dias? Você deve ter visto
tudo, ouvido tudo... R. -
Passavam-se as coisas mais extraordinárias num quadro totalmente
surrealista. Em Portugal, apesar de tudo, no PREC, havia quadros, havia uma
classe média, em Angola isso não acontecia. As reuniões, a vida política,
faziam-se numa tensão terrível, em plena guerra civil. E como ninguém estava
preparado, as coisas mais elementares eram quase impossíveis. Ninguém sabia
como se conduzia um Estado... P. - Um
Estado? E como se processava o Conselho de Ministros? R. - Era
complicado... O que vinha ao de cima, sempre, eram as lutas entre os três
movimentos que depois davam origem a discussões totalmente fantásticas sobre
problemas reais, concretos, perante os quais ninguém fazia a menor ideia do
que estava a dizer! Tudo isto com os três movimentos actuando em liberdade
em Luanda na luta do poder, num cenário de guerra fria, onde o Ocidente e o
Leste lutavam pelo controlo final de Angola... E depois existiam também
lutas sérias porque as pessoas andavam armadas... P. - Creio
que foi ainda consigo no Governo que, uma vez, um ministro abandonou a
reunião do Conselho para ir matar alguém que na rádio estava a dizer mal
dele... R. - Parece
que sim, que foi assim... P. - Quem
matou quem? R. - Não
queria falar nisso. P. -
Voltando àquela carta que me disse que escreveu aos líderes dos Movimentos,
que eco teve ela? Que se passou a seguir? R. - Fiquei
mais uns tempos mas como a situação não melhorasse, saí. Não queria assumir
responsabilidades na destruição de Angola nem na impossibilidade da
salvaguarda dos interesses portugueses. Voltei para Lisboa. E repeti ao
Presidente da República - general Costa Gomes - o que escrevera na carta. P. - Como
reagiu ele? R. - Naquela
altura tinha problemas semelhantes a resolver aqui em Portugal. Isto
passa-se em 75, no verão quente - ainda longe do 25 de Novembro - , Costa
Gomes sentia que não tinha nem meios militares, nem políticos, nem
económicos, para controlar a situação em Angola. P. -
Voltou para Portugal amargurado, arrependido, desiludido? R. - Não.
Tinha a convicção de ter feito o que correspondia ao que eu pensava. Além
disso, estava perante um processo contra o qual era inútil tentar bater-me. P. -
Desiste completamente da política, decide-se pela advocacia... R. - Sim.
Para tentar bater-me em Portugal, teria de entrar num partido político,
lutar politicamente integrado numa estrutura partidária. Não me reconhecia
em nenhum e não estava disposto - nunca estarei - a aceitar uma disciplina
partidária. Resolvi então abandonar completamente a ideia de um dia voltar a
intervir politicamente de forma consistente. P. - Aqui,
vou abrir um parêntesis: nem agora - com as "sugestões" avançadas pelo
Palácio Belém, ao longo de 1993, para que se candidate às próximas eleições
presidenciais - você vai rever essa posição? R. - Pode
escrever que não serei, em caso algum, candidato a Belém. E pode fechar o
parêntesis. P. -
Passaram-se vinte anos: como viu, do seu balcão de advogado, os diferentes
ciclos que caracterizaram a democracia portuguesa? R. - Bem, a
resposta seria longa. Vamos por partes: o período de hegemonia do PS foi
relativamente curto e decorreu, sobretudo - como sempre ocorreu com este
partido -, em fase de crise conturbada. Mário Soares foi e é o referencial
de coragem e determinação, o lutador pela democracia sem o qual ela nunca
teria vingado. A AD constituiu uma tentativa do homem excepcional que foi
Francisco Sá Carneiro para criar as condições que lhe permitissem governar
em alternativa à esquerda. O Bloco Central representou o início de uma fase
que depois evoluíu para um período de acomodação da classe politica em
perversão do sistema de compromissos de que falava Max Weber; o "eanismo" e
o "cavaquismo" não existem enquanto doutrinas... P. - ...
mas alguém achará que foram ou são "doutrinas"? R. - Não. O "eanismo",
como experiência partidária, constituíu apenas um epifenómeno na vida
politica portuguesa. O "cavaquismo" é uma técnica de controle da máquina do
Estado orientada por uma acção política assente nos ciclos eleitorais. P. -
Passados estes vinte anos, que país é este? R. - Também
vamos por partes: somos em primeiro lugar um país democrático: subiu o nível
de vida, generalizou-se o ensino, melhoraram-se algumas infraestruturas e
fazemos parte da União Europeia. É bom não esquecer que isso deve aos que
fizeram o 25 de Abril tornando possível a verdadeira transformação da
sociedade portuguesa.... P. - Foi
mais difícil realizar isso do que será agora corresponder aos tremendo
desafios que nos espreitam? R. - É
indiscutível que, hoje, os desafios são mais complexos. Em 74 tratava-se de
inserir Portugal no conjunto das democracias europeias ocidentais, num
quadro que, sendo de guerra fria, estava estabilizado e era controlado pelas
superpotências. Hoje vive-se em transição no plano ideológico, o mundo vive
uma permanente revolução tecnológica e científica, tentando responder aos
novos problemas postos ao capitalismo, alargando e sacralizando a noção de
mercado e globalizando a acção dos seus agentes. P. - Onde
conduz tudo isso no plano político? R. - Esta
situação, em que praticamente não há dados fixos, leva contraditoriamente à
tentativa europeia de criar mecanismos de decisão à escala continental, e de
preservar localmente um sistema de democracia representativa basicamente
herdado do seculo XIX. P. -
Portugal teria outro remédio que não fosse o da Europa Comunitária? R. - Não
tinha e por isso a opção foi correcta... P. - Como
olha hoje o futuro de Portugal na Europa? R. - A
liberdade de comércio, o desaparecimento de barreiras proteccionistas e a
defesa de uma economia de mercado sem restrições, podem constituir
princípios compreensíveis para os interesses dos países industrializados ou
para as organizações que dominam, mas daí não se segue que assegurem a
defesa dos interesses das nações mais pobres, apanhadas pela mudança radical
das regras de jogo e num momento muito delicado do seu desenvolvimento... P. - ...
mas no que nos toca, acha... R. - ... acho
que com excepção da área do PEDIP, a aplicação dos fundos estruturais foi
incorrectamente feita, pelo que creio ter-se perdido a grande oportunidade
de modernização do país que era vital ter-se feito.... P. - Um
olhar pessimista ou... afinal o único olhar possível? R. - Deixo
apenas uma pergunta em função do que acabo de lhe dizer: poderemos aceitar o
sacrifício de inteiros estratos sociais, a deterioração - nalguns casos
irreversível - do nosso tecido produtivo, a troco da participação num espaço
económico-político, ele próprio de futuro incerto? P. -
Porque a própria Europa deixou a de ser uma referência fixa? R. - A sua
evolução recente impõe-nos uma reanálise da nossa estratégia, não no sentido
da saída da União mas da reavaliação dos nossos objectivos a longo prazo. É
verdade que a Europa deixou de ser uma referência fixa e segura, pela qual
era possível estabelecer uma orientação. Ela começa antes a surgir, hoje,
como um espaço económico cheio de contradição internas, em que voltam ao de
cima não só os interesses dos países mais ricos, como decorre num pano de
fundo em que o retorno dos nacionalismos e a necessidade de alargamento a
leste serão factores crescentes de instabilidade e erosão dessa pretendida
coesão politica. P. -
Então?
R. - Obviamente não há soluções
pré-fabricadas nem fáceis, mas é necessário fazer uma reflexão sobre tudo
isto. E embora possa parecer parodoxal, a fase de transição que atravessamos
não exige formas de navegação à vista orientadas por uma burocracia que
administre, mas antes impõe um projecto colectivo a prazo conduzido por um
governo que governe. Público |
O
País na Encruzilhada - II
Entrevista com Vasco Vieira de Almeida
Vasco Vieira de Almeida está preocupado e dividido com o futuro do país.
Lamenta que a deficiente coordenação e direcção da acção governativa tenha
como resultado "uma oportunidade perdida nestes últimos cinco anos", mas
espera que a moção de Guterres ao próximo congresso do PS traduza vontade
política para uma nova forma de governar. Nesta segunda entrevista do ciclo
"O País na Encruzilhada", Vieira de Almeida deixa o alerta: "Depois do
próximo Congresso do PS, chegou o último momento possível para mudar de
rumo, inverter o estado de espírito de desânimo hoje prevalecente e atacar
com energia uma agenda calendarizada de trabalho".
PÚBLICO - Foi o primeiro ministro da Economia a seguir ao 25 de Abril, onde
integrou o Governo liderado por Palma Carlos. Nesse mês de 1974, que
desafios se lhe colocaram?
VASCO VIEIRA DE ALMEIDA - As minhas expectativas não resultavam tanto do
facto de estar no Governo, que sabia ir ter fatalmente uma vida curta, mas
daquilo que tinha sido a minha vivência antes do 25 de Abril, em que,
modestamente, tinha participado na luta contra a ditadura. Esperava, como
cidadão, e como a maior parte dos portugueses, transformações radicais que
passariam pela recuperação dos nossos atrasos estruturais e pelo
estabelecimento de formas de justiça social, enquadradas num esquema de
desenvolvimento que alterasse profundamente a sociedade portuguesa. Como
ministro, entendia que a minha tarefa imediata era dupla: evitar a todo o
custo situações de pânico, como a corrida aos bancos, fugas de capitais ou
açambarcamento de géneros e a especulação, e lançar as bases de um novo
enquadramento da actividade económica que permitisse o controlo do poder
económico pelo poder político sem destruir os centros de investimento
existentes e promovesse o desenvolvimento das pequenas e médias empresas,
como principais geradoras de emprego.
Na altura, era também imperioso consolidar a democracia?
Claro. E, como hoje, tinha uma visão ideológica do que era necessário fazer.
Sempre detestei o pragmatismo, que ou revela total ausência de ideias ou
esconde as piores ideias. Já pensava que só numa perspectiva de esquerda era
possível atingir aqueles objectivos. Mas o súbito romper da pressão
totalitária, a cobardia, que levou muito bom conservador da época a
transformar-se em pseudo-radical intolerante, e a total incompreensão do que
tinha de ser uma revolução moderna impediram uma linha política consequente
e substituíram-na por simples excitação estéril de curto prazo. Dava ainda
extrema importância à eficácia da acção no terreno. Mas já desconfiava da
capacidade do sistema político para prosseguir essa via, como se veio a
confirmar.
Acha que os partidos desistiram de ter projectos autónomos?
Não. O que acontece é que as bandeiras agitadas, porque são de carácter
genérico e correspondem a aspirações colectivas, são cada vez mais
indiferenciadas e perderam credibilidade, por não passarem disso mesmo,
bandeiras. O discurso político banalizou-se e a banalidade é hoje elemento
intrínseco do discurso político. A banalidade tornou-se a verdade. Daí que a
avaliação partidária deve, sobretudo, assentar na sua acção concreta e na
capacidade de realização das propostas apresentadas.
Os dois principais partidos, PS e PSD, são sociologicamente distintos,
mas ideologicamente iguais?
Não sou dos que acham que o PS e o PSD são iguais. Mais: não devem, não
podem, ser iguais. Mas é um facto que, em vários sectores da sua prática
política, apresentam soluções idênticas em nome de um centro que, porque o
é, representa a ausência de verdadeiras opções e tende a marginalizar
estratos da sociedade que são justamente aqueles que mais necessitam de
atenção. Se é verdade que o caminho é estreito e difícil e existem
condicionalismos de todo o tipo, não é menos verdade que a criação e
distribuição de riqueza, a elevação do nível educacional dos portugueses, a
sua qualificação profissional e a luta contra a pobreza têm de fazer-se com
uma intensidade e velocidade redobradas, sobretudo num país como Portugal,
com tantas desigualdades sociais. Mas creio que seria injusto não reconhecer
em geral ao PS a preocupação em dar atenção especial a estes aspectos, como
aconteceu com o rendimento mínimo garantido, embora com o grau de
desorganização que é seu timbre.
Consegue definir o que é ser hoje de esquerda?
Neste momento concreto de mudanças aceleradas do Mundo, mais do que invocar
princípios que fazem parte da consciência colectiva, como o direito a um
sistema de saúde, à justiça, à educação, à cultura, e o acesso a uma
cidadania plena, ser de esquerda é ter a capacidade de concretizar esses
valores. É enfrentar os fenómenos da globalização e da revolução tecnológica
sem aceitar a criação paralela de crescentes situações de exclusão e
miséria, é ter uma visão solidária e integrada dos problemas de outros povos
e continentes, é não aceitar o primado do económico sobre o político e é
manter uma atitude permanente de intervenção. É, acima de tudo, ter a
capacidade no terreno de agir nestes sentidos.
Há a ideia de que as promessas eleitorais que exigem rupturas não são
para cumprir?
Para que Portugal possa vencer os desafios que tem pela frente, essas
rupturas são inevitáveis, pela necessidade de recuperar o tempo perdido. Por
outro lado, é cada vez mais falsa a ideia de que a inacção garante a
sobrevivência política.
António Guterres vive hoje numa fase particularmente sensível da sua
governação. A tragédia de Entre-Rios reforçou esta ideia.
As fragilidades não são só deste executivo, mas de todos os que o
procederam. O país em si é frágil. A administração pública continua
ineficiente e em muitos casos irresponsável, não existem mecanismos de
avaliação permanente e, pior que tudo, vive-se um clima de impunidade. A
tragédia de Entre-Rios é apenas a ponta do icebergue e só a sua gravidade é
excepcional. Mas é preciso combater a facilidade, muito de acordo com o
carácter nacional, com que os portugueses passam de fases eufóricas, sem
qualquer fundamento numa análise objectiva da realidade, para depressões
colectivas que também nada justifica.
Como é que se combatem os estados de alma depressivos dos portugueses se
o Governo alega que as sondagens continuam a dar a vitória ao PS?
Só pode conseguir-se com uma acção enérgica e transparente, assente numa
visão estratégica do futuro e acompanhada com rigor pela concretização dessa
estratégia. O que não é viável sem uma cultura de planeamento a médio e
longo prazos. E é por isso inaceitável o ritmo com que se progride nas
reformas estruturais, de que é exemplo a lentidão da acção do PS na primeira
legislatura.
Acha que o PS ainda vai a tempo de romper com este ciclo de estagnação?
Vai. Mas a moção de António Guterres ao Congresso, que reformulou velhos
diagnósticos e repete afirmações genéricas que ninguém contesta, só tem
interesse se traduzir a vontade política de imediatamente partir para uma
nova forma de governar o país. Se assim não for, é contraproducente e
descredibilizadora.
Fazem-se os diagnósticos certos e fica-se por ali?
Fazer diagnósticos é o desporto nacional mais antigo. Executar um projecto
nacional é bem mais difícil, porque ele não se reduz a um programa
partidário, envolve a clarificação e ordenamento de objectivos e
prioridades, e a mobilização dos cidadãos à volta desse combate. Os
inegáveis progressos da sociedade portuguesa nos últimos 25 anos têm sido
limitados pela explosão de interesses egoístas de uma nova classe média,
após décadas de carências e de invisibilidade de largas camadas de
população, o que não contribui para a criação de um espírito de
solidariedade nacional e claramente dificulta a governabilidade. Daí que
seja necessário agir com redobrada determinação.
Como interpreta o crescente desinteresse do cidadão comum pela acção
política?
Para o cidadão comum, o conceito de legitimidade ultrapassa hoje a forma e o
momento de assunção do poder, para se alargar à eficácia da gestão
governativa. Mas também temos de atribuir boa parte da responsabilidade a
nós próprios, na medida em que não exercemos os nossos direitos de
cidadania. Assistimos, por isso, a um movimento de sentido duplo - o Estado
não se reforma para se aproximar dos cidadãos e a chamada sociedade civil
não se organiza como tal para exercer pressão sobre o Estado. É evidente que
o poder político só se move por pressão dos cidadãos. Portanto, temos todos
uma enorme responsabilidade na definição do caminho que Portugal deve
seguir.
Deixou de acreditar nos partidos para enfrentar os desafios futuros?
A classe política é aquilo que é. O essencial e urgente é a reforma do
sistema político - que herdámos do século XIX - para o aproximar dos
cidadãos.
Não acha que uma das falhas do 25 de Abril foi não ter conseguido, tantos
anos depois, envolver a sociedade civil?
A mobilização caótica que se verificou então foi depois canalizada
exclusivamente para mecanismos partidários tradicionais - o que se
justificava, perante a necessidade de consolidação da democracia formal -,
mas decorreu num momento em que já era claro que os partidos políticos não
são as formas únicas de mediação na sociedade. Temos hoje, e têm as
democracias modernas em geral, o problema de saber que tipo de papel devem
desempenhar os partidos na vida política e qual a colaboração alargada que
deve ser pedida aos cidadãos. Houve, entretanto, já tempo mais do que
suficiente para definir modelos de descentralização e de participação dos
cidadãos. Há responsabilidades de vários partidos em não se ter caminhado
nesse sentido.
Partilha da ideia de que o PS tem no Congresso de Maio a sua derradeira
oportunidade de lutar contra a onda de pessimismo que se verifica entre os
portugueses?
Depois do próximo Congresso, chegou o último momento possível para mudar de
rumo, inverter o estado de espírito de desânimo hoje prevalecente e atacar
com energia uma agenda calendarizada de trabalho. Para o PS, essa tarefa é
urgente porque, com um orçamento a aprovar no fim do ano e eleições
autárquicas à vista, o tempo escasseia.
Não acredita no PSD para encontrar uma liderança capaz de levar por
diante uma estratégia económica e de desenvolvimento que quebre este ciclo,
nomeadamente se for evidente que o PS está a perder apoio?
Não. Neste momento, não há alternativa credível ao PS. Resta como solução
que o próprio PS se torne credível.
Como independente, tem sido uma das vozes ouvidas pelo primeiro-ministro.
Como explica um balanço tão pessimista?
O balanço é meramente realista e julgo que não se afasta da análise que o
próprio primeiro-ministro implícita e explicitamente tem vindo a fazer, quer
na moção, quer em entrevista recente à "Visão". Mais uma vez, o problema não
é de diagnóstico, mas das ilações a tirar dele. A reforma fiscal, por
exemplo, surge com anos de atraso.
Uma das críticas feitas à reforma fiscal é a de não ter em conta os
efeitos na economia. Qual é a sua opinião?
O facto de se ter feito uma reforma fiscal é, em si mesmo, positivo, por
traduzir a disposição política de se intervir numa área que gera sempre as
maiores resistências, e por contribuir para a criação de uma maior justiça
fiscal. Mas tenho fortes reservas, entre outros, em dois pontos desta
reforma: nas medidas ligadas à tributação da poupança, que podem provocar
consequências graves a prazo, e na capacidade e isenção da máquina fiscal
para gerir a aplicação da reforma. E uma reforma fiscal, geradora de maiores
receitas, desacompanhada do esforço paralelo de controlar a despesa corrente
do Estado, tem necessariamente efeitos perversos dificilmente controláveis.
O Governo tem tido um forte pendor liberal, e, de repente, mudou o
discurso para a esquerda...
Não sei se mudou o discurso para a esquerda ou se quer que a esquerda mude o
discurso.
Para mobilizar a sociedade civil, o PS terá que apresentar uma proposta
de fundo, mobilizadora, como fez em 1995?
Quando se fizeram os Estados Gerais e quando apareceu uma força disposta a
abrir-se à sociedade, criaram-se grandes ilusões, e hoje estamos perante uma
desilusão generalizada proporcional à ilusão criada, que não se resolve
repisando metas anunciadas e não cumpridas. As perspectivas então abertas
poderiam conduzir a tudo, ao melhor e ao pior. Ao não demonstrar uma
capacidade de realização à altura das expectativas, o PS viu a política
reduzida, perante a opinião pública, às questões de campanário ou a questões
laterais e aos pequenos escândalos. Estamos hoje perante um problema
redondo: não havendo capacidade de agir, não se mobilizam pessoas capazes;
não mobilizando pessoas capazes, continua a não se poder agir. Volto de novo
à moção de Guterres...
As suas expectativas em relação a esta moção não serão exageradas?
As prioridades mais mediáticas anunciadas pelo PS - salas de chuto, voto aos
16 anos - não são a resposta às necessidades de mudanças estruturais do
país. Ia dizer precisamente que a moção tem o defeito de reafirmar ideias
genéricas e anunciar de novo reformas que já deviam ter sido realizadas. É
um conjunto de constatações de facto, acompanhado de uma lista de intenções.
O que será interessante no Congresso é ver se persiste um estado de espírito
autista ou se há uma vontade radical de mudança. Vamos ver o que acontece.
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Vasco Vieira de Almeida acusa
a Comissão Europeia de contribuir para agravar a desconfiança e o
desinteresse dos cidadãos. O Tratado de Nice não é considerado por Vasco Vieira de Almeida uma boa solução para o país, por retirar poder aos pequenos estados. Por outro lado, vê na ausência de participação dos cidadãos na construção política da UE uma das razões para o seu desinteresse pelo processo. Com Nice colocou-se um novo quadro à Europa. Trata-se da primeira pedra institucional para implantar a supremacia alemã, apoiada por um directório representativo de grandes interesses nacionais. Vasco Vieira de Almeida não acredita num super-Estado europeu e considera perigosa a ideia de uma Europa como superpotência. Para o advogado, a identidade europeia é uma utopia pós-nacional e nada, na revolução tecnológica, leva a concluir que a solução esteja em formas planetárias de organização em grandes blocos. Sublinha que a política de convergência não pode resultar de fórmulas de fundamentalismo macroeconómico. Quanto à Terceira Via de Guterres e Blair, defende que ela tem dado cobertura à incapacidade de encontrar soluções adequadas aos problemas. Na primeira fase desta entrevista (ver edição de ontem), Vieira de Almeida diz que, depois do próximo Congresso do PS, chegou o último momento para "mudar de rumo, inverter o estado de espírito de desânimo dos portugueses e atacar com energia uma agenda calendarizada de trabalho". Sobre o PS e o PSD, afirma: "Não podem nem devem ser iguais." Considera inaceitável o ritmo com que se progride nas reformas estruturais, "de que é exemplo a lentidão da acção do PS na primeira legislatura". Sobre a moção de Guterres ao Congresso, considera que só tem interesse se traduzir a vontade política de partir para uma nova forma de governar o país. "Será interessante ver se persiste um estado de espírito autista ou se há uma vontade radical de mudança." PÚBLICO - O Tratado de Nice é uma boa solução para Portugal? VASCO VIEIRA DE ALMEIDA - Não. Perante a necessidade política de alargamento a Leste, vieram ao de cima, se é que alguma vez estiveram escondidos, os interesses dos grandes países do continente, que aproveitaram a oportunidade não só para alterar o equilíbrio de poder na União Europeia em detrimento dos pequenos Estados, mas para começar a clarificar a hierarquia entre si. Nice é nitidamente a primeira pedra institucional para implantar a supremacia alemã na Europa, apoiada por um directório representativo de grandes interesses nacionais. Colocou-se em Nice um quadro novo à Europa. E temos agora uma Alemanha descomplexada em relação às duas grandes guerras. Cada vez mais. E consciente de que não pode exigir-se-lhe continuadamente a aceitação de um estatuto que não está à altura do seu poder. A integração europeia pode ser feita à custa do Estado-nação? A existência de uma cidadania europeia, estabelecida em Maastricht em 1992, já impôs e continuará a impor certamente uma adaptação dos contornos do Estado-nação, mas é ilusório e pode vir a revelar-se destrutivo para os próprios objectivos da União pretender institucionalizar de forma centralizadora quase três dezenas de países em estádios de desenvolvimento muito diferentes e com diferentes problemas políticos e tradições culturais. Faz sentido falar em identidade europeia?A ideia de uma identidade europeia aparece como fórmula de uma utopia pós-nacional, mas não parece constituir pólo de atracção para o aparecimento de uma democracia plurinacional. Se é verdade que há que repensar os limites variáveis do modelo de Estado nacional, também tem de desconfiar-se das ideias feitas sobre o seu fim como evolução inelutável do particular para o universal. Nada, na revolução tecnológica a que assistimos, permite a conclusão apressada de que a solução esteja em formas planetárias de organização em grandes blocos e numa humanidade indiferenciada. Há quem entenda que o excesso de directivas tem um efeito nivelador "negativo" na forma de governar países com desenvolvimentos e culturas muito diferentes... O funcionamento da Comissão de Bruxelas está sobretudo virado para uma normalização administrativa, o que contribui para agravar a desconfiança e o desinteresse do cidadão europeu, tanto mais que lhe não é dada participação na construção política da União, assente no voluntarismo da classe dirigente. Mas os problemas de fundo, como uma política externa e uma política de defesa comum, e a própria forma como virá a fazer-se o aprofundamento de uma União alargada, continuam a revelar-se intratáveis. Os interesses nacionais continuam a ser prioritários?A discussão travada em Nice entre alemães e franceses é um bom exemplo de que a supremacia dos interesses nacionais está para ficar, e que é nessa perspectiva que cada país vê as vantagens da UE. A própria integração obriga a que, ao nível regional, se criem instrumentos de mediação, e esses instrumentos são os Estados nacionais, que não podem deixar de ser os intermediários entre as suas populações e os seus projectos. Estudos recentes indicam que Portugal está atrasado, em relação à média europeia, 50 anos. Mesmo que não seja tanto, constata-se um grande défice na convergência com a Europa. Uma política de convergência europeia não pode resultar de fórmulas de fundamentalismo macroeconómico. É preciso articular políticas orçamentais e de redução da inflação com as de emprego e de redução de assimetrias regionais. O rendimento "per capita" na região de Lisboa aproxima-se dos 90 por cento da média europeia, enquanto no Alentejo não chega aos 60 por cento. Este problema não pode ser esquecido. Repito mais uma vez: se o PS se revelar incapaz de fazer esta viragem, fecha-se um ciclo - o que é tanto mais grave quanto não vejo, para já, soluções de substituição. Que balanço faz do modo como Portugal tem conduzido a sua integração na UE? Portugal tem procurado estar no grupo da frente o que é tanto mais necessário quanto é um país pequeno e periférico. Não sou dos que defendem a prioridade absoluta e dogmática de equilíbrios macroeconómicos ou as virtudes salvíficas da gestão restritiva das finanças públicas, mas há que reconhecer os riscos resultantes da derrapagem existente no plano de estabilidade apresentado em Bruxelas e o descontrolo crescente da despesa corrente, bem como as pressões da oferta que têm levado ao crescimento do endividamento externo e à subida da inflação. Nenhum destes indicadores é favorável neste momento, e é preciso virar a tendência. Por outro lado, no plano externo é necessário procurar aprofundar a hipótese de criação de núcleos de pequenos países com interesses regionais harmónicos dos nossos, como forma de ganharmos um peso específico superior. João Cravinho defende que os interesses de Portugal entroncam com os de algumas regiões espanholas... E Pina Moura defende que Portugal deve derrubar a última fronteira, a económica, que nos separa de Espanha. Concorda? A Espanha está noutro patamar. Portugal continua hoje o seu terreno natural de expansão económica, o que não exclui a possibilidade natural de cooperação com algumas regiões desse país. De resto, esse tipo de regionalização está a verificar-se noutras zonas, como por exemplo o Norte de Espanha e Itália e o Sul de França. Mas referia-me mais à acção política no interior da União. Claramente, países como a Grécia, a Irlanda, Portugal ou Bélgica poderão ter de vir a explorar fórmulas de entendimento que permitam posições conjuntas em certas matérias. Isso deu-se já em Nice entre nós e a Bélgica. A Irlanda aplicou uma estratégia económica distinta da defendida por Bruxelas, apresentando taxas de crescimento acima de oito por cento. Quanto à Irlanda, o seu êxito económico é sobretudo resultante de uma política de atracção de investimento externo extremamente positiva, acompanhada de uma obra de qualificação de recursos humanos excepcional e do facto de ter uma população de língua inglesa. António Guterres é um "homem" da Terceira Via. Na sua moção ao Congresso, diz: "Não queremos uma sociedade de mercado, queremos uma economia de mercado." Como interpreta isto, partindo de alguém que quer governar voltado para o eleitorado do PCP? É uma frase antiga do mentor de Blair, Anthony Giddens, que reintroduz ideias com dezenas de anos. Mas não me parece que António Guterres queira ou esteja a governar virado para o eleitorado do PCP. A política de alianças pontuais à esquerda e à direita tem levado, quanto a mim, não a uma maior liberdade de acção no terreno do PS, mas à incoerência governativa. Quanto à Terceira Via, até agora ela não traduziu mais do que a tentativa de encontrar uma fórmula conceptual genérica que tem dado cobertura à incapacidade de encontrar soluções adequadas. Isso passa-se não apenas em Portugal. Veremos que é mais uma moda, como tantas outras que invadiram o pensamento político e económico. Já vimos prever muita coisa: o desaparecimento progressivo dos ciclos económicos, a eterna solidez do crescimento económico americano, ou a força imparável, no plano da bolsa, da nova economia. Tony Blair defende que a Europa se deve tornar numa superpotência e não num super-Estado. Como é que vê esta posição? Que a Europa não deve ser um super-Estado parece-me claro por tudo o que disse. Mas a ideia da superpotência implica a da aceitação de uma teoria de grandes blocos confrontacionais que me parece perigosa. Neste momento, a União e os Estados Unidos estão a caminho de um conflito económico e comercial. Os choques já se verificam no interior da Organização Mundial de Comércio e temos assistido à aplicação de retaliações e contra- retaliações que tornam cada vez mais difícil uma cooperação que não pode assentar apenas no bilateralismo, mas tem de partir da realidade da multipolarização da economia mundial. Não creio que o estatuto da superpotência viesse a facilitar essa tarefa. A adesão dos países do Leste, de acordo com a UE, vai desencadear um fenómeno migratório envolvendo cerca de 3,5 milhões de pessoas. É o grande desafio do futuro? As grandes migrações que começam a verificar-se - não só do Leste, mas do Norte de África - e são o produto precisamente de disparidades de desenvolvimento que só podem resolver-se com um esforço internacional de solidariedade e com o aumento bem direccionado do auxílio económico. Mas essa é uma batalha a médio prazo. Entretanto, é preciso enquadrar essa nova imigração, aproveitando, no caso dos países do Leste, o alto nível de educação de muitos desses imigrantes, e criar mecanismos de integração apropriados. Os portugueses estão preparados para aceitar a chegada de mão-de-obra qualificada disposta a competir ao mais baixo preço? Não se passa facilmente de se ser um país de emigração para se ser de imigração. Mas o envelhecimento populacional não nos dá alternativas. E a qualificação profissional a prosseguir abrirá novas perspectivas de trabalho aos portugueses. De que modo o alargamento a leste se reflectirá em economias periféricas como a nossa? É para enfrentar essas situações que a introdução das novas tecnologias de informação e comunicação, a formação e qualificação profissionais são necessárias. Temos até 2006 os meios excepcionais proporcionados pelo III Quadro Comunitário de Apoio. É neste período dos próximos cinco anos que tudo se vai jogar. Repare-se que é a primeira vez que surge um movimento migratório de mão-de-obra qualificada desta dimensão. Daí que a adesão dos países do Leste, politicamente inevitável, traga ou alterações substanciais ao figurino europeu actual (com sistemas de equilíbrio institucional completamente novos) ou crie uma União a duas ou mais velocidades, o que a prazo significa o aprofundar das contradições que já actualmente se verificam. Daqui a dez anos veremos em que sentido evoluiu a ideia de Europa. Em que sentido vai evoluir?Não sei. É, por isso, que o desenvolvimento estrutural de Portugal é agora uma questão essencial. Vamos ver o que acontece. |